domingo, 13 de setembro de 2015

Um filme falado de Manoel de Oliveira (2003)


Fazer um filme que se baseie por completo nas falas dos atores é extremamente contrário ao motor primeiro do cinema: a imagem. Nestes casos a imagem passa a segundo plano. Tudo o que passa a ser visto e a importar no filme são aqueles grupos de pessoas que falam, falam sem parar. Isto é muito positivo quando vamos ao teatro e vemos atores recitando os monólogos de Shakespeare ou de Brecht. No cinema, não. Mas como na arte as afirmações universais não possuem lugar, é sempre bom ser surpreendido por alguma obra que surja para nos mostrar um algo além do que o cinema pode ser. Não enquanto meramente um teatro filmado em que atores recitam textos que lhes são entregues, Mas enquanto cinema de verdade.

Um filme falado de Manoel de Oliveira é película sobre a história da humanidade (ou o tempo) e a linguagem. Em cena temos uma mãe, professora universitária de história e sua filha criança. Saem de Portugal em direção à terras distantes: rumam às índias como faziam seus antepassados. Mas desta vez passando pelo canal de Suez, maravilha do mundo moderno que permite a diminuição de tão exaustivo percurso. Como prova disso esta viagem não é realizada para conquistar nada, e sim para a realização de um encontro, o encontro do marido/pai da dupla que sai de terras lusófonas. Durante todo o trajeto (e o filme) o que teremos será uma aula de história. A mãe leva a filha até sítios históricos para poder contar-lhe um pouco do passado de seu povo, um pouco do passado da civilização. Em parte, apresenta-se ali a decadência.


Em A viagem ao princípio do mundo Manoel de Oliveira já nos mostrava como o passado está presente nas coisas. A marca do encosto de um banco numa árvore permanece lá, mesmo muito depois de o banco haver sido retirado. São pedaços de um passado que permanecem ainda presentes, ainda que não nos lembremos deles. Eles estão presentes nas atitudes humanas, que levaram a derrocada destas civilizações passadas, como diz a historiadora à filha curiosa. Por que eles se matavam?, pergunta a menina. A mãe diz ser da natureza deles. Não somente deles, podemos dizer após vermos o fim do filme, mas também nossa. O homem continua a ser o mesmo de séculos atrás, simplesmente ganhou maior poder de fogo.

Em cada parada do navio de cruzeiro que leva mãe e filha até Bombaim, embarcam algumas figuras famosas, que aparecem em revistas e jornais, como notam a dupla que acompanhamos por toda a película. Já na segunda metade do filme, Manoel de Oliveira dá um descanso às suas personagens depois de tanto caminharem, depois de tanta história revisitada, para colocá-las no restaurante do navio. Lá, veem o capitão se reunir com aquelas senhoras que vimos embarcar em cada parada. Uma senhora francesa, uma italiana, outra grega. Estão sentadas em uma mesma mesa e cada uma tem sua vez estipulada para se apresentar, num jogo, como se refere o capitão. E cada uma prefere falar em sua própria língua. Parecem se compreender, e dizem isso a certa altura. O impasse da torre de babel, como relembra o capitão, foi solucionada naquele momento.


A discordância entre as civilizações pode ser muito comodamente resolvida com resposta tão simples, a falta de entendimento por causa da língua. Mas não é este o caso. Sentadas à mesa, as mulheres percebem que conseguem se comunicar sem a necessidade de tradução. A única língua que todas parecem falar é o inglês, idioma que dominou o mundo - e não equivocadamente Manoel de Oliveira pôs um ator estadunidense como capitão de seu navio, o homem capaz de levar-lhes para qualquer lugar. O problema é que todas as civilizações colapsam. Prova vinda de dados históricos. As potências caem e agonizam, como é o caso da Grécia. O país que berço da cultura ocidental, agonizam com uma língua que somente é aprendida em seu próprio solo e nas academias - como lembra a professora de história que estudou o idioma, mas esqueceu.

O filme se divide nestes dois momentos: o filme aula ou filme turismo e a relação intercultural. O primeiro é interessantíssimo. É como se Manoel de Oliveira nos levasse a pontos turísticos da Europa (e depois do Egito) com direito a guia. Lembra o início do cinema, quando os filmes eram curiosidade. E para aumentar ainda mais a curiosidade das pessoas e as manter curiosas com o que seria passado nas sessões seguintes, as empresas filmavam países exóticos para entreter suas plateias. Manoel de Oliveira faz coisa semelhante, mas não abandona um pouco de reflexão, dando motivos para conhecermos a história. O segundo momento é, no mínimo, curioso. São representantes de quatro civilizações: os gregos que dominaram a cultura ocidental na antiguidade, os italianos (ou romanos) que dominaram na idade média, os franceses que fizeram seu domínio durante a modernidade, e os norte-americanos que dominam hoje. Todos impuseram sua cultura sobre o resto do mundo. A portuguesa se senta naquela mesa, mas quase nada fala. A sua inserção naquele ambiente provoca uma mudança: o diálogo necessita ser falado em inglês. Com isto, logo fica clara quem ali é que está por cima, desta vez.


Neste construto estético, Manoel de Oliveira nos insere numa relação de cotidianidade. Estamos acostumados a encontrar outras pessoas e conversar. Não fazemos malabarismos ou coisas do tipo para poder nos comunicar com elas, simplesmente falamos. E um filme falado causa esta impressão. E somos inseridos num filme que nos passa este sentimento de cotidiano. Um cotidiano diferente, é verdade, um cotidiano de viagem. A principal relação que se constrói e que nos causa empatia é da mãe com sua filha. E nada de exagerado é feito pelo diretor. É o asseguramento daquele cotidiano. Numa quebra desta relação, eis que Manoel de Oliveira decide quebrar este cotidiano ao final, como já sugerimos um pouco antes*. Estão as mulheres sentadas a ouvir a mulher grega cantar quando vem um marujo falar com o capitão. Sussurra-lhe algo ao ouvido. O capitão sai e logo retorna, há uma bomba a bordo. Uma das civilizações ficará para trás e explodirá junto com o navio. Não estávamos preparados para este final sem dúvida. Mas será que alguma civilização estava preparada para seu declínio?

Este texto faz parte de uma trilogia publicada aqui no blog sobre Um filme falado. São três leituras de três espectadores diferentes. Leia aqui a de João Bénard da Costa, e de Ruy Gardnier.

*Esta quebra do cotidiano me remeteu a alguns autores e filmes, em especial o clássico de Chantal Akerman Jeanne Dielman, filme de pouco mais de três horas de duração em que acompanhamos o cotidiano básico de uma dona de casa (levantar, fazer comprar, tomar banho, preparar o café e o almoço...), o que não nos prepara para o desfecho surpreendente que se apresenta.

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