quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Olney, um cineasta fora da festa

 [transcrição de entrevista dada para o jornal Folha de São Paulo, publicado em 17/05/1977]

texto de Tamar de Castro


"No momento em que a Embrafilme e o Ministério de Educação e Cultura iniciam as comemorações dos 80 anos do Cinema Brasileiro, é necessário lembrar que, se por um lado, o governo estimula a produção de filmes através da Embrafilme, por outra entrega o mercado exibidor praticamente inteiro ao filme estrangeiro."

A reclamação - que se junta a de todos os cineastas brasileiros - desta vêz é de Olney São Paulo. Seu filme "O Forte", baseado no romance do escritor Adonias Filho, estreou na última quinta-feira em São Paulo. Nos cines Metro I e Gemini II sem qualquer preparação publicitária por parte da Embrafilme - que é a co-produtora - "sem qualquer aviso ao diretor para que este, se quisesse ou pudesse, acionasse um mínimo de publicidade para a fita".

"Com uma produção anual entre 70 a 100 filmes, o cinema brasileiro vê apenas 10 por cento desse total chegar às casas exibidoras com uma certa dignidade. O restante da produção é acumulação para tapar buracos em relação à lei de exibição obrigatória.".

Apenas uns poucos produtores fortes ou associados a exibidores conseguem furar este verdadeiro bloqueio ao filme nacional. Mas todos os filmes de produção "independente" - 80 por cento da produção brasileira - caem neste esquema, segundo Olney.

"O exibidor, quando vê aproximar-se o prazo final para pagamento da lei dos 112 dias obrigatórios, pede à distribuidora ou à própria Embrafilme uma fita brasileira qualquer para exibição. Desta forma, abruptamente, sem publicidade, o filme brasileiro vai para as salas exibidoras. Depois, o exibidor alega que o filme não deu lucro e o tira rapidamente de cartaz".

O lançamento nas diversas praças de exibição também é realizado de maneira totalmente aleatória. "Um filme leva às vezes dois anos para ir de um Estado a outro".

"O Forte, por exemplo, foi lançado comercialmente em primeiro lugar na Bahia, em 1975, dando excelente renda. Mas isso de nada valeu e só depois de algum tempo na prateira, "O Forte" foi jogado em Brasília e Vitória (durante o carnaval". Agora chegou a São Paulo, devendo alcançar o Rio em agosto ou setembro".

"O mercado é o ponto vital da questão cinematográfica brasileira. Com um mercado potencial dos maiores do mundo, pouco adiantam incentivos governamentais ao nível de produção se os filmes não forem bem exibidos. E a recíproca não é verdadeira: se o mercado para filme brasileiro for bom, não são tão necessários os financiamentos da Embrafilmes. Uma vez que as fitas nacionais comprovadamente podem dar quatro vezes seu custo de produção, sempre terá gente investindo no cinema brasileiro", afirma Olney.

O primeiro longa-metragem de Olney foi "O Grito da Terra", lançado em São Paulo em 1965. O segundo, "Manhã Cinzenta", baseado nos conflitos estudantis de 1968, com cenas tomadas nas ruas do Rio, premiado na Alemanha Ocidental em 1970, na Semana Internacional de Mannheim, e interditado pela censura no Brasil.

Baiano, 40 anos, Olney formou-se como muitos outros cineastas de sua geração, na escola prática de documentários de curta-metragem. Segundo depoimento de Adonias Filho, o cineasta conseguiu transpor com felicidade a atmosfera carregada de "baianidade" de seu livro para o cinema.

"O Forte" - diz Olney - é uma história de amor, que aconteceu em um dos mais belos cenários do Brasil, a cidade de Salvador, com seus casarões coloniais, sua luz, seu mar, e o clima humano tão peculiar à terra".



terça-feira, 10 de novembro de 2020

Sobre o absoluto, o sublime, e a verdade extática


Werner Herzog

Tradução para o inglês de Moira Weigel

Traduzido da versão em inglês por Yves São Paulo

 

[esse texto foi originalmente apresentado por Werner Herzog na forma de palestra em Milão, Itália, em sequência à exibição de seu filme Lições da Escuridão, sobre os incêndios no Kwait. Foi pedido para que o cineasta falasse sobre o Absoluto, mas ele espontaneamente mudou seu tema para o Sublime. Portanto, boa parte do que segue foi improvisada no momento.]

 



O colapso do universo estelar ocorrerá – como a criação – em um grandioso esplendor.

Blaise Pascal



 

As palavras atribuídas a Blaise Pascal que servem de prefácio ao meu filme Lições da Escuridão são, na verdade, minhas. Pascal não poderia ter dito melhor.

Esta citação falsificada, e como mais tarde demonstrarei, não falsificada citação serve como um primeiro indicativo sobre o que estou querendo lidar com este discurso. De todo modo, para reconhecer um falso como falso serve apenas como triunfo a quem conta.

Por que estou fazendo este percurso, você pode se perguntar? A razão é simples e provém de considerações práticas, e não teoréticas. Com esta citação como prefixo eu elevo [erheben[1]] o espectador, antes que ele tenha visto o primeiro frame, a um alto nível para adentrar no filme. E eu, o autor do filme, não o deixo descer desta altura até que a obra seja terminada. Apenas neste estado de sublimidade [Erhabenheit] algo de profundo pode se tornar possível, uma espécie de verdade que é inimiga do meramente factual. Eu chamo de verdade extática.

Depois da primeira guerra no Iraque, enquanto os campos de óleo queimavam no Kwait, a mídia – e aqui quero dizer a televisão, em particular – não estava em posição de dizer de que se tratava, para além de ser um crime de guerra, um evento de dimensões cósmicas, um crime contra a própria criação. Não há um único quadro em Lições da es­curidão em que você consiga reconhecer nosso planeta; por esta razão o filme é catego­rizado “ficção-científica”, como se somente pudesse ter sido filmado numa galáxia dis­tante, hostil à vida. Quando foi lançado no Festival de Berlin, o filme recebeu uma orgia de ódio. Dos gritos raivosos do público eu apenas podia entender “estetização do horror”. E quando me encontrei sendo ameaçado e cuspido no pódio, lancei apenas uma reposta simples e banal. “Seus cretinos”, eu disse, “isto é o que Dante fez em seu Inferno, o que Goya fez, como também fez Hieronymus Bosh”. Em meu momento de necessidade, sem falar a respeito, evoquei meus anjos da guarda que nos familiarizaram com o Absoluto e o Sublime.

O Absoluto, o Sublime, a Verdade... o que estas palavras significam? Esta é, devo confessar, a primeira vez em minha vida em que tive que assentar tais questões fora de minha obra, o que compreendo, primeiro e acima de tudo, em termos práticos.

A título de qualificação, devo adicionar já que não me aventurarei a definir o Ab­soluto, mesmo que este conceito lance uma sombra sobre tudo o que eu fale aqui. O Ab­soluto põe um dilema interminável para a filosofia, a religião, e a matemática. A mate­mática talvez chegue o mais próximo de resolver esta questão quando alguém finalmente provar a hipótese de Riemann. Esta questão envolve a distribuição de números primos, permanecendo sem resposta desde o século XIX, alcança as profundezas do pensamento matemático. Um prêmio de um milhão de dólares foi posto para quem resolvê-lo, e em um instituto matemático em Boston atribuíram pelo menos mil anos para que alguém apareça com a prova. O dinheiro está esperando por vocês, assim como sua imortalidade. Por dois mil anos e meio, desde Euclides, esta questão têm preocupado os matemáticos; descobrir que Riemann e sua hipótese brilhante não estão certos, lançaria tremores que balançariam a matemática e as ciências naturais. Somente posso vagamente começar a entender o Absoluto; não estou em posição para definir o conceito.

