quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O dinheiro de Robert Bresson (l'argent, 1983)


direção: Robert Bresson;
roteiro:Robert Bresson, Leo Tolstoi (baseado em seu conto);
direção de fotografia: Pasqualino de Santis, Emmanuel Machuel.

É impressionante como algumas cenas são tão bem pensadas que elas se destacam em nossa mente e o filme passa a se tornar referência em nossa memória exatamente por aquela cena específica. Em O dinheiro, filme de Robert Bresson, possui uma destas cenas. Na verdade o cinema de Bresson é inteiramente composto de filmes com cenas memoráveis. E isso tudo seguindo um modelo de mise-en-scène próprio, que mais nenhum cineasta viria a utilizar. Porque o cineasta conhecia o potencial da construção cinematográfica sem a necessidade de artifícios externos a sua própria concepção do que fosse o cinema.

O dinheiro, especificamente, é baseado num conto do escritor russo Lev Tolstói. A semelhança do cinema de Bresson com a literatura russa do século XIX chama atenção. A temática do sofrimento cristão que se abate sobre os personagens se faz como destaque de grande parte destas obras. Em Bresson esta questão aparece melhor resolvida em Batedor de carteiras onde a prisão material impede a ascensão do espírito. Mas mesmo neste O dinheiro podemos notar tal apontamento, e em especial nesta cena que ficou gravada em minha mente e que me move na escrita deste texto.

Um dos personagens do filme torna-se um bandido devido. Em certo ponto da obra ele encontra uma senhora que o acolhe. Esta senhora nos remete ao idiota título de uma das obras mais conhecidas de Dostoievski, e que fora levada ao cinema por Kurosawa em obra de mesmo título. Esta velha senhora de Bresson acolhe o jovem desconhecido, dando-lhe comida e abrigo. Cuida dele sem pedir qualquer coisa em troca. Seu marido não gosta, mas também não o expulsa.


As mãos possuem uma característica especial no cinema de Bresson. Nele elas seriam mais expressivas que o rosto impassível dos personagens. É por meio dela que se externam suas sensações externas. Sãos as mãos passando pela testa que demonstrará o cansaço do pároco em Diário de um pároco de aldeia, ou demonstrando o temor da garota sendo cortejada por um garoto em A grande testemunha. Se são raros os close-ups dos rostos de seus atores, os close-ups de suas mãos o mesmo não procede. São elas as tradutoras do turbilhão de emoções pelos quais passam os personagens de Bresson, até porque são as mãos que agem e nãos as expressões faciais. São as mãos que roubam, não o olhar. São as mãos que machucam um burro, não uma cara feia.

A velha senhora que abriga o bandido de O dinheiro coloca um pouco de café num copo e o leva para seu hóspede. No meio do caminho, do lado de fora da casa, seu marido a interrompe e exprime seu descontento com aquela situação. Neste momento surge uma explosão de raiva deste personagem que nos é ocultada pela imagem, mas cujo som ouvimos. O som de sua mão batendo em sua esposa é breve, mas objetivo. Esta ação é ocultada da imagem porque Bresson promove um corte neste momento para mostrar outro detalhe que será mais eficaz. Em quadro temos as duas mãos da senhora que segura o recipiente com o café. Seu corpo balança e um pouco do café escorre. Mas ela permanece segurando-o para que possa dar o café ao rapaz que hospeda.


Numa imagem como esta Bresson consegue resumir muita coisa. Está ali a agressividade do mundo contra uma figura que procura fazer o bem para os outros – e mais a frente no filme este problema será agravado. Ela procura extinguir o mal que poderia haver dentro de si, mas ainda assim o mal que a cerca insiste em castiga-la. Ela fala de perdoar a todos, independentemente do crime que tenha sido cometido. Novamente, é o idiota de Dostoievski que sempre apanha e nunca revida. E ainda assim levará o café ao necessitado. Nesta cena Bresson imprime a persistência de sua personagem em fazer aquilo que ela julgue ser o bem sem se importar com a opinião dos outros. Os outros facilmente condenariam aquele homem que ela hospeda, ela o perdoaria. E já que ela perdoa, porque não levar-lhe um pouco de café? O que resta é a imagem cristã da repartição do alimento.

Mesmo que não compartilhe com o ideário pregado por Bresson (como não compartilho), é inevitável não reconhecer a genialidade de sua construção fílmica. E numa única cena ele consegue traduzir muita coisa. Trata-se do ultimo filme do cineasta.

2 comentários:

Anônimo disse...

Boa noite.

Respeito a sua opinião, entretanto penso que o cinema de Bresson traz mais semelhanças com a literatura de Tolstói do que Dostoiévski, por mais que suas personagens passem por enormes tormentos espirituais (tal qual as de Dostoiévski) e inegavelmente haja grandes influências estéticas de temas dostoiévskianos, o modo de Bresson dissecar as ações e pensamentos aproxima-se mais de Tolstói (tanto em "O Dinheiro" quanto em "O Diabo Provavelmente" é possível fazer bons paralelos), especialmente no modo distanciado e sóbrio com que Bresson trata seus "modelos".

Yves São Paulo disse...

Ótimo comentário, Anônimo!