Bazin
defende em alguns textos – em especial A
evolução da linguagem cinematográfica – um cinema que mantenha a ambiguidade
do mundo. Dentre os filmes que escolhe para a fazer a defesa de sua teoria está
Cidadão Kane. Mas seria o debute de
Orson Welles um filme ambíguo? Afinal de contas ele não nos apresenta o
significado de rosebud ao final, desvendando
o mistério que faz os personagens seguirem sua jornada? De fato, Cidadão Kane parece um filme objetivo,
num primeiro olhar. Mas ele nunca seria CIDADÃO
KANE se se esgotasse na investigação em torno do significado de rosebud, a palavra dita por Charles
Foster Kane em seu ultimo momento de vida.
Vejamos
a primeira cena do filme. Vemos uma placa que nos diz para não trespassar as
grades que cercam Xanadu, e ainda assim conseguimos entrar. Note que neste
momento surge quase no centro da tela uma janela iluminada. É por trás desta
janela em que está o magnata das comunicações em seus derradeiros momentos. Esta
janela persiste na tela no mesmo ponto durante toda a cena, apesar de a câmera
trocar de posição ao longo da cena, e mostrar diferentes localidades da enorme
propriedade de Kane. E destes diversos lugares se pode ver a janela iluminada
que permanece num mesmo ponto da tela. Esta cena é um resumo do filme que se
apresentará a seguir. Temos diferentes posicionamentos sobre um homem cuja
imagem nunca será desvelada – tal como não sabemos o que há dentro da janela
até que a câmera possa aproximar-se dela.
E
é assim que se faz Cidadão Kane, constituído
de diferentes narrações sobre um mesmo homem na tentativa de desvendar um
mistério que o cerca, uma lembrança que tomou conta de sua mente em seu momento
de morte. Tudo o que os personagens farão na trama que se desenrola é
apresentar Kane a partir de suas perspectivas. Porque tudo o que conhecemos das
pessoas com quem convivemos é aquela breve imagem externa que elas nos
concedem. E assim será o Magnum opus
wellesiano. Um filme que põe um mistério como carro de frente que não define o
resto do desfile. Rosebud poderia ser
tido como aquilo que Hitchcock define como sendo o macguffin. Segundo a gramática do mestre do suspense o macguffin é um artifício que faz os
personagens seguirem em frente na trama, mas que não é o grande interesse do
espectador. Na verdade, o espectador se interessa, sim, por rosebud, mas não é este o problema que
norteia o filme de Welles – e daí sua escolha estética para este filme.
A
trama será apresentada por diversos personagens entrevistados por um grupo de
jornalistas contratados para fazer um retrato de Kane. O que Welles faz é o
mesmo que os jornalistas: é uma tentativa de montar um retrato de Kane para o
espectador que o desconhecia por completo até antes do filme e que agora quer
descobrir tudo sobre aquele personagem. Mais do que conhecer o que é rosebud está o problema de conhecer o
sujeito que o disse e o motivo que o levaria a ter esta como ultima imagem de
sua vida. Cidadão Kane torna-se,
assim, um filme sobre como fazer um discurso sobre um homem que já não pode
mais desvendar os mistérios de sua vida que se apresentam para os outros. O que
resta é uma coletânea de memórias dos outros que podem servir para fazer uma
imagem genérica deste sujeito – e que não se assemelhará com a rela.
Aí
se põe o grande embate estético de Cidadão
Kane e de pensa-lo como um filme ambíguo: se invadimos, com a ajuda da
câmera cinematográfica, a mente dos personagens, porque filmar as cenas de modo
realista e não adotando a perspectiva de quem conta a história? Poderíamos pensar
que seria no intuito de tentar se desvencilhar da memória dos personagens que
nada teriam para acrescentar àquele documentário jornalístico-biográfico apresentado
no início do filme. O fato é que seguir a perspectiva de tais personagens, por
mais que não podemos nos desvencilhar daquilo que eles nos narram, não nos
ajudaria na construção subjetiva de um personagem como Kane porque estaríamos
presos na imagem criada por tal personagem. Grande parte dos personagens acha
Kane um crápula e seria esta a imagem que teríamos dele ao final.
A
ambiguidade de Cidadão Kane residiria
neste mistério do personagem que não está vivo para poder contar sua história e
nos solucionar os mistérios envolvendo sua vida. Daí está o fato de nenhum dos
personagens saber o que é rosebud e
necessitarmos da câmera imparcial para nos mostrar o significado da misteriosa
palavra. Os personagens nos contam a sua versão da história e a câmera de
Welles não a aceita por completo, apesar de não poder ir muito além do que eles
nos dizem – e em determinado momento do filme ficamos muito próximos de rosebud e nem desconfiamos. Não podemos
fazer um discurso real sobre um personagem que não está vivo para poder contar
a sua versão da história, dar as significações de determinadas ações suas.
Estes espaços em branco ficam por parte do espectador de tapar com seu próprio
questionamento acerca do filme.
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