ensaio sobre Hiroshima, meu amor de Alain Resnais
Se Hiroshima, meu amor custou a Paulo Emílio sete artigos quando de seu lançamento em 1959, nossa tarefa aqui no blog está longe de se encerrar. Mas, diferente do grande crítico, necessito de longos tempos para poder pensar o filme, e de muitas sessões para que a obra fique cada vez mais clara. Desta vez a questão que me move em meio ao filme é: por que se afastar catorze anos dos acontecimentos narrados? Acessá-los somente pela memória de seus personagens?
Façamos, antes, uma tarefa de rememoração do filme. Em Hiroshima, meu amor temos um casal protagonista. Ela, uma atriz francesa que está na cidade título a filmar uma obra antiguerra. Ele é um arquiteto japonês. Passeiam por aquela paisagem que ficou famosa em todo o mundo pelos motivos errados: a bomba atômica. Mas quando a guerra aconteceu, nenhum dos dois lá estava. As memórias dela, mais que as dele, tomam o filme, que retorna a Nevers para encontrar ela quando adolescente que teve um caso com um soldado das tropas inimigas.
a encenação: as crianças atuam para a câmera |
O passado destes dois personagens é marcado pela guerra. E, no cenário que marca o fim definitivo da guerra, eles se encontram anos depois. Aquele local significativo lhes passa a equivocada ideia de que possuem a lembrança daquela época. Na verdade, passam a ele. Ele, o arquiteto, constantemente a lembra: você não viu nada em Hiroshima. Mas e os filmes, os metais retorcidos, os pedaços de pano e de pele dos mortos? O que são eles se não lembranças daquele fato? Mas não, ela (e nós) nada viu (vimos) em Hiroshima.
Os museus expõem artefatos que podem ser ditos como marcas deste passado. Eles podem servir de lembrança, o mundo que nos tenta mostrar que o passado ainda está aí: Manoel de Oliveira costuma fazer filmes assim. Em Hiroshima de Resnais encontramos um ponto diferente. É verdade que o passado está aí, mas a memória é traiçoeira. Ela pode nos passar impressões equivocadas. Como aqueles filmezinhos feitos pelo museu para dar a impressão de que, sim, o espectador (turista) viu o que aconteceu em Hiroshima. Mas não, você não viu nada em Hiroshima.
Numa das ações mais curiosas, Resnais abre o filme mostrando-nos um hospital. A mulher - sem nome, pode ser qualquer um - diz ter visto um hospital em Hiroshima. Sim, ela viu um hospital em Hiroshima. A câmera passeia por seus corredores. A câmera vê as enfermeiras em frente às portas. Vê os pacientes deitados nas camas, convalescendo. Será que devemos acreditar nestas imagens? É curioso que mais para frente a mulher venha se revelar enquanto atriz e vestir-se de enfermeira. Ela interpreta uma enfermeira naquele filme que a levou para Hiroshima. Teria ela, de fato, visto um hospital ou seria parte do set de filmagem? Lembro-me de ter visto um hospital em Hiroshima. Mas não, você não viu nada em Hiroshima.
Como Glauber Rocha lembra em O século do cinema, Resnais fez para o cinema em Hiroshima o que Proust fez para a literatura. A narrativa de fluxo de consciência permite ao personagem-narrador voltar ao passado de acordo com os estímulos que lhes são dados. É assim a mulher interpretada por Riva no filme de Resnais constantemente retornará a este passado. O passado se alonga no presente, já diria Henri Bergson, filósofo que inspirou Proust. O passado ainda atinge a personagem de Riva. Ela precisa prestar contas com estes acontecimentos que ficaram para trás e que permanecem tão vivos. E eis que surge a confusão do que seria real ou não. Ela não viveu Hiroshima quando da explosão da bomba, mas tem essa impressão causada por memórias artificiais - as imagens de museu. Mas possui a memória do que viveu em Nevers, interior da França.
Este passado da personagem no interior da França é retomado por Resnais. A relação amorosa da francesa com um soldado nazista é representada como qualquer outro filme filmaria. Não há nada de errado com aquilo. Trata-se de uma memória pessoal. Mais que isso, uma memória criada pelo filme. Uma alegoria sobre o amor humano. O filme volta facilmente para este passado recluso no interior da França, distante dos momentos protagonistas do passado, como a bomba atômica. Por que ele é tão resistente em voltar ao passado e ver o que aconteceu quando da explosão da bomba em Hiroshima? Num primeiro momento porque nenhum dos personagens apresentados estava na cidade quando o fato aconteceu.
Num segundo momento, e talvez o que seja mais importante: o cinema lá não estava. Para dizer a verdade, sim, ele apareceu. Ele filmou os feridos. E aí entra a discussão ética: é certo o cineasta filmar este passado - a explosão da bomba - se valendo de seus artifícios ilusórios? Resnais defende que não. "Porque o esquecimento começa pelo olho", diz um de seus personagens em texto brilhante de Marguerite Duras. Se assim é, o cinema é potencial promotor deste esquecimento. Ele nos fornece os elementos para que criemos uma fantasia do passado. E uma memória artificial de algo que não presenciamos. A diferença nos é posta logo ao início do filme: nos são mostradas imagens feitas à época e reconstituições. A primeira nos mantém ciente de que aquilo de fato aconteceu, nos é posta como dado. A segunda procura nossas emoções. "O que pode um turista fazer senão chorar?", pergunta a mulher ao falar destes filmes. É verdade, que mais podemos fazer? Mas aquela não é uma memória real. É uma ilusão. É construída com a intuição de passar ao espectador a ideia de que aquilo aconteceu, quando foi tudo criado para parecer que aconteceu.
Os catorze anos que separam a explosão da bomba de Hiroshima de Hiroshima, meu amor é feito com toda consciência que poderia ter. O cinema é capaz de voltar no tempo, e o filme poderia nos ter narrado estes fatos do passado. Mas num compromisso ético, ele não fez. Compromisso ético com a história. Com a própria humanidade. O filme não poderia ter retornado catorze anos no tempo para filmar a explosão da bomba porque promoveria o esquecimento. Somos iludidos, e o passado lá se constrói. Ou se reconstrói. O passado deixa de ser constituído de fatos para se tornar uma fábula. Resnais se distancia disso. Seus personagens (que são de Duras também) demonstram a dificuldade de lidar com passado tão doloroso. Um passado que parece ficção e que na memória pode se confundir com tal. Mas a distinção deve estar sempre clara. E este é um dever do cinema.
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