Este
texto serve como continuação de A palavrano cinema, já publicado aqui. Ele surge para suprimir um espaço que se
encontrava no texto passado, mas que não diminui sua importância. Isso porque a
imagem ainda é o ponto principal da arte cinematográfica e é o que melhor deve
ser pensado e tratado por quem faz filmes. Mas isso não quer dizer que possa
ser trabalhado um quesito a mais do cinema: o extracampo.
O
que é o extracampo? Ele é aquilo que está fora do campo e que de alguma forma
faz parte da mise-en-scène. Com o passar do tempo se desenvolveu todo o potencial
deste não-estar da imagem cinematográfica. Escrevo não-estar porque é uma
presença que não se faz presente. Pode servir como uma ameaça que não aparece
no quadro. E é exatamente por não aparecer que cria toda força dramática[1] da
trama do filme. Porque este algo que não está na imagem pode a qualquer momento
aparecer em quadro. É criada uma sensação exatamente a partir desta presença
faltante.
Comumente
é tratado como sendo uma ameaça. Esta é anunciada pela palavra. Algum personagem
anuncia o perigo e logo começa a paira no entorno do quadro este risco, aquilo
que quer invadir o quadro e expulsar dele os protagonistas. Deste quadro transbordam
sensações diversas, mas a que melhor se apresenta é a tensão. Quando é privada
ao espectador de ver algo porque também os personagens não podem ver, quem
assiste passa por semelhante temor daquele pelo qual passa seu querido herói.
Daí
se faz uma grande diferença logo de início. Existem aqueles filmes que optam
por mostrar logo a tal ameaça e que, por esta escolha, caem em um fracasso
artístico, e aqueles filmes que, escondendo a ameaça, se fazem bem sucedidos. No
primeiro caso estão os filmes de terror que constroem sua relação com o
espectador pautado pelo choque das imagens cruas que preferem mostrar: o chamado
terror gore. De outro lado há o suspense que prefere tirar do espectador a sua
onisciência e, com isso, faz dele uma figura a mais no filme.
É
este segundo caso que quero me aprofundar no presente texto. Para isto tomemos
primeiro o clássico do faroeste No tempo
das diligências. Iniciamos com este filme para deixar claro que não é
somente no cinema de terror ou de suspense em que se podem ser feito o trabalho
com o extracampo. No caso deste filme de John Ford, a trama começa com
operadores de telégrafo recebendo a notícia de que o índio Geronimo está nas
proximidades. Mesmo sob esta ameaça um grupo decide cortar o deserto numa
diligência.
Neste
filme a ameaça de Geronimo se faz presente em praticamente todas as cenas,
apesar de ele somente aparecer em quadro nas últimas cenas do filme. Este
embate é criado pela palavra. A palavra falada que anuncia que a ameaça existe.
A ameaça, esta coisa imaterial que por isso não pode surgir em cena. Como anunciar
este perigo se não por meio da linguagem falada ou escrita? Será que o
espectador teria a mesma sensação de perigo se, ao invés de ouvirmos da boca
dos operadores de telégrafo que Geronimo está por perto com seu bando, víssemos
os sinais de fumaça dos índios? Provavelmente não. A palavra serve neste caso
como um meio imaterial que nos deixa cientes de algo tão imaterial quanto: o
futuro.
Esta
coisa que somente imaginamos, que temos a esperança de que algum dia chegue,
mas que nunca chegará (vivemos sempre no presente). Mas no cinema este porvir
se torna presente em algum momento. Sabemos disso enquanto espectadores e, de
certa forma, também sabem os personagens. Eles, mais que nós, esperam que esta
ameaça nunca chegue a se concretizar. Mas em algum momento ela se fará presente
e tomará a imagem. Geronimo por fim aparece em cena e tal como era anunciado,
ataca os antigos membros constituintes daquele espaço que agora ele quer
ocupar.
A
materialização de Geronimo se transforma em um meio de materializar aquilo que vinham
temendo os personagens. Aquela ameaça que transbordava para fora da tela na
sensação de tensão. Esta que cresce até que não consiga mais ser simplesmente
uma sensação para tomar forma material e lá se faz o índio vilão em imagem.
Algo
semelhante se dá em Tubarão. A ameaça
do animal assassino que vive por debaixo das águas está sempre à espreita
deixando assustados os banhistas de verão que foram até a praia. Esta ameaça os
deixa atemorizados exatamente por esta característica: ele não pode ser visto,
mas sentido. Aqui a ameaça ganha contornos mais agressivos. Diferente de No tempo das diligências, não é somente
por meio das palavras que se constitui a ameaça. Na primeira cena do filme a garota
que participava de um luau corre até a água e lá é atacada por algo de debaixo
da água. Neste momento não sabemos o que está debaixo da água atacando, mas
ainda assim existe a ameaça que se faz presente no extracampo.
Depois
de certo tempo, certos do que seria a ameaça, um grupo de pessoas parte para a
caçada do tubarão. Esta ameaça se constitui principalmente graças à palavra. Mas
diferente do filme de Ford, aqui os ataques são mostrados fazendo com que o
espectador possua algo de concreto pelo qual temer. Existe um perigo real por
debaixo daquelas águas, escondido em algum canto fora da imagem. Queremos ver,
mas esta possibilidade não nos é dada. Não. O que nos é permitido ver são os
ataques, os corpos se contorcendo pela dor da morte iminente, o sangue que inunda
a praia. Vemos o efeito, não a causa (ou causador).
Em
ambos os filmes existe um conteúdo vibrante para além das imagens que é
atestado pela palavra escrita e falada. Em ambos os casos a ausência da
presença da ameaça em quadro faz com que as imagens demonstrem um peso de algo
que está para além dela. Algo que se faz presente no tempo fílmico. Em ambos os
casos o extracampo desempenha papel de grande importância para o
desenvolvimento da fábula. Este extracampo faz surgir a importância da palavra,
este elemento estranho ao cinema, no filme. É aderida pelo cinema para que se
atinja a excelência na expressão de uma sensação. O espectador, embora nem sempre consiga
entender, sabe que a palavra é um artifício estranho ao cinema e por isso sofre
com esta ausência da imagem à que a palavra se refere. A palavra sugere uma
imagem que mais tarde surgirá no filme. A palavra constrói esta espera
angustiante. Uma vez surgida a imagem se desfaz a espera e tem-se, enfim, a
mudança de sentimento.
O
cinema faz a deglutição do que lhe é externo para que passe a constituir parte de
seu ser. Ainda assim a palavra não é algo que deva ser considerado antes das
imagens. Um filme deve ser construído a partir de suas imagens. Embora No tempo das diligência e Tubarão se valham da palavra para
anunciar este perigo que paira sobre os personagens, está ali impressa nas
imagens o sinal deste temor, seja pela expressão dos personagens (No tempo das diligências) seja pelo
ataque do monstro não visto (Tubarão).
[este texto faz parte da série a palavra no cinema publicada aqui no blog em novembro de 2014. Este texto é precedido por A palavra no cinema e é seguido por A palavra e seu império]
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