direção: Robert Bresson;
roteiro:Robert Bresson, Leo Tolstoi (baseado em seu conto);
direção de fotografia: Pasqualino de Santis, Emmanuel Machuel.
É
impressionante como algumas cenas são tão bem pensadas que elas se destacam em
nossa mente e o filme passa a se tornar referência em nossa memória exatamente
por aquela cena específica. Em O dinheiro,
filme de Robert Bresson, possui uma destas cenas. Na verdade o cinema de
Bresson é inteiramente composto de filmes com cenas memoráveis. E isso tudo
seguindo um modelo de mise-en-scène
próprio, que mais nenhum cineasta viria a utilizar. Porque o cineasta conhecia
o potencial da construção cinematográfica sem a necessidade de artifícios
externos a sua própria concepção do que fosse o cinema.
O dinheiro,
especificamente, é baseado num conto do escritor russo Lev Tolstói. A semelhança
do cinema de Bresson com a literatura russa do século XIX chama atenção. A temática
do sofrimento cristão que se abate sobre os personagens se faz como destaque de
grande parte destas obras. Em Bresson esta questão aparece melhor resolvida em Batedor de carteiras onde a prisão
material impede a ascensão do espírito. Mas mesmo neste O dinheiro podemos notar tal apontamento, e em especial nesta cena
que ficou gravada em minha mente e que me move na escrita deste texto.
Um
dos personagens do filme torna-se um bandido devido. Em certo ponto da obra ele
encontra uma senhora que o acolhe. Esta senhora nos remete ao idiota título de
uma das obras mais conhecidas de Dostoievski, e que fora levada ao cinema por
Kurosawa em obra de mesmo título. Esta velha senhora de Bresson acolhe o jovem desconhecido,
dando-lhe comida e abrigo. Cuida dele sem pedir qualquer coisa em troca. Seu marido
não gosta, mas também não o expulsa.
As
mãos possuem uma característica especial no cinema de Bresson. Nele elas seriam
mais expressivas que o rosto impassível dos personagens. É por meio dela que se
externam suas sensações externas. Sãos as mãos passando pela testa que
demonstrará o cansaço do pároco em Diário
de um pároco de aldeia, ou demonstrando o temor da garota sendo cortejada
por um garoto em A grande testemunha.
Se são raros os close-ups dos rostos
de seus atores, os close-ups de suas
mãos o mesmo não procede. São elas as tradutoras do turbilhão de emoções pelos
quais passam os personagens de Bresson, até porque são as mãos que agem e nãos
as expressões faciais. São as mãos que roubam, não o olhar. São as mãos que
machucam um burro, não uma cara feia.
A
velha senhora que abriga o bandido de O
dinheiro coloca um pouco de café num copo e o leva para seu hóspede. No meio
do caminho, do lado de fora da casa, seu marido a interrompe e exprime seu
descontento com aquela situação. Neste momento surge uma explosão de raiva
deste personagem que nos é ocultada pela imagem, mas cujo som ouvimos. O som de
sua mão batendo em sua esposa é breve, mas objetivo. Esta ação é ocultada da
imagem porque Bresson promove um corte neste momento para mostrar outro detalhe
que será mais eficaz. Em quadro temos as duas mãos da senhora que segura o recipiente
com o café. Seu corpo balança e um pouco do café escorre. Mas ela permanece
segurando-o para que possa dar o café ao rapaz que hospeda.
Numa
imagem como esta Bresson consegue resumir muita coisa. Está ali a agressividade
do mundo contra uma figura que procura fazer o bem para os outros – e mais a
frente no filme este problema será agravado. Ela procura extinguir o mal que
poderia haver dentro de si, mas ainda assim o mal que a cerca insiste em castiga-la.
Ela fala de perdoar a todos, independentemente do crime que tenha sido
cometido. Novamente, é o idiota de Dostoievski que sempre apanha e nunca
revida. E ainda assim levará o café ao necessitado. Nesta cena Bresson imprime
a persistência de sua personagem em fazer aquilo que ela julgue ser o bem sem
se importar com a opinião dos outros. Os outros facilmente condenariam aquele
homem que ela hospeda, ela o perdoaria. E já que ela perdoa, porque não
levar-lhe um pouco de café? O que resta é a imagem cristã da repartição do
alimento.
Mesmo que não
compartilhe com o ideário pregado por Bresson (como não compartilho), é
inevitável não reconhecer a genialidade de sua construção fílmica. E numa única
cena ele consegue traduzir muita coisa. Trata-se do ultimo filme do cineasta.
2 comentários:
Boa noite.
Respeito a sua opinião, entretanto penso que o cinema de Bresson traz mais semelhanças com a literatura de Tolstói do que Dostoiévski, por mais que suas personagens passem por enormes tormentos espirituais (tal qual as de Dostoiévski) e inegavelmente haja grandes influências estéticas de temas dostoiévskianos, o modo de Bresson dissecar as ações e pensamentos aproxima-se mais de Tolstói (tanto em "O Dinheiro" quanto em "O Diabo Provavelmente" é possível fazer bons paralelos), especialmente no modo distanciado e sóbrio com que Bresson trata seus "modelos".
Ótimo comentário, Anônimo!
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