 

A verdade do oceano

Por enquanto, ficarei no confiável campo da práxis. Mesmo que não consigamos apreender, gostaria de falar para vocês sobre um encontro inesquecível que tive com a Verdade enquanto filmava Fitzcarraldo. Estávamos filmando nas selvas peruanas ao leste dos Andes, entre os rios Camisea e Urubamba, onde mais tarde eu içaria um enorme barco a vapor por cima da montanha. Os indígenas que viviam ali, os Machiguengas, eram a maioria dos extras da equipe e nos deram permissão para filmar em sua terra. Em adição ao pagamento, os Machiguengas queriam mais alguns benefícios: queriam treinamento para seu médico local e um barco, para que pudessem levar suas colheitas até o mercado alguns quilômetros rio abaixo, ao invés de vender para algum intermediário. Finalmente, eles quiseram ajuda na batalha legal pelo título da terra entre os dois rios. Uma companhia depois da outra tinha se aproveitado do local para pilhar seus estoques de madeira; recen­temente, também empresas de óleo tinham posto seus olhos gananciosos sobre o local.

Toda petição com a qual entramos desapareceu na labiríntica burocracia provin­cial. Nossas tentativas de suborno falharam também. Finalmente, tendo viajado até o mi­nistério responsável por tais assuntos, na capital Lima, me disseram que, mesmo que ar­gumentássemos a respeito do título legal com base em história e cultura, havia dois blocos que se chocavam. Primeiro, o título não se encontrava em nenhum documento legalmente verificável, tendo o suporte apenas do ouvir-falar, o que é irrelevante. Segundo, ninguém nunca tinha inspecionado a terra para traçar uma fronteira reconhecível.

No fim das contas, contratei alguém para fazer a inspeção, que entregou aos Ma­chiguengas um mapa preciso de sua terra natal. Esta foi minha parte em sua verdade: tomou a forma de uma delineação, uma definição. Admito, eu briguei com o inspetor. O mapa topográfico que ele forneceu estava, ele me disse, incorreto em certos pontos. Não correspondia à verdade porque não levava em consideração a curvatura da terra. Em um pedaço tão pequeno de terra? Eu perguntei, perdendo a paciência. É claro, ele disse rai­vosamente, atirando seu copo d’água em minha direção. Mesmo com um copo d’água você tem que ser claro, o que estamos lidando aqui não é nem mesmo a superfície. Você deveria ver a curvatura da terra como você a veria num oceano ou num lago. Se você fosse realmente capaz de perceber tal como realmente é – mas você é muito simplista – você veria a terra curvar. Nunca me esquecerei desta severa lição.

A questão do ouvir-falar tinha uma dimensão mais profunda e requeria uma pes­quisa de tipo completamente diferente. [Reclamando pelo título da terra], os indígenas podiam apenas reivindicar que eles sempre estiveram ali, o que eles souberam por meio dos avós. Quando, finalmente, o caso parecia sem esperança, consegui uma audiência com o presidente, Fernando Belaúnde. Os Machiguengas de Shivankoreni elegeram dois representantes para me acompanhar. Quando nossa conversação ameaçou chegar num impasse [no escritório do presidente, em Lima], apresentei a Belaúnde o seguinte argu­mento: na lei Anglo-Saxônica, ainda que ouvir-falar seja geralmente inadmissível como evidência, não é absolutamente inadmissível. Tão distante quanto em 1916, no caso Angu vs. Atta, uma corte colonial na Costa do Ouro (hoje Gana) declarou que ouvir-falar pode­ria servir como uma válida forma de evidência.

Aquele caso era completamente diferente. Tinha relação com o uso do palácio do governador local; no caso, também, não havia documentos, nada de oficial que pudesse ser relevante. Mas, a corte julgou, o enorme consenso dos boatos dos tribais sendo repe­tido e repetido passou a constituir uma manifestação da verdade que a corte pode aceitar sem maiores restrições. Com esta apresentação, Belaúnde, que viveu por muitos anos na selva, quedou quieto. Ele pediu por um copo de suco de laranja, então disse Bom Deus, e então soube que tínhamos o conquistado. Hoje, os Machiguengas têm o título de sua terra; mesmo os consórcios de firmas de óleo que descobriram uma das maiores reservas de gás natural [no mundo] nas proximidades teve de respeitar a decisão.

A audiência com o presidente ainda concedeu outro estranho vislumbre da essên­cia da verdade. Os habitantes da vila de Shivakoreni não tinham certeza de que do outro lado do Andes houvesse uma enorme quantidade de água, um oceano. Em adição, ainda havia o fato de esta monstruosa quantidade de água, o Pacífico, ser supostamente salgada.

Dirigimos até um restaurante ao sul de Lima, à beira da praia, para comer. Mas nossos delegados indígenas não pediram nada para comer. Permaneceram em silêncio e ficaram observando por cima dos parapeitos. Não se aproximaram da água, apenas enca­raram. Então um deles pediu por uma garrafa. Dei a ele minha garrafa de cerveja vazia. Não, esta não era a certa, tinha que ser uma garrafa que pudesse ser selada. Então trouxe uma garrafa de vinho chileno barato, abri, e derramei o vinho na areia. Enviamos a garrafa para a cozinha para que fosse limpa o mais cuidadosamente possível. Então os homens pegaram a garrafa e foram, sem uma palavra, até a margem. Ainda usando as calças jeans, os tênis, e as camisetas que tínhamos comprados para eles no mercado, eles adentraram nas ondas. Adentraram, olhando por cima do oceano Pacífico, até que a água alcançasse suas axilas. Então, provaram da água, encheram a garrafa, e a fecharam cuidadosamente com a cortiça. Esta garrafa cheia de água era sua prova para a vila de que realmente existia um oceano. Perguntei cautelosamente se não seria apenas parte da verdade. Não, eles disseram, se há apenas uma garrafa de água do mar, então todo o oceano tem que ser verdade também.

 

O ataque da realidade virtual

Daquele momento em diante, o que constitui a verdade – ou, para colocar de uma maneira muito mais simples, o que constitui realidade – se tornou um mistério muito maior para mim do que já era. As duas décadas intermediárias colocaram desafios sem precedentes para nosso conceito de realidade.

Quando falo de assaltos ao nosso entendimento de realidade, me refiro às novas tecnologias que nos últimos vinte anos se tornaram artigos de uso geral cotidiano: os efeitos digitais que criam realidades novas e imaginárias no cinema. Não que eu queira demonizar estas novas tecnologias, elas permitiram à imaginação humana alcançar coisas grandes – por exemplo, convincentemente reanimar dinossauros nas telas de cinema. Mas, quando consideramos todas as formas de realidade virtual que se tornaram parte da vida cotidiana – na internet, nos videogames, e nos reality shows da tevê; às vezes tam­bém em algumas formas estranhas, misturadas – a questão do que é “realmente” a reali­dade se coloca novamente.

O que realmente está acontecendo no programa de TV Survivor? Podemos real­mente confiar numa fotografia, agora que sabemos quão fácil tudo pode ser falsificado com o Photoshop? Algum dia seremos completamente capazes de confiar num email, quando nosso filho de doze anos nos mostra que o que estamos vendo é provavelmente uma tentativa de roubar nossa identidade, ou talvez um vírus, ou um “cavalo de troia”, que tenha vagado até o nosso núcleo e adotado cada uma de nossas características? Será que já existo em algum lugar, clonado, como um Doppelganger, sem saber a respeito?

