Charles Chaplin entre a comédia e a tragédia
Se o personagem do vagabundo nos filmes de Charles Chaplin sofreu bastante, foi porque seu criador também sofreu. Mas todo este sofrimento não era visto da forma como poderia ser enxergada por grande parte das pessoas que por eles passam. Chaplin reverteu este sofrimento em um poço de criatividade de onde poderia retirar um sorriso. A tristeza das situações impressas na película de um filme do comediante não vai além do riso em frente à condição miserável de nossas vidas. Porque para sobreviver nós temos que comer, para que possamos comer na sociedade atual temos que ter dinheiro, então os ricos se fartam enquanto os mais pobres passam fome. Temos que trabalhar para poder sobreviver. Neste quesito, em Vida de cachorro (a dog's life, 1918) Chaplin leva este sonho para um extremo. O vagabundo e sua paixão vão morar em uma fazendo própria em que podem comer do fruto de seu próprio trabalho, não precisam comprar a comida.
Chaplin, que durante sua infância turbulenta passou fome, sabe como poucos transportar este sentimento para tela. É a falta de algo essencial para a vida e do qual de repente ele se vê privado. Mas em mente tenho Em busca do ouro, um filme que está no limite entre as experiências reais do seu autor e das histórias que ele escutara. A cena em que o Vagabundo está numa cabana no meio de uma tempestade de neve, preso com outro minerador, e ambos estão com fome é um exemplo desta frágil separação entre a comédia e a tragédia com a qual Chaplin tão bem sabia trabalhar. Eles estão com fome e podem vir a morrer se não comer. Então o Big Jim começa a enxergar seu companheiro como uma galinha. E irá comê-lo. O que ninguém poderia imaginar que renderia uma situação cômica, se transforma em uma comédia que até hoje faz plateias gargalharem. O mais interessante é saber que o diretor tomou esta ideia de uma tragédia que ocorreu com mineradores que ficaram presos em uma montanha. Ele conseguiu ver o riso nas lágrimas. - Retomo aqui, para título de comparação, a sequência do sonho em Os esquecidos (los olvidados, 1950) de Luis Buñuel. É uma cena que, assim como a citada, trata a fome de forma onírica. Durante um sonho, um dos garotos retratados no filme se vê de volta a sua casa com sua mãe recebendo-o de braços abertos e dando-lhe comida. Ele está com fome e esta fome o atormenta até mesmo em seus sonhos.
Para continuarmos esta separação entre a comédia a tragédia nos filmes de Chaplin nos lembremos da cena da tempestade que assola a cabana em que o Vagabundo se encontra. O vento e o gelo efetuam diversas agressões a cabana a ponto de vermos as madeiras que servem de parede se curvarem com a força do vento. É um exagero que leva à comicidade. Mas um mesmo exagero é empregado em outro filme, mas que desta vez serve como ponto decisivo para a criação do drama da personagem. O filme é Vento e areia de Victor Sjostrom com Lilian Gish (the wind, 1928) que se passa em uma localidade no meio do deserto em que o vento está sempre a soprar de forma agressiva, como se quisesse expulsar os homens daquele lugar. Neste aspecto se assemelha à composição chapliniana, mas o tom dado a esta tempestade constante não é o de comicidade, mas o de desespero. Ficamos desesperados e atordoados junto com a protagonista devido a todo aquele vento que levanta a areia do deserto. O vento está sempre batendo nas paredes de seu casebre, quebrando janelas, desenterrando corpos do chão...
Um terceiro ponto que poderíamos fazer entre a comédia chapliniana e o suspense hithcockiano. Logo no início do filme temos o Vagabundo caminhando pela beirada de um precipício e seguido de perto por um urso que está à espreita. É o exemplo típico do que seria uma cena de suspense em um filme de Alfred Hitchcock. O espectador sabe o que vem, o perigo pelo qual está passando seu querido herói, e quer preveni-lo, mas não pode. No caso do filme de Chaplin, ninguém terá esta reação de prevenir o Vagabundo do risco que ele corre porque todos nós queremos ver o que poderá acontecer caso o urso o pegue, qual seria sua reação. Mas no caso de um filme de Hitchcock, este urso representaria um real risco para a vida de seu personagem e por isso nós, espectadores, teríamos uma reação completamente diferente.
O que podemos tirar de tudo isso? Que Chaplin é um sujeito sem coração que ri do que não deveria ser engraçado? Muito pelo contrário! É a habilidade de um artista de poder enxergar o mundo e ver nele beleza, mesmo naquelas situações em que ninguém poderia imaginar que existiria qualquer sinal de beleza. Este é um dos aspectos mais encantadores da filmografia de Charles Chaplin, esta oscilação entre o riso e as lágrimas, entre a alegria e a tristeza. Porque, mesmo fazendo da tragédia uma comédia, Chaplin ainda sabia fazer seus espectadores chorarem, o que mostra que ele sabia muito bem até onde poderia ir para provocar o riso e até onde ir para provocar o choro. Um verdadeiro artista, portanto.
Publicado originalmente no Jornal Fuxico - UEFS.
Publicado originalmente no Jornal Fuxico - UEFS.
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