Já
não via este filme há algum tempo. Não desgostei de o ver outra vez. Queria
dizer porque é que o fiz. Há um texto fundamental do Eisenstein sobre o
Dickens que marcou este filme. Há pouco, o arquitecto Raul falou do Eisenstein
e com razão. Nesse texto maravilhoso, disse que não foi o Griffith quem
inventou o cinema, mas o Dickens. E cita precisamente este romance. Diz que
nele estão todas as marcas da ideia do cinema, cinquenta anos antes de o cinema
ser inventado como narrativa. Além de falar, por exemplo, de um capítulo acabar
com um plano geral (como eu tentei fazer) e o capítulo seguinte começar com um
grande plano; e cada personagem ter a sua característica bem definida; chegou
ao ponto de dizer que há uma elipse, a elipse que é a figura de estilo que mais
amo no cinema. Se vocês repararam, em 1/24 de segundo, e feito apenas com um
lençol, passam‑se dez anos na vida da Cecília. Essa ideia, é uma das coisas que
o Eisenstein refere ter sido o Dickens a inventar, uma ideia narrativa
diferente da do romance, uma forma de contar histórias com meios que anunciam o
cinema.
O
segundo ponto, e se calhar o mais importante, é a ideia do cavaquismo. Tínhamos
passado a euforia de uma revolução, houve uma festa enorme, depois houve uma
grande ressaca. E houve uma ordem no sistema que se foi impondo e que hoje está
completamente desenvolvida, ou seja, hoje quem manda não é quem tem saber, é
quem tem dinheiro. Portanto, tentei encontrar equivalentes portugueses e tentei
fazer uma coisa que é a abstracção. Foi mais fácil traduzir por Grandela, e dar
a Gradgrind, que é uma coisa muito difícil que esmaga e torce ao mesmo tempo, o
nome Cremalheira, que só esmaga, não torce. Apesar de ter mantido o que o
Dickens escreveu – for this times traduzi para «este tempo», em vez de «para
este tempo», porque era para aquele momento do cavaquismo, mas tornar aquilo
abstracto, para poder ser visto naquela altura e vinte anos depois, ou vinte
anos antes.
Por
mais estranho que pareça, este filme funcionou melhor em Inglaterra do que em
Portugal, onde não correu muito bem. Em Inglaterra nunca tinham visto o Dickens
adaptado desta maneira. O Dickens tem muito molho, tem muita carne, e tentei
fazer osso, só osso, estrutura, definições e arquétipos. Aqui não há
personagens individuais, são sempre distantes, frias. Na utilização dos
actores, no modo de representar, procurou‑se sempre uma maneira de distanciar –
já chego à arquitectura – para as pessoas poderem exercer um bocadinho de
distância e estranheza, poderem dizer «aquilo é qualquer coisa de mim, mas não
é tudo». E isso é o lugar da reflexão e do pensamento. Para mim o cinema,
continuo a dizê‑lo, nunca é «o quê» nem o «quando», é o modo como se filma. Dou
sempre o exemplo da Madame Bovary. Grandes cineastas fizeram a Madame Bovary, o
Buñuel, o Renoir até o senhor Oliveira fez a Bovarinha do Douro no Vale Abraão. São todos grandes filmes e todos diferentes. O cinema não é a Madame Bovary,
não é o romance, o cinema é o modo como se filma.
O
problema do cinema – e isso é que vou ligar à arquitectura – é ser uma arte de
ladrões, ou seja, nós roubamos todas as outras artes. Não é uma arte pura, é
uma coisa que tem de contar qualquer história, e também tem um pouco de
negócio. A primeira vez que se inventou metia‑se uma moeda, pagava‑se para se
ver as imagens. A arquitectura é uma coisa mais… pura, mais pura, é uma coisa
que serve… Se calhar, o ponto de partida é parecido: temos um espaço vazio – o
que é que vamos pôr lá dentro, e para quê e como? Tem também essa acumulação de
informações para se chegar ao ponto. Mas o cinema é uma coisa de ladroagem,
roubamos à pintura, à poesia, à música. Por exemplo, neste caso, uma coisa que
tentei fazer – e hoje não sei se faria da mesma maneira, e só aí, não em
relação à Cecília, a que já lhe vou responder – foi uma música para cada
personagem, uma música para cada situação. Estão muito marcadas e houve
momentos em que, por respeito ao compositor – neste caso trabalhei com ele
desde o início, ao contrário de outros filmes –, prolonguei alguns planos para
a música ter a última nota lá dentro, para se ouvir. Respeitava o António Pinho
Vargas, que fez uma excelente música, mas não sei se não será música a mais; de
vez em quando gosto do silêncio. Por isso gosto muito daquele plano do cãozinho
a passear com a fábrica ao fundo, em que não se ouve nada a não ser as patas do
cão na água.