A história oferece uma analogia sobre a extensão da mudança trazida pelo virtual, outros mundos com os quais estamos sendo confrontados. Por séculos e séculos, as cam­panhas de guerra eram praticamente as mesmas, exércitos de cavaleiros lutadores, bri­gando com espadas e escudos. Então, um dia, estes guerreiros se encontraram encarando uns aos outros através de canhões e armas. As campanhas de guerra nunca mais foram as mesmas. Também sabemos que as inovações do desenvolvimento de tecnologia militar são irreversíveis. Apresento alguma evidência que pode ser de interesse: em partes do Japão no começo do século XVII, houve uma tentativa de extinguir as armas de fogo, para que os samurais pudessem lutar uns contra os outros com espadas novamente. Esta tentativa durou muito pouco tempo; era impossível de ser mantida.

Alguns anos atrás, vim entender o quão confuso o conceito de realidade se tornou, de um jeito estranho, por meio de um incidente acontecido em Venice Beach, em Los Angeles. Um amigo estava fazendo uma festinha em seu quintal – um churrasco – e já estava escurecendo, quando, não muito longe, escutamos alguns tiros que ninguém levou a sério até que helicópteros da polícia apareceram com luzes de busca e mandaram, atra­vés de seus alto-falantes, que entrássemos em casa. Compreendemos o caso apenas em retrospecto: um garoto, descrito por uma testemunha como tendo algo em torno de 13 ou 14 anos de idade, estava vadiando ao redor de um restaurante uma quadra adiante de onde estávamos. Quando um casal saiu, o garoto gritou, This is for real, e atirou nos dois com uma semiautomática, fugindo em seguida em seu skate. Ele nunca foi apanhado. Mas a mensagem do louco era clara: isto não é um videogame, estes tiros são reais, isto é reali­dade.

 

Axiomas de sentimentos

Devemos perguntar à realidade: quão realmente importante você é? E: quão im­portante, realmente, é o Factual? É claro, não podemos ignorar o factual, ele possui um poder normativo. Mas ele não pode nunca nos dar o tipo de iluminação, o flash extático, de onde a Verdade emerge. Se apenas o factual, sobre o qual o chamado cinema vérité [cinema verdade] é fixado, fosse de significância, então se poderia argumentar que a vé­rité – a verdade – quando muito concentrada deve residir na agenda telefônica – em suas milhares de entradas que são todas factualmente corretas e, então, correspondem à reali­dade. Caso fôssemos ligar para todo mundo listado na agenda sob o nome de “Schmidt”, centenas desses telefonemas confirmariam que se chamam Schmidt; sim, seu nome é Schmidt.

Em meu filme Fitzcarraldo, há uma troca que levanta a questão. Partindo para o desconhecido com sua embarcação, Fitzcarraldo para num dos postos mais distantes da civilização, uma estação missionária:


Fitzcarraldo: o que os índios mais velhos dizem?

Missionário: não podemos curá-los da ideia de que a vida comum é ape­nas uma ilusão, atrás da qual está a realidade dos sonhos.


O filme é sobre uma ópera sendo encenada numa floresta tropical; como vocês sabem, eu realmente parto para produzir uma ópera. Tal como fiz, uma máxima era cru­cial para mim: um mundo inteiro precisa sofrer uma transformação para música, deve se tornar música; apenas então teríamos produzido uma ópera. O que é bonito numa ópera é que a realidade não tem lugar nela de modo algum; e o que acontece numa ópera é a superação da natureza. Quando olhamos para um livreto das óperas (e aqui a Força do destino, de Verdi é um bom exemplo), vemos muito rapidamente que a história é tão implausível, tão removida de qualquer coisa que poderia ser uma experiência real que as leis matemáticas da probabilidade são suspensas. O que acontece na trama é impossível, mas o poder da música permite ao espectador experimentá-la como verdade.

É a mesma coisa com o mundo emocional [Gefühlswelt] da ópera. Os sentimentos são tão abstratos que não podem ser subordinados à natureza do cotidiano humano, por­que estiveram concentradas e elevadas ao grau mais extremo e aparecem em sua forma mais pura; e apesar de tudo isso as percebemos, na ópera, como natural. Sentimento na ópera é, no fim das contas, como axiomas em matemática, o que não pode ser mais con­centrado ou explicado para além daquilo que já é. Os axiomas de sentimento da ópera nos levam, contudo, dos modos mais secretos, numa linha direta para o sublime. Aqui pode­ríamos citar “Casta Diva”, na ópera Norma, de Bellini como um exemplo.

Você pode perguntar: por que você diz que o sublime se torna acessível para nós na ópera, de todas as formas, considerando que a ópera não inovou em nenhum modo essencial ao longo do século XX, como aconteceu com outras formas artísticas? Isto ape­nas parece ser um paradoxo: a direta experiência do sublime numa ópera não é depen­dente de qualquer desenvolvimento ulterior, ou de novos desenvolvimentos. Sua sublimi­dade permitiu à ópera a sobrevivência.

 

A verdade extática

Todo nosso senso de realidade foi questionado. Mas não quero duelar com este fato por muito mais tempo, uma vez que o que me move nunca foi a realidade, e sim a questão que se encontra por trás dela: a questão da verdade. Às vezes, os fatos excedem nossas expectativas – tendo um poder incomum, bizarro – parecendo ser inacreditáveis.

Mas nas belas artes, na música, na literatura, e no cinema, é possível alcançar um extrato mais profundo da verdade – uma verdade poética, extática, que é misteriosa e pode apenas ser apreendida com esforço; é possível atê-la por meio da visão, estilo, cons­trução. Neste contexto, vejo a citação de Blaise Pascal sobre o colapso de um universo estelar não como falso, mas como um meio de fazer possível uma experiência extática de uma verdade interior e profunda. Assim como não é falsidade quando Michelangelo em sua Pietà retrata um Jesus de 33 anos e sua mãe com apenas 17.

Contudo, também ganhamos nossa habilidade de ter experiências extáticas de ver­dade através do Sublime, por meio das quais somos capazes de nos elevar sobre a natu­reza. Kant diz: A irresistibilidade do poder da natureza nos força a reconhecer nossa impotência física enquanto seres naturais, mas ao mesmo tempo revela nossa capacidade de nos julgarmos independentes da natureza, assim como superiores à natureza... estou deixando algumas coisas de lado aqui, em nome da simplicidade. Kant continua: Neste sentido, a natureza não é estimada em nosso julgamento estético como sublime porque ela excita medo, mas porque ela evoca nosso poder (que não é da natureza)...

Eu deveria tratar Kant com a necessária cautela, porque suas explanações com relação ao sublime são tão abstratas que sempre permaneceram estrangeiras às minhas práticas de trabalho. Contudo, Dionísio Longino, quem primeiro vim a descobrir ao ex­plorar estes temas, está muito mais próximo de meu coração, porque ele sempre fala em termos práticos e oferece exemplos. Não sabemos nada sobre Longino. Especialistas nem sequer sabem se este é realmente o seu nome, e apenas podemos especular que ele viveu no primeiro século depois de Cristo. Infelizmente, seu ensaio Sobre o sublime é também fragmentário. Nos mais antigos escritos que temos datando do século X, o Codex Parisi­nus 2036, existem algumas páginas faltando em todos os lugares, e às vezes grandes quan­tidades de páginas.

