As próximas três postagens serão uma continuação. Cada uma delas caminha em sentido comum: a discussão da moral cinematográfica não enquanto conteúdo, mas levando em consideração principalmente a forma do filme. Separadas podem não fazer tanto sentido quanto fariam juntas.
A problemática aqui levantada em três partes parte de um artigo publicado ainda este ano.
INTRODUÇÃO
Quando
do lançamento de Hiroshima, meu amor (RESNAIS,
1959), Jean-Luc Godard – cineasta explosivo, crítico propenso à criação de
aforismos – desenha a fórmula preciosa para os formalistas do cinematógrafo: travelling é uma questão de moral.
Poderia ser uma das tantas frases do diretor de Acossado que passariam em branco, não fosse o uso feito dela pelo
crítico e futuro cineasta Jacques Rivette em 1960. Sua crítica sobre Kapò (1959), de Gillo Pontecorvo, pouco se referia ao malfadado filme, mas
ainda assim era o suficiente para fazer com que gerações inteiras de cinéfilos
sentissem seus estômagos darem voltas devido às náuseas provocadas por um movimento
de câmera. Sim, um movimento de câmera! No presente estudo, faremos uma
discussão sobre o uso do travelling
do cinema e questionamento sobre a moral do cineasta ao utilizá-lo. A questão
trespassa o simples movimento de câmera e chega às formas de representação
cinematográficas. Veremos que a moral não é somente uma questão de conteúdo, é
também uma questão estética.
SOBRE TRAVELLING
Antes
de começarmos qualquer discussão, expliquemos o que é um travelling para aquele leitor pouco familiarizado com a linguagem
cinematográfica. Travelling consiste
em um movimento em que a câmera deixa um ponto físico no cenário e passa a
mover-se pelo mesmo sob a guia do diretor (MARTIN, 2011, p. 47). Exemplo: João,
herói de nosso filme hipotético, espera ansiosamente por seu ônibus. Estica o
pescoço para tentar enxergar melhor, num ato que claramente demonstra seu
nervosismo e ansiedade. A câmera, neste momento, move-se para o lado e segue em
direção a um ladrão que está localizado poucos metros atrás de João. Cria-se o
suspense. O espectador sabe da presença do ladrão, mas o protagonista da
história o desconhece. Sabemos, porque a câmera deixou o seu ponto fixo no
cenário (em frente a João) e nos mostrou que algo está a ameaçá-lo.
Um
movimento como o travelling possui
algo de mais significativo do que possa parecer. Para a história do cinema, a
câmera que percorre os cenários transforma-se em agente ativo frente à
representação fílmica e não mais possui a passividade de outrora. Nos
primórdios do cinematógrafo, a câmara de cinema permanecia parada – como um
“regente de orquestra” como costumeiramente é chamado – em frente ao cenário
simplesmente observando aqueles corpos ágeis que interagiam para seu deleite. O
cinema consistia de um teatro filmado. Em 1896, como que por acidente, um dos
cinegrafistas a serviço dos irmãos Lumière – inventores do cinema – cria o travelling ao filmar o casario histórico
de Veneza a bordo de uma gôndola (MARTIN, 2011, p. 32). Este papel de agente
ativo referido acima, diz respeito a um cinema mais consciente de sua condição
de cinema: reconhece seus modelos de
representação e trabalha sobre eles para moldar o espetáculo cinematográfico
partindo das ferramentas que tem em mãos, o travelling
e o close-up por exemplo. Mas como
veremos neste texto, esta consciência de cinema enquanto cinema deve permanecer mesmo para aqueles momentos em que este “ser
ativo” do cinema (formador de espetáculo) recue para que dê espaço a um cinema
de consciência política.
Travelling
é este movimento, que por vezes pode ser envolvo em uma aura de complexidade.
Ele é um movimento do qual muito gostam os cineastas de um cinema pop devido á agilidade que ele emprega
ao filme. A câmera corre pelos cenários, pelas ruas, entre os carros em alta
velocidade, conferindo ao filme um quê de frenético. É também um movimento
invasor. Quando a câmera é movida em direção a um rosto ela disseca muito mais
do que a expressão facial do ator: ela apresenta toda a complexidade do
sentimento que o personagem está a sentir. Quando ela corre em direção a um pai
atordoado com o roubo de sua bicicleta, que confunde um garoto com o ladrão,
este movimento traduz a humilhação daquele homem frente à multidão que grita o
seu equivoco (Ladrões de bicicleta).
Quando em câmera lenta, ele pode exprimir o desejo de um homem por uma mulher (Touro indomável). Em outros casos, ao
passear por corredores de um hotel de luxo, ele está a nos apresentar a
intricada rede de lembranças da mente humana (Ano passado em Marienbad). E por estes e tantos outros motivos ele,
por vezes, pode ser considerado como sendo a síntese do espetáculo
cinematográfico.
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