Eu
tento ser coerente – o preto‑e‑branco ajuda muito e torna as coisas mais
abstractas –, este amontoado arquitectónico foi rodado em muitos sítios. Este
Poço do Mundo inventado é um pouco do Poço do Bispo, mas também tem Alcântara,
tem o Barreiro, tem as casas dos operários… Às vezes as pessoas dizem: «a
arquitectura dos pobres»… Muita da arquitectura dos pobres é feita por ricos
para lhes fazerem casinhas direitinhas e iguais, de uma maneira funcional, para
os pobres poderem trabalhar. A CUF4, no Barreiro, fez muito isso. Fez casas
sociais com uma certa dignidade, mas para extracção da mais‑valia do trabalho,
para as pessoas poderem render mais. Há uma parte do filme que é estúdio puro:
a casa do Sebastião, apesar de o corredor ser lá em baixo no Poço do Bispo, o
interior é no estúdio da Tobis, portanto é de papelão, cartão. Eu gosto das ideias,
não gosto das coisas, gosto da ideia da morte, da ideia do frio, da ideia da
luta; não gosto das coisas, gosto das ideias. E gosto que essa ideia possa
permitir ao espectador decidir e escolher, não estar condicionado. Também acho
que o cinema nunca é metáfora, nunca. Quando é uma metáfora é uma coisa
condicionante. Uma coisa não é para dizer outra coisa que não seja o que está
ali. É aquilo. É assim.
Há
uma outra questão que há pouco não concluí: muitos dos actores são amadores. A
actriz principal, Luísa, era assistente de montagem; o operário, Sebastião, era
um funcionário público que era amigo do Nozolino; o Pedro Cabrita Reis, que
vocês conhecem, é pintor. Há outros actores lá no meio, mas tentei que os
actores habituados a representar de uma maneira muito mais naturalista fizessem
a abstracção que os amadores sabem fazer. Ou seja, aquela ingenuidade, aquela
insegurança do modo de dizer, do modo de falar, do modo de estar, do tempo, de
uma certa duração de fixação.
A
história desta paisagem arquitectónica é de uma violência atroz e, ao mesmo
tempo, é fascinante. Uma fábrica medonha; desde que uma pessoa ponha uma câmara
– como dizia o senhor Oliveira, para qualquer lugar há sempre um ponto justo
para pôr a câmara –, pode tornar‑se uma coisa fascinante, de pintura, se
estiver o céu indicado, a luz indicada, o tempo indicado para se poder ver. Se
calhar, para os tempos que correm, o filme é relativamente lento, mas de vez em
quando acho que é preciso pausas e tempos para se poder ver e para se poder ouvir.
Em
relação à ideia do circo, na verdade, só a usei no princípio porque o Dickens
tratava tão mal os patrões como os operários. Põe o Sebastião – que talvez seja
a personagem mais humana – como um bufo. E incapaz de dizer não, incapaz de ser
recusado, desprezado. A única alegria que lhe dá – e que está no filme, porque
é um filme sobre o osso, o direito à felicidade dos marginais – é a rapariga do
circo. Mas vai para a instituição, casa‑se, tem um filho, portanto, não é uma
coisa fora do sistema, ou seja, volta à ordem, apesar de estar na desordem. É
verdade que no romance a parte final do circo é uma euforia sobre essa
marginalidade, e são eles que resolvem tudo e resolvem o romance. Eu queria
deixar isso em suspenso, naquele plano fixo em que a menina olha para os
espectadores quando lhe perguntam se é feliz. (Aquilo foi feito de uma maneira
muito estranha, porque estava a filmar com objectivas que me permitiam ter
profundidade de campo. Cheguei a filmar aquela cena do caracol e da Eunice
Muñoz com 11 de diafragma à noite, que é uma coisa completamente insuportável,
com projectores de aviões para ter profundidade de campo – eu gosto da
profundidade –, e não conseguia ter uma objectiva para fazer aquele grande
plano. A objectiva foi feita fora da câmara, com um canudo de cartão – eu gosto
desse lado artesanal das coisas.) Mas gostava desse lado suspenso, que não
permitia felicidade a ninguém. Acho que não se deve resolver os filmes; os
filmes devem ficar abertos e quem resolve são os espectadores. Isto é tudo
falso [a tela de cinema], o que está aqui em cima é falso. O que é verdadeiro é
a relação que se estabelece entre isto e quem vê. O que se vai fazer a seguir,
o que se pensa, o que se decide – porque isto é sempre uma coisa que se
escolhe, um ponto de vista, um modo de filmar meu. Quando se dá a ver, dá‑se a
ver para que essa realidade, a interacção entre o que se passa aqui e o que se
passa na sala, tenha qualquer coisa de verdade. Queria deixar em suspenso, não
queria resolver nada. Há pouco estava a falar da Inglaterra: eles nunca tinham
visto o Dickens desta maneira, ou seja, tão no osso e tão pouco na carne. Não
estou a dizer que é bom ou que é mau; estou a dizer que é diferente. No Dickens
há sempre situações humanas de desespero, é muito melodramático. Eu não queria
isso. Queria a chamada matéria, tentar chegar à matéria das coisas, dos
pensamentos, das acções, e não – como é que se diz? – a condução do espectador.
O espectador que decida, nunca eu.
trecho extraído de O lugar dos ricos e dos pobres no cinema e na arquitetura em Portugal.
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