Longino procede sistematicamente: aqui, desta vez, não posso falar sobre a estru­tura de seu texto. Mas ele sempre cita exemplos muito vivazes da literatura. E aqui vou eu, novamente, sem seguir qualquer ordem esquemática, para apoderar-me do que me parece mais importante.

O que é fascinante é que, logo ao princípio de seu texto, [Longino] invoca o con­ceito de Êxtase, mesmo que ele faça num contexto diferente do que eu identifiquei como sendo “a verdade extática”. Em referência à retórica, Longino diz: O que quer que seja sublime não leva os ouvintes à persuasão, mas a um estado de êxtase; a todo o tempo e de toda forma possível impondo seu discurso com o feitiço que lança sobre nós, prevale­cendo sobre aqueles que buscam apenas a persuasão e a gratificação. Podemos controlar nossas persuasões normalmente, mas as influências do sublime trazem poder, reinando supremo sobre o ouvinte... Aqui ele usa o conceito de ekstasis, a pessoa saindo de si mesma em direção a um estado de elevação – onde podemos nos elevar sobre nossa pró­pria natureza – o que o sublime revela ser “como um raio”[2]. Ninguém antes de Longino havia tão claramente falado sobre a experiência de iluminação; aqui, estou falando da liberdade de aplicar esta noção a momentos raros e fugazes em filme.[3]

Ele cita Homero para demonstrar a sublimidade das imagens e de seu efeito ilu­minador[4]. Aqui um exemplo da batalha dos deuses:


Aidoneus, senhor das sombras, com medo saltou de seu trono e gritou alto para que acima dele a terra não fosse dividida por Poseidon, o Agitador da Terra, e sua morada fosse mostrada para ver os mortais e os importais – a morada terrível e úmida, a qual os próprios deuses odeiam: grande foi o barulho que surgiu quando os deuses entraram em confronto.


Longino era um homem muito lido, que sabia citar com exatidão. O que é impres­sionante aqui é que ele toma a liberdade de soldar juntas duas passagens diferentes da Ilíada. É impossível que isso tenha sido um erro. Contudo, Longino não está falsificando, e sim, ao invés disso, concebendo uma nova verdade, mais profunda. Ele afirma que sem a verdade e a grandeza da alma, o sublime não pode vir a ser. E ele cita uma declaração que pesquisadores hoje dizem ser ou de Pitágoras ou de Demóstenes:


Pois verdadeiramente bela é a afirmação do homem que em resposta a uma pergunta sobre o que temos em comum com os deuses, respondeu: a capacidade de fazer o bem e a verdade.


Não deveríamos simplesmente traduzir euergesia como “caridade”, de tal forma que esta noção foi apropriada pela nossa cultura cristã. Nem mesmo a palavra grega para verdade, aletheia, é simples de apreender. Etimologicamente falando, provém do verbo lanthanein, “esconder”, e é relacionada à palavra lethos, “escondido”. A-letheia é, por­tanto, uma forma de negação, uma definição negativa: é o ‘não-escondido”, o revelado, a verdade. O que os gregos quiseram com o pensar através da linguagem foi, portanto, de­finir a verdade como um ato de divulgação – um gesto próximo do cinema, onde um objeto é lançado à luz, e então uma imagem latente, mas ainda não visível, é conjurada no celuloide, onde primeiro tem que ser processada, e então divulgada.

A alma do ouvinte ou do espectador completa este ato; a alma atualiza a verdade através da experiência da sublimidade: ou seja, completa um ato independente de criação. Longino diz: Nossa alma é elevada acima da natureza por meio da verdadeira sublimi­dade, movendo-se com os altos espíritos, sendo preenchida com prazer orgulhoso, como se criasse o que estivesse a escutar.[5]

Mas não quero me perder em Longino, a quem considero como um bom amigo. Me apresento perante vós como alguém que trabalha com filme. Gostaria de apontar al­gumas cenas de outro filme meu como evidência. Um bom exemplo seria O grande êxtase do entalhador Steiner (1974), onde o conceito de êxtase já aparece no título.

Walter Steiner, um escultor suíço e múltiplas vezes campeão de salto de ski, eleva a si mesmo como se em êxtase religioso no ar. Ele voa tão temerosamente alto, que pe­netra na região da morte: apenas um pouquinho mais longe e ele não poderia aterrissar, ao invés disso se acidentando. Steiner fala, ao final, de um jovem corvo do qual ele cuidou e que foi seu único amigo de infância. O corvo perdia cada vez mais penas, o que prova­velmente tinha relação com a alimentação proporcionada por Steiner. No final, outros corvos atacaram o seu, torturando-o tão temerosamente que o jovem Steiner não teve outra escolha: Infelizmente, eu tive que atirar nele, disse Steiner, porque era tortura ter que assistir como ele foi torturado por seus próprios irmãos porque ele não podia mais voar. E então, num corte rápido, vemos Steiner no lugar de seu corvo, voando, num en­quadramento terrivelmente estético, em extrema câmera lenta, lentamente entrando na eternidade. Este é o voo majestoso do homem cuja face está contorcida pelo medo da morte como se perturbado por um êxtase religioso. E então, pouco antes da zona da morte – para além do declive, no plano, onde ele poderia ser esmagado pelo impacto, como se ele tivesse pulado do Empire State Building em direção ao chão abaixo – ele pousa sua­vemente, salvo, e um texto impresso é superposto na imagem. O texto foi tirado do escri­tor suíço Robert Walser, e lê:


Eu deveria estar completamente sozinho neste mundo

Eu, Steiner e mais ninguém.

Sem sol, sem cultura; eu, nu numa pedra alta

Sem tempestade, sem neve, sem bancos, sem dinheiro

Sem tempo e sem suspiro.

Então, finalmente, não teria mais medo de nada.

 

 

 Referências para a tradução:

Texto originalmente publicado na Revista Arion, vol. 17, n° 3 (Inverno de 2010), pp. 1-12. Disponível em: https://www.bu.edu/arion/on-the-absolute-the-sublime-and-ecstatic-truth/

Utilizamos também como fonte de consulta a tradução para português da mesma palestra publicada em Revista Carbono: http://revistacarbono.com/artigos/01sobre-o-absoluto_wernerherzog/



[1] Interessante pontuar que são três os termos mais comuns de ser trabalhados pela filosofia no âmbito do sublime, o grego hypsos, o alemão erhabene, e o de origem latina sublime. Neste caso, tanto hypsos quanto erhabene têm em comum sua direta indicação de elevação. [nota do tradutor]

[2] “...o sublime, produzido no momento certo, faz tudo em pedaços como um raio” (1.4). [aqui utilizamos a tradução de Marta Vázeas do tratado de Longino]

[3] A citação completa desta passagem, na tradução de Marta Várzeas: “1.4 O extraordinário não leva os ouvintes à persuasão mas ao êxtase; e o maravilhoso, quando acompanhado de assombro, prevalece sempre sobre o que se destina a persuadir e a agradar; pois se, em geral, a persuasão depende de nós, o sublime impõe-se com força irresistível e fica acima de qualquer ouvinte. E enquanto a mestria na invenção, a disposição e o arranjo do material não saltam à vista facilmente ao fim de um ou dois passos mas no conjunto da obra, o sublime, produzido no momento certo, faz tudo em pedaços como um raio e, num instante, mostra toda a força do orador.” Em: LONGINO. Do sublime. Tradução: Marta Isabel de Oliveira Várzeas. Coimbra (Portugal), São Paulo (Brasil): Imprensa da Universidade de Coimbra, Annablume Editora, 2015. [nota do tradutor]

