por: André S. Labarthe
LA PART DU FEU
Para
se jogar o jogo da novidade, de concessão em concessão, o cinema tem recusado
alguns dos mais belos fragmentos do duplo sentido do termo dia (jour) moderno que às vezes leva as garrafas mais antigas
armazenadas no espírito humano. O dono delas é Charles Laughton que rompe o silêncio
e nos convida a esta insólita descida ao inferno da memória. Sob o pretexto de
uma “história de assassinato”, tão boa quanto qualquer outra, ele pincela sob nossos olhos um inquietante retrato da vida infantil, comparável em mais de
um ponto aos cantos II e III da obra de Lautréamont.
Durante
a estada na prisão, Harry Powell, um pastor que não está em sua primeira
fraude, entra em contato com Ben Harper condenado a ser enforcado por ter
roubado 10 mil dólares que jamais foram devolvidos. De volta à liberdade, seu
primeiro cuidado é de casar a viúva, Willa, mãe de duas crianças, Pearl e John,
na tentativa de colocar a mão no dinheiro. Mas Willa, ele logo percebe, ignora
o esconderijo. Ele a mata e a atira ao rio ao volante de seu carro. Então
começa a sarabanda infernal. Vez e outra com ameaças o pastor não chega a
adivinhar onde se encontra o dinheiro, numa boneca que as duas crianças não
deixam nem de dia nem de noite, que quando aterrorizadas,
fogem e sobem o rio numa barca. Eles são recolhidos ao amanhecer por uma
agricultora de grande coração que os guarda com um fuzil na mão. É ela que fere
o pastor e o faz ir preso enquanto John, tendo uma crise nervosa, rasga
furiosamente a boneca de onde escapam dos 10 mil dólares.
Tal
é a trama geral de O mensageiro do diabo
(ou A noite do caçador), o seu
conteúdo manifesto. Mas se nos interrogamos acerca da significação desta noite
de terror, como evocamos o aspecto onírico do conjunto que vem reforçar a
identidade plástica da prisão de Ben Harper e a do pastor, é a seu conteúdo
latente que devemos nos referir.
Tudo
se ilumina, com efeito, se considerarmos este filme como a história de uma
regressão que conduz justamente à extrema origem da vida de duas crianças
vindas recentemente da vida aquática (intra-ulterina) à vida pulmonar. O filme
começa pela exposição detalhada de um duplo complexo de Édipo positivo. O pastor
Harry Powell, o ogro dos contos infantis, (que nos aparece um instante antes
numa mesa abundantemente servida, como o próprio Laughton mais tarde em seus
filmes) é o Pai “usando seus instrumentos de tortura” (Chant de Maldoror). Em sua companhia a pequena Pearl abandona
facilmente a boneca, símbolo maternal, manifestando assim uma fixação a seu
lugar. Já John ao contrário, a fixação à mãe, simbolizado por seu apego à
boneca, se traduz numa contrariedade ao Pai
por uma atitude hostil que conduz a perpetração (falha) do assassinato
(assassinato de Laoïs), atitude determinada pela ameaça do Pai com sua inseparável faca, símbolo dissimulado da castração.
A
segunda parte do filme surge sob o signo da regressão. Assistido pela
castração, John leva sua irmã e as duas crianças fogem remontando ao rio. Fazem
lembrar que entre tempos o pastor, para se livrar da mãe, a jogou na água e por
este ato realizando o homônimo mãe-mar (mer-mère, no original). É então, depois da ansiedade
da perseguição, o inconsciente ultra-uterino de sua origem a que retornam as
duas crianças. Como a boneca, a água é o símbolo da mãe e não é inútil
sinalizar que remontar ao rio, é ao princípio a que remontam John e Pearl.
Porque, o amanhecer, ao amanhecer de suas
vidas, eles adormecem enfim, eles retornam à segurança do primeiro sono: “e
como nos tempos antigos eles podem dormir no mar” (Eluard). O auge da regressão
é evidentemente o “ventre maternal” simbolizado aqui pela velha fazendeira que vela
sua segurança e que assume a figura abstrata da Mãe. A prisão do pastor, por sua identidade como de seu pai,
desperta subitamente em John a dolorosa consciência de seu ato: ele é o
assassino de seu pai.
Se
agora nós nos apegarmos a investigar o clima religioso que banha o filme, uma
segunda interpretação vem a sobrepor a anterior.
Em
“Moisés e o monoteísmo”, Freud fez
derivar o conceito de pecado original do “sentimento de culpabilidade devido a
um sentimento reprimido de hostilidade contra Deus”. Harry Powell, este
estranho pastor que porta as palavras AMOR e ÓDIO tatuadas na primeira falange
de cada mão, é o Deus do Antigo Testamento, o “bandido celeste” dos Cantos de
Maldoror, o mais forte cuja cólera é terrível. Antes dele, John e Pearl, como
as pessoas de Moisés, estão cheios de medo e de respeito. Pouco a pouco, “o
sentimento reprimido de sua hospitalidade contra ele” se materializa nos 10 mil
dólares que eles escondem na boneca e que torna-se assim o símbolo de um ato
que eles não cometeram (a morte de Ben Harper). O parricídio final, o povo
judeu linchando (como no filme) seu próprio Deus, dá um sentido a sua
culpabilidade até então sem objeto real, a marca real. O símbolo dos 10 mil
dólares, doravante inúteis, é destruído.
Tal
como se apresenta, com suas imagens que vem do Expressionismo sem ter o álibi
cronológico (devido a Stanley Cortez, o operador de The magnificente Ambersons (Soberba)),
O mensageiro do diabo (ou Noite do caçador) é o filme da infância.
Outro Lautréamont, vejo apenas Bellmer, com seus “Jeux de la poupée” ou Michaux
porque ele começa a falar da borracha, por render uma atmosfera semelhante de
sexualidade perturbada.
O mensageiro do diabo
(ou Noite do caçador), belo “como a
lei de para o desenvolvimento de mama nos adultos nos quais a propensão de
crescimento não é relatada com a quantidade de moléculas que seu organismo
assimila” (Cantos de Maldoror).
(LABARTHE, André. em Cahiers du Cinéma, n° 60, junho de 1956, p. 41-42)
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