terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Seria Cidadão Kane um filme ambíguo?


Bazin defende em alguns textos – em especial A evolução da linguagem cinematográfica – um cinema que mantenha a ambiguidade do mundo. Dentre os filmes que escolhe para a fazer a defesa de sua teoria está Cidadão Kane. Mas seria o debute de Orson Welles um filme ambíguo? Afinal de contas ele não nos apresenta o significado de rosebud ao final, desvendando o mistério que faz os personagens seguirem sua jornada? De fato, Cidadão Kane parece um filme objetivo, num primeiro olhar. Mas ele nunca seria CIDADÃO KANE se se esgotasse na investigação em torno do significado de rosebud, a palavra dita por Charles Foster Kane em seu ultimo momento de vida.

Vejamos a primeira cena do filme. Vemos uma placa que nos diz para não trespassar as grades que cercam Xanadu, e ainda assim conseguimos entrar. Note que neste momento surge quase no centro da tela uma janela iluminada. É por trás desta janela em que está o magnata das comunicações em seus derradeiros momentos. Esta janela persiste na tela no mesmo ponto durante toda a cena, apesar de a câmera trocar de posição ao longo da cena, e mostrar diferentes localidades da enorme propriedade de Kane. E destes diversos lugares se pode ver a janela iluminada que permanece num mesmo ponto da tela. Esta cena é um resumo do filme que se apresentará a seguir. Temos diferentes posicionamentos sobre um homem cuja imagem nunca será desvelada – tal como não sabemos o que há dentro da janela até que a câmera possa aproximar-se dela.


E é assim que se faz Cidadão Kane, constituído de diferentes narrações sobre um mesmo homem na tentativa de desvendar um mistério que o cerca, uma lembrança que tomou conta de sua mente em seu momento de morte. Tudo o que os personagens farão na trama que se desenrola é apresentar Kane a partir de suas perspectivas. Porque tudo o que conhecemos das pessoas com quem convivemos é aquela breve imagem externa que elas nos concedem. E assim será o Magnum opus wellesiano. Um filme que põe um mistério como carro de frente que não define o resto do desfile. Rosebud poderia ser tido como aquilo que Hitchcock define como sendo o macguffin. Segundo a gramática do mestre do suspense o macguffin é um artifício que faz os personagens seguirem em frente na trama, mas que não é o grande interesse do espectador. Na verdade, o espectador se interessa, sim, por rosebud, mas não é este o problema que norteia o filme de Welles – e daí sua escolha estética para este filme.

A trama será apresentada por diversos personagens entrevistados por um grupo de jornalistas contratados para fazer um retrato de Kane. O que Welles faz é o mesmo que os jornalistas: é uma tentativa de montar um retrato de Kane para o espectador que o desconhecia por completo até antes do filme e que agora quer descobrir tudo sobre aquele personagem. Mais do que conhecer o que é rosebud está o problema de conhecer o sujeito que o disse e o motivo que o levaria a ter esta como ultima imagem de sua vida. Cidadão Kane torna-se, assim, um filme sobre como fazer um discurso sobre um homem que já não pode mais desvendar os mistérios de sua vida que se apresentam para os outros. O que resta é uma coletânea de memórias dos outros que podem servir para fazer uma imagem genérica deste sujeito – e que não se assemelhará com a rela.


Aí se põe o grande embate estético de Cidadão Kane e de pensa-lo como um filme ambíguo: se invadimos, com a ajuda da câmera cinematográfica, a mente dos personagens, porque filmar as cenas de modo realista e não adotando a perspectiva de quem conta a história? Poderíamos pensar que seria no intuito de tentar se desvencilhar da memória dos personagens que nada teriam para acrescentar àquele documentário jornalístico-biográfico apresentado no início do filme. O fato é que seguir a perspectiva de tais personagens, por mais que não podemos nos desvencilhar daquilo que eles nos narram, não nos ajudaria na construção subjetiva de um personagem como Kane porque estaríamos presos na imagem criada por tal personagem. Grande parte dos personagens acha Kane um crápula e seria esta a imagem que teríamos dele ao final.

A ambiguidade de Cidadão Kane residiria neste mistério do personagem que não está vivo para poder contar sua história e nos solucionar os mistérios envolvendo sua vida. Daí está o fato de nenhum dos personagens saber o que é rosebud e necessitarmos da câmera imparcial para nos mostrar o significado da misteriosa palavra. Os personagens nos contam a sua versão da história e a câmera de Welles não a aceita por completo, apesar de não poder ir muito além do que eles nos dizem – e em determinado momento do filme ficamos muito próximos de rosebud e nem desconfiamos. Não podemos fazer um discurso real sobre um personagem que não está vivo para poder contar a sua versão da história, dar as significações de determinadas ações suas. Estes espaços em branco ficam por parte do espectador de tapar com seu próprio questionamento acerca do filme. 

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