[4] Aqui Herzog fala de iluminação em referência ao espírito sendo revelado a uma nova capacidade reflexiva, abrindo caminho para um sentimento complexo, i. e. o sublime. [nota do tradutor]

[5] Seguindo a tradução de Marta Várzeas: “De fato, o que está de acordo com a natureza é que, sob o efeito do verdadeiro sublime, a nossa alma se eleve e, adquirindo uma espécie de esplêndida altivez, se encha de prazer e de exaltação, como se ela mesma tivesse criado o que ouviu”. 7.2 Em: LONGINO. Do sublime. Tradução: Marta Isabel de Oliveira Várzeas. Coimbra (Portugal), São Paulo (Brasil): Imprensa da Universidade de Coimbra, Annablume Editora, 2015. [nota do tradutor]



segunda-feira, 6 de julho de 2020

O cinéfilo do século XXI

Manohla Dargis
Tradução de Yves São Paulo

cena do filme Maldição, de Béla Tarr, 1987

Nosso complexo industrial de entretenimento atua como se apenas um punhado de filmes blockbuster dos grandes estúdios importassem. Ainda assim, em março de 2003, num mês rico para os filmes dentre muitos outros, um cinéfilo de Los Angeles poderia ir a um cinema da universidade, uma sala de arte ou para uma cinemateca, e assistir a filmes chineses de artes marciais dos anos 1940, o filme policial de Jean-Pierre Melville, Le cercle rouge, e o mais novo lançamento do autor mexicano Arturo Ripstein. Naquele mesmo mês, um cinéfilo bem comprometido poderia ter comprado DVDs de filmes da Áustria e da Coréia do Sul, assim como poderia comparecer a festivais de cinema em estados como os de Maine e Texas.

Hoje, o amor pelos filmes significa comprar DVDs pela internet, se filiar a comunidades virtuais, e preencher os assentos de festivais regionais de cinema. Ao mesmo tempo global e local, a nova cinefilia simultaneamente abraça o velho e o novo, avant-garde e mainstream, live action e animação, drama e documentário, celuloide e vídeo. Dá apoio a esnobismos modernos e promove igualdade pós-moderna, venera mestres já falecidos ao mesmo tempo que os vivos, e toma as aspirações a arte dos filmes como obviedade. Adere à internet para buscar diretores de culto e postar críticas de filmes famosos e obscuros. Para estes novos amantes do cinema, velhas separações como trash contra arte, Hollywood contra o mundo, deram espaço para uma inclusão expansiva dos cinemas de todo o mundo.

Em 1996, cinema e cinefilia pareciam postos contra as cordas. Naquele ano, Susan Sontag publicou A decadência do cinema, um ensaio sobre o centenário do cinema lido sob a forma de obituário. “Os 100 anos do cinema parecem ganhar a forma de um ciclo”, Sontag declarou nesta revista, “um inevitável nascimento, a contínua acumulação de glórias, e os primeiros sintomas de uma última década de declínio irreversível e ignominioso”. Sontag amaciou seu veredito e disse que talvez não tenha sido o cinema a ter acabado, mas o amor que ele inspirava. “Filmes maravilhosos continuam a ser feitos”, ela continuou, “mas dificilmente se encontra, ao menos entre os jovens, o distinto amor cinefílico pelos filmes que não seja simplesmente o amor por, mas um certo gosto pelos filmes (enraizado num vasto apetite por ver e rever o máximo possível do glorioso passado do cinema)”.

Sontag estava enlutada por um mundo perdido, um mundo onde os filmes importavam mais que seus ganhos de bilheteria, e onde parecia haver um cinema de arte em cada esquina de Manhattan, mas ela não se deu conta de que um novo mundo de cinefilia estava surgindo. Os filmes independentes americanos estavam roubando grandes parcelas da audiência que um dia buscou uma alternativa a Hollywood em filmes estrangeiros. Ainda assim, a cinefilia se provou admiravelmente resiliente, suportando ciclos de declínio e renovação. Nos anos 1980, o repertório renasceu nas prateleiras de casas de vídeo aventurosas, como a Kim’s Video, no East Village. O VHS transformou consumidores em programadores, dando aos cinéfilos acesso a cineastas que de outra forma estariam indisponíveis ao seu alcance; mais tarde, o DVD transformaria os amantes do cinema em colecionadores.

É claro, num mundo de entretenimento imparável, pode ser difícil escutar o sinal para o barulho. As companhias de filmes independentes com nomes mais conhecidos, como a Miramax e a Fox Searchlight, são na verdade divisões de grandes estúdios. Enquanto isso, com a aquisição da MGM pela Sony em setembro, todos os maiores estúdios de Hollywood são partes de corporações multinacionais para as quais os filmes representam apenas uma parte de seus lucros totais. Dentre outras coisas, esta consolidação causa mudanças sísmicas em como os filmes alcançam o público, de modo que agora os impérios da mídia geram incessantemente suas próprias defesas. No Today Show, o anfitrião, Matt Lauer, apresenta um filme da Universal, companhia pertencente à General Electric, numa rede de televisão pertencente à General Electric, e assim em sequência, ad infinitum.

Esta é uma das razões do porquê de os festivais regionais terem se tornado tão importantes à cinefilia de hoje. Apenas nos Estados Unidos existem centenas de festivais, e são muitos mais ao redor do planeta. Em fevereiro, os amantes do cinema compareceram ao Festival de Cinema de Santa Bárbara, na Califórnia, onde assistiram filmes da Itália, China, Argentina, Dinamarca, Irlanda, Islândia e Irã. Enquanto isso, o Festival Internacional de Cinema dos Direitos Humanos viajou por 21 cidades. Dentre os filmes selecionados estavam o documentário Pinochet’s children, sobre o ditador chileno, e Rana’s wedding, um drama sobre uma mulher palestina atravessando bloqueios físicos e psicológicos.
Uma vez eventos culturais locais, lugares para acompanhar um diretor estrangeiro favorito ou descobrir algum novo, os festivais evoluíram para uma rede crucial de distribuição. São de particular importância para pequenos distribuidores como a Kino International, que nem sempre tem dinheiro para comprar a abertura de caminho em direção à consciência nacional. Até mesmo cineastas cujos filmes nunca são lançados comercialmente nos cinemas dos Estados Unidos podem alcançar dezenas de milhares de cinéfilos entusiastas em cidades que podem não ter mais uma sala de arte local. Os festivais são a melhor evidência pública da perseverança e expansividade de nosso amor pelo cinema, e um complemento cara a cara do lado mais privado e geek da cinefilia – para aqueles cinéfilos que hackeiam seus aparelhos de DVD para ganhar acesso ao mundo do cinema, ou trocar notícias pela internet sobre o mais novo ultraje do diretor japonês Takashi Miike.

