"'A propósito', disseram-me, 'em geral os palhaços são homens. Ao contrário, as maiores figuras de palhaço de seus filmes precedentes são Gelsomina e Cabíria, duas mulheres. Por quê?'"
Na realidade o único grande palhaço mulher que me lembro é miss Lulí. Gelsomina e Cabíria, em meus filmes, são dois augustos. Não são mulheres, são assexuados. São Fortunellos.
Os palhaços não têm sexo. Grock tem sexo? Carlitos tem sexo? Recentemente vi O circo, uma obra-prima absoluta. Mas Carlitos com certeza não era aquele homem patético de que tanto se falou. Era um gato feliz, que sacode os ombros e vai embora.
Voltando ao sexo dos palhaços, o gordo e o magro dormem juntos. São dois augustos cheios de inocência, com uma absoluta falta de caráter sexual. Fazem rir por isso.
Sempre me impressionou a visão destacada e imparcial com que Buster Keaton encara as coisas, os homens, a vida, e que não se parece em nada com aquela de Carlitos, sentimental, romântica, cheia de indignação e de críticas sociais. Buster Keaton não ameaça com o sentimento, suas lutas não procuram reparar erros, injustiças, não querem nos comover ou indignar. Ao contrário, parece que seu esforço obstinado seja no sentido de nos sugerir um ponto de vista, uma perspectiva completamente diferente, quase uma nova filosofia, uma religião que vire do avesso e torne ridícula e inútil todas as ideias, todas as interpretações, os significados, os postulados congelados num conceitualismo inalterável: um ser bufo que venha diretamente do zen-budismo. E, de fato, ele tem a imperturbabilidade, a ausência de reflexos dos orientais; toda sua comicidade está na comicidade dos sonhos nos quais a alegria, a leveza, o aspecto engraçado são vividos em um nível profundo, uma enorme risada silenciosa no imenso, inconciliável contraste entre nossos pontos de vista e o mistério das coisas.
Keaton é moderno, atual. Hoje, com ele nos vemos vivendo situações, acontecimentos, que nos deixam repletos de um estupor que paralisa, petrifica, nos deixa fixos, imóveis, sem reação, assim como ele era.
Em resumo, o tipo de ator que sempre me encantou e fascinou, e pelo qual tenho, a cada vez, um sentimento de obscura e excitante predileção, é o ator-palhaço. O talento de palhaço que os atores em geral, sabe-se lá por que obscuro complexo, continuam a ver com antipática desconfiança é, para mim, sua qualidade mais preciosa, talvez já o tenha dito, mas estou com vontade de repetir, considero-o a expressão mais aristocrática e autêntica de um temperamento."
(FELLINI, F. Fazer um filme. Tradução: Monica Braga. Ed.: Civilização Brasileira. p. 174, 175)
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