Não surpreende, portanto, que a cinefilia contemporânea encontre sua mais forte expressão em blogues e revistas na internet escritas por fãs indiscriminados, pretensos crítico, acadêmicos sérios, e os frequentes descontentes, junto com sites de críticas como DVDBeaver, site organizado por geeks cujo apreço fetishistíco pela atenção técnica aproxima-se daqueles de audiófilos. A internet é o lar natural para este tipo mais raro de cinefilia, não apenas porque é barato, mas também porque fornece comunidades prontas. Muito do que se encontra na internet é originado por companhias de entretenimento, e muitos sites independentes dependem de links comerciais para suporte. Ainda assim, para os melhores sites, como a revista online Senses of Cinema, o amor pelo cinema não começa nem termina com o último lançamento da Miramax como acontece para muitas publicações offline. Para estes cinéfilos, o diretor húngaro Béla Tarr não é uma curiosidade de sala de arte; ele é uma estrela. Depois de publicado, o obituário de Sontag para o cinema inspirou outras elegias nostálgicas, ainda que muitos deles pareçam ter chorado a perda de sua própria juventude ao invés da perda dos filmes. Estavam saudando aquele momento quando, ao descobrir a Nouvelle Vague francesa, descobriram seus próprios ideais de expressão de curiosidade jovial e paixão. Hoje, audiências seletivas e até mesmo muitos críticos não têm familiaridade com Tarr e o cineasta de Taiwan Hou Hsiao-Hsien. Não porque seus nomes não sejam tão importantes quanto os de Bergman ou Fellini, mas porque o público e o reconhecimento crítico de seus trabalhos são ainda limitados. A maior diferença entre a cinefilia elogiada por Sontag e a de hoje é a homogeneidade do mercado – e a cumplicidade da mídia – forçando cinéfilos a se tornar seus próprios zeladores, a alcançar além dos multiplex e das cadeias de lojas de vídeos. Você tem que buscar – às vezes bem engenhosamente – para encontrar.

Mais cedo este ano, depois de comparecer a uma prévia da exibição do filme Zatoichi, uma tomada estilística sobre uma personagem popular do diretor japonês Takeshi Kitano, saí e comprei um DVD do filme. É um DVD da Região 3 e como tal não rodará na maior parte dos aparelhos de DVD disponíveis nos EUA, designada Região 1. Em meados dos anos 1990, um consórcio de companhias de hardware e software dividiu o mundo em oito regiões para os consumidores assistirem apenas os discos manufaturados para sua parte específica do planeta. Os estúdios de cinema não querem alguém em Tóquio fazendo amostragem do último lançamento de Hollywood em DVD antes que ele seja lançado nos cinemas japoneses. Nem querem os japoneses que assistamos Zatoichi antes que abra nas salas aqui.

Os cinéfilos aprenderam a circundar a proibição comprando aparelhos que toquem DVDs de qualquer região e em qualquer sistema de televisão, ou o fazendo ao hackear o próprio aparelho. Depois de comprarmos um aparelho de DVD feito na China, meu marido o transformou num aparelho livre de restrições de região ao baixar um código livre que ele gravou num CD e inseriu no drive. Agora com nosso aparelho podemos assistir filmes japoneses sobre a Yakuza, clássicos de sala de arte franceses, e programas de televisão britânicos que você não encontra numa loja Blockbuster. Apesar de comprar estes DVDs pela internet com revendedores estrangeiros, comprei Zatoichi em minha loja local porque estava lá na prateleira. As cores em meu DVD de Hong Kong estavam meio escuras (das 17 versões disponíveis, deveria ter ido na edição japonesa), mas agora eu posso assistir ao filme quando quiser.

Enquanto isso, o novo mundo do “home entertainment” permite que você alugue um DVD de um filme difícil como o sublime Elogio ao amor, de Jean-Luc Godard, pela Walmart.com, onde os consumidores avaliaram o produto com três estrelas de cinco. Tem algo de extraordinário na justaposição da maior companhia do planeta com Godard, mas tal é o complexo da realidade de nossas vidas saturadas pelas mídias – está aberta para todo mundo. Nos princípios dos anos 1960, qualquer um com um dólar poderia ir assistir filmes, mas apenas aqueles com algum conhecimento iriam até as salas de arte do Carnegie Hall Cinema para ver O ano passado em Marienbad, de Alain Resnais. Hoje os cinéfilos com acesso à internet podem ir à amazon.co.uk e comprar As Harmonias de Werckmeister, de Béla Tarr em DVD. Então eles podem encontrar “Film Directors – articles on the internet” e ler ensaios astutos sobre um dos diretores favoritos de Sontag.

Não muito tempo atrás, os filmes eram maiores que a vida; hoje você pode comprar um filme, segurar em sua mão, e levar pra casa para assistir de novo e de novo, um passo revolucionário na curta história deste meio. Como o VHS, o DVD mudou radicalmente nossa compreensão do significa ir para os filmes. Mas enquanto o VHS alcançou seu maior sucesso como uma mídia alugada, o DVD se tornou produto de compra impulsiva, produtos lançados para dentro do carrinho de supermercado junto com meias e lençóis. Como tal, os DVDs estão direcionando os lucros da indústria do entretenimento, e atulhando cômodos de entretenimento nas casas. Ainda assim, eles ajudaram a criar uma nova cultura cinematográfica que desafia o imperativo de homogeneidade da indústria, e no processo ajudaram a revitalizar a relação entre os filmes e seus amantes. Consumidores têm mais opções do que nunca; e também os cinéfilos.

Para aqueles que cresceram antes da era do DVD e da internet, deve haver algo de enervante em quão pequenos os filmes se tornaram, mas colocar uma cópia de Notas do subsolo na mochila não faz dela menos profunda. A televisão iniciou a transformação do cinema de um ritual comunal para uma atividade privada – e agora você pode colocar um DVD num computador e assistir a qualquer hora, em qualquer lugar. Godard sugeriu que você deveria olhar para a tela de cinema de baixo para cima, mas a televisão você assiste de cima para baixo. Mesmo com o ato de assistir um filme assumido o aspecto íntimo de ler um livro, a popularidade dos festivais sugere que não estamos prontos para abandonar os prazeres públicos de ir ao cinema. É muito cedo para saber o que perdemos na passagem do primeiro século do cinema para o segundo. Aqui, ao menos na fronteira da cinefilia, o sinal está soando mais alto que o barulho.

O texto original deste artigo pode ser encontrado no seguinte endereço:
https://www.nytimes.com/2004/11/14/movies/the-21stcentury-cinephile.html

terça-feira, 9 de junho de 2020

Um sublime desajeitado


Laura Mulvey

tradução: Yves São Paulo


Nada mais claramente divide a história do cinema em pré e pós-digital quanto o mundo dos efeitos especiais e em nenhum outro lugar esta divisão é mais clara do que no desaparecimento das projeções de fundo (usando “transparências” ou “plates”). Assistindo aos filmes de Hollywood feitos depois do advento do som, as projeções de fundo parecem um emblema estético de tempos idos da era dos estúdios. Como tão costumeiramente acontece com a passagem do tempo, seu desaparecimento deu a esta tecnologia, certa vez detestada, um novo interesse.
A projeção de fundo representava a tentativa de reconciliar as demandas conflituosas das performances das estrelas com as sequências de ação: os close-ups das estrelas podiam não ser necessariamente gravados durante as cenas envolvendo ação dramática (ou mesmo a ação de dirigir um carro). Assim, imagens pré-gravadas de paisagens de campo e da cidade, frequentemente gravadas por uma segunda equipe ou tiradas dos arquivos de gravações do próprio estúdio, seriam projetadas numa tela em um estúdio especial; então, enquanto as estrelas atuavam (com o mínimo de movimento extra possível), a tela e o estúdio seriam gravados juntos. No filme de Preminger, River of no return (1954), por exemplo, Marilyn Monroe, Robert Mitchum, e Tommy Rettig lutam para se manter em cima de um bote, num momento em locação, noutro num tanque de estúdio com o rio e a paisagem passando numa projeção de fundo. Estas mudanças inevitavelmente enfatizam a incompatibilidade entre frente e fundo, entre a artificialidade e flagrante implausibilidade das sequências com projeções de fundo.
Em seu belo artigo, “The Wandering Gaze: Hitchcock’s Use of Transparencies”, Dominique Paini diz: “Transparencies are all about time”. Nas sequências de projeções de fundo, os diferentes níveis de tempo fílmico são ambas visíveis e confusas. Essencialmente um filme é feito em três níveis: o tempo de visão, o tempo de registro, e o tempo da ficção que emerge da construção editada da narração. Contudo, a relação entre o registro do tempo e o tempo da ficção é incerto. Recentemente argumentei que o processo de pausar e reiniciar um filme, assim concentrando num plano ao invés de numa sequência editada, pode fazer o tempo da ficção pode cair, transformando uma imagem em um documento de momento ao qual o celuloide foi exposto. Esta dualidade temporal, é claro, tem que ser construída na mente do espectador, e o retorno do diálogo e edição irá facilmente reafirmar o tempo da ficção.
A projeção de fundo introduz um tipo diferente de dualismo temporal: dois registros divergentes de tempo são “montados” numa única imagem. Enquanto isto é verdade para qualquer superposição fotográfica, o contraste dramático entre a aparência documental das imagens projetadas e a artificialidade das cenas de estúdio aumenta o sentido do deslocamento temporal. Ainda que, em princípio, o elemento do estúdio deva encapsular ficção em oposição ao documentário das paisagens de cidade ou de campo, as tentativas em estúdio frequentemente têm o efeito inverso. As estrelas têm de permanecer num ponto preciso, com seu espaço restrito – frequentemente embalados por vento ou água artificial, ou alturas vertiginosas, – fazendo gestos semelhantes aqueles dos mímicos. As performances, mesmo nos cenários mais simples de carro e trem, tendem a se tornar autoconscientes, vulneráveis, transparentes. Os atores podem parecer quase imobilizados, como se estivessem num tableau vivant, paradoxalmente no mesmo momento do filme em que a ficção alcança alto grau de velocidade, mobilidade, ou incidente dramático.
Quando Marnie foi lançado em 1963, os críticos condenaram estes planos “processados”, mais particularmente aqueles com Tippi Hedren parecendo exultante ao andar em seu cavalo pela primeira vez. A intensidade do movimento é reduzida à estática dos gestos de estúdio. Enquanto a estrela aparece neste espaço estranho, desorientador, suas emoções parodiam seus movimentos. De fato, Marnie perde todo sentido de tempo e lugar quando o desacordo entre tempo e lugar característica da projeção de fundo é mais evidente. Este espaço paradoxal, impossível, separado tanto de uma aproximação da realidade ou da verossimilhança da ficção, permite a audiência a ver o espaço dos sonhos do cinema. Mas a projeção de fundo faz o sonho incerto: a imagem de um sublime cinemático depende de um mecanismo que seja fascinante por causa de, não apesar de, sua visibilidade desajeitada.

terça-feira, 19 de maio de 2020

A decadência do cinema


Susan Sontag
Tradução: Yves São Paulo



[este ensaio foi publicado por Susan Sontag em fevereiro de 1996, por ocasião dos 100 anos do cinema, no The New York Times. O texto original pode ser encontrado em: https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/books/00/03/12/specials/sontag-cinema.html]

Os cem anos do cinema parece ter o movimento de um ciclo de vida: um nascimento inevitável, uma acumulação permanente de glórias, e o início na última década de um declínio ignominioso, irreversível. Não é que você não possa esperar mais por novos filmes que possa admirar, mas não somente tais filmes a ser admirados têm de ser exceções – o que é verdade para qualquer conquista em outras artes –, eles terão que ser verdadeiras violações das normas e práticas que hoje governam a feitura de filmes em todo o mundo capitalista e das partes do mundo à beira de se tornar capitalista – o que significa dizer todos os cantos do globo. E filmes ordinários, filmes feitos puramente para entretenimento (ou seja, comerciais), são extraordinariamente tolos; a maioria falha retumbantemente em ter apelo às suas plateias cínicas tidas como principal objetivo. Enquanto o ponto de um grande filme é hoje, mais do que nunca, ser uma realização verdadeiramente singular, o cinema comercial decidiu por adotar a política do inchaço, da feitura derivativa de filmes, uma desavergonhada combinação e recombinação de traços artísticos na esperança de conseguir reproduzir algum sucesso passado. Cinema, uma vez exaltada como sendo a arte do século 20, parece agora, que o século se fecha, uma arte em decadência.

Talvez não tenha sido somente o cinema que tenha terminado, mas apenas a cinefilia – o nome do amor específico que o cinema desperta. Cada arte nutre seus fanáticos. O amor que o cinema inspirava, contudo, era especial. Nasceu da convicção de que o cinema era uma arte sem outra igual: quintessencialmente moderna; poética e misteriosa e erótica e moral – tudo isto ao mesmo tempo. O cinema teve seus apóstolos (como uma religião). Cinema foi uma cruzada. Para cinéfilos, os filmes encapsulavam tudo. Cinema era tanto o livro da arte quanto o livro da vida.

Como muitas pessoas têm notado, o início da produção de filmes cem anos atrás teve, convenientemente, um início duplo. Grosseiramente, no ano de 1895 dois tipos de filmes eram feitos, dois modos de onde o cinema parecia emergir: o cinema enquanto a transcrição da vida real e não ensaiada (com os irmãos Lumière) e o cinema como invenção, artifício, ilusão, fantasia (Méliès). Mas esta oposição não é verdadeira. O ponto principal é de que para aquelas primeiras plateias a própria transcrição da realidade banal – como os irmãos Lumière filmando a chegada do trem à estação – era uma experiência fantástica. O cinema começou com o maravilhamento de que a realidade poderia ser transcrita com tamanho imediatismo. Todo o cinema é uma tentativa de perpetuar e reinventar esta sensação de maravilhamento.

Tudo no cinema começa com aquele momento, 100 anos atrás, quando o trem entrou na estação. As pessoas tomaram os filmes para si, tão logo o público gritava de animação e se abaixava enquanto o trem parecia se mover em sua direção. Até que o advento da televisão esvaziasse as salas de cinema, era com uma visita semanal ao cinema que você aprendia (ou tentava aprender) como andar, fumar, beijar, lutar, enlutar. Os filmes te davam dicas de como ser atraente. Exemplo: é bonito vestir um sobretudo mesmo quando não está chovendo. Mas o que quer que você levasse para casa era apenas parte de uma experiência maior de submergir em vidas diferentes da sua. O desejo de se perder na vida de outras pessoas... nos rostos de outras pessoas. Esta é uma forma mais profunda e mais inclusiva do desejo incorporado na experiência fílmica. Mais ainda do que a experiência que você apropriou para você mesmo era a experiência de se entregar, se transportar para o que estava acontecendo na tela; você queria ser sequestrado pelo filme – e ser sequestrado era como ser sobrecarregado pela presença física da imagem. A experiência de “ir ao cinema” fazia parte disso. Assistir um filme pela televisão não é realmente ter assistido àquele filme. Não é apenas uma questão da dimensão da imagem: a disparidade entre uma imagem maior do que você na tela de cinema e a pequena imagem em sua caixa televisiva; as condições de prestar atenção num filme do espaço doméstico são radicalmente desrespeitosas com um filme. Agora que um filme não tem um tamanho padronizado, as telas nas casas podem ser tão grandes quanto a sala de estar ou a parede do quarto. Mas você continua numa sala de estar ou no quarto. Para ser sequestrado você precisa estar numa sala de cinema, sentado no escuro em meio a estranhos anônimos.

Não existe quantidade certa de luto que faça reviver os rituais desaparecidos – eróticos e ruminantes – da sala escura de cinema. A redução do cinema a imagens agressivas, e a manipulação sem princípios das imagens (cortes cada vez mais acelerados) para apreender a atenção com mais força, têm produzido um tipo de cinema desencarnado e leve que não demanda a atenção completa de ninguém. As imagens agora podem aparecer em qualquer tamanho numa variedade de superfícies: numa tela de cinema, nas paredes de uma discoteca e nas mega telas de uma arena de esportes. A onipresença das imagens em movimento tem diminuído o critério que as pessoas chegaram a ter tanto a respeito do cinema como arte quanto a respeito do cinema como entretenimento popular.

Durante os primeiros anos, essencialmente, não havia diferenças entre estas duas formas. E todos os filmes do período silencioso – desde as obras primas de Feuillade, D. W. Griffith, Dziga Vertov, Pabst, Murnau, King Vidor, até os melodramas de comédias baseados em fórmulas secretas – eram arte de alto nível, especialmente quando comparados com a maioria das obras que viriam em seguida. Com o advento do som, a criação de imagens perdeu muito de seu brilhantismo e poesia, e os padrões comerciais foram se apertando. Este modelo de fazer filmes – o sistema hollywoodiano – dominou a produção de filmes por pelo menos 25 anos (aproximadamente entre 1930 a 1955). Os diretores mais originais, como Erich von Stroheim, e Orson Welles, eram derrotados pelo sistema e eventualmente entravam num exílio artístico na Europa – onde um sistema semelhante derrubador de qualidades estava ganhando espaço, com orçamentos menores; somente na França houve uma quantidade de filmes soberbos produzidos ao longo deste mesmo período. Então, no meio dos anos 1950, ideias vanguardistas tomaram espaço, enraizadas pela ideia de que o cinema é um ofício astucioso, tendo como pioneiros os filmes italianos do período imediato do pós-guerra. Um número deslumbrante de filmes originais, apaixonados, da mais alta seriedade foram feitos.

Foi durante este específico período durante os 100 anos da história do cinema que ir ao cinema, pensar sobre filmes, conversar sobre filmes se tornou uma paixão entre estudantes universitários e outros jovens. Você se apaixonava não somente pelos atores, mas pelo próprio cinema. A cinefilia havia se tornado visível primeiro na França dos anos 1950: seu fórum era a lendária revista Cahiers du Cinéma (seguida por revistas fervilhantes na Alemanha, Itália, Grã-Bretanha, Suécia, Estados Unidos e Canadá). Os templos, a medida em que se espalhavam pela Europa e pelas Américas, eram as muitas cinematecas e clubes especializados em filmes do passado ou retrospectivas de diretores que brotaram durante o período. Os anos 1960 e 1970 foram um período fervoroso para ir ao cinema, com o cinéfilo de tempo integral sempre esperando encontrar um lugar o mais próximo possível da tela, idealmente a terceira fila, no meio. “Não se pode viver sem Rossellini”, declara uma personagem de Bertolucci em Antes da revolução (1964) – o que significa tudo isto.

Ao longo de 15 anos havia uma nova obra prima a cada mês. O quão distante aquela era nos parece agora. De fato, sempre houve conflito entre o cinema enquanto indústria e o cinema enquanto arte, cinema enquanto rotina e cinema enquanto experimento. Mas o conflito não era tal que impossibilitava a construção de grandes filmes, às vezes até mesmo dentro e às vezes fora do cinema mainstream. O grande cinema dos anos 1960 e 1970 têm sido constantemente repudiados. Mesmo nos anos 1970, Hollywood estava a plagiar e transformar em banalidades as inovações em métodos narrativos e os métodos de edição dos filmes bem sucedidos independentes americanos que aspiravam aos filmes europeus. Então veio o catastrófico aumento do custo para produção de filmes durante os anos 1980, o que assegurou a reimposição global dos padrões industriais de fazer e distribuir filmes de maneira mais coerciva. O aumento do custo dos filmes significou que os filmes tinham que render muito dinheiro de imediato, logo no primeiro mês de lançamento, para que ele fosse rentável – uma tendência que favoreceu os blockbusters acima dos filmes de baixo orçamento, mesmo que a maioria dos blockbusters fossem fracassos e sempre houvessem alguns filmes “pequenos” a surpreender todo mundo baseado em seu apelo. O lançamento dos filmes nos cinemas foi ficando cada vez mais curto (assim como a vida de livros nas prateleiras das livrarias); muitos filmes passaram a ser lançados diretamente em vídeo. Salas de cinema continuaram a fechar – muitas cidades nem sequer tem uma – enquanto os filmes se tornaram, principalmente, mais uma dentre uma variedade de entretenimentos caseiros.

Aqui nos EUA, a queda das expectativas pela qualidade e o aumento das expectativas por lucro fizeram com que fosse virtualmente impossível diretores americanos como Francis Ford Coppola e Paul Schrader serem artisticamente ambiciosos, a trabalhar em seu mais alto nível. No exterior, o resultado pode ser visto no destino melancólico que tiveram alguns diretores nas últimas décadas. Qual o espaço que há hoje para um dissidente como Hans-Jurgen Syberberg, que parou de fazer filmes, ou o grande Godard, que agora apenas faz filmes sobre a história dos filmes, em vídeo? Considere alguns outros casos. A internacionalização das finanças e subsequentemente de equipes foi desastrosa para Andrei Tarkovski em seus dois últimos filmes de uma carreira (tragicamente abreviada) estupenda. E como continuará Aleksandr Sokurov a encontrar financiamento para fazer seus filmes sublimes, sob os rudes ditames das condições do capitalismo russo?

Como era previsível, o amor pelo cinema minguou. As pessoas ainda gostam de ir aos cinemas, e algumas pessoas ainda se importam e esperam algo de especial dos filmes. E alguns filmes maravilhosos continuam a ser feitos: Nu, de Mike Leigh (1993), América, de Gianni Amelio (1994), Fate, de Fred Kelemen (1994). Mas você dificilmente encontra mais, entre os jovens, esta distinta paixão cinéfila pelos filmes que não seja somente uma paixão por um certo tipo de filmes (baseado em um vasto apetite por ver e rever o máximo possível do glorioso passado do cinema). A própria cinefilia está sob ataque, como algo exótico, fora de moda, esnobe. Porque cinefilia implica que filmes sejam únicos, irrepetíveis, experiências mágicas. Cinefilia nos diz que o remake hollywoodiano de Acossado, de Godard, não pode ser tão bom quanto o original. Cinefilia não tem espaço na era hiper industrial dos filmes. Porque a cinefilia não pode deixar de defender, pelo seu próprio vasto alcance e pelo ecletismo de suas paixões, a ideia de que os filmes são acima de tudo um objeto de poesia; e não pode se deixar de incitar aqueles de fora da indústria do cinema, como escritores e pintores, a entrar para o mundo do cinema e fazer filmes também. É exatamente esta a noção que foi derrotada.

Se a cinefilia está morta, então os filmes também morreram... não importa a quantidade de filmes, até mesmo os bons filmes, que continuem a ser feitos. Se o cinema pode ser renascido, somente será por uma nova forma de cine-amor.