Finda a segunda grande guerra e a população mundial se depara com as imagens do horrores promovidos no velho continente. Mais do que serem assombrados pelos fantasmas dos soldados mortos, estas imagens trazem ainda os espectros passivos de quem morreu sem lutar. Os campos de concentração nazistas eram, para muita gente, uma novidade desagradável. Os soldados aliados chegam aos territórios ocupados pelas forças alemãs e os encontram em todos os lados. Junto a eles, equipes jornalisticas munidos de câmera de filmes coloridos e em preto e branco documentam a barbárie que criam imagens. As pilhas de corpos, de roupas, de óculos, de cabelos. A humanidade reduzida a peso, a números. O homem enquanto coisa.
Em frente a esta realidade até então velada, Adorno, filósofo alemão, é primeiro a dar a sentença: não há mais poesia depois de Auschwitz. No cinema, este pensamento é seguido no país ao lado, na França, onde Godard e alguns de seus parceiros de Cahiers du Cinéma enxergarão o grande mal do silêncio imagético do cinema. A documentação tardia dos campos de concentração somente serviu para mostrar ao mundo o resultado de tudo aquilo, ao invés de ter podido mostrar a sua construção e promover o alerta. O cinema, inserido politicamente neste mundo de homens políticos, não pode deixar passar algo assim.
Passam-se anos até que o cinema possa redimir-se de seu silêncio. E é justamente na América-Latina onde ele encontra as injustiças do mundo necessárias de serem denunciadas. É verdade que a miserabilidade do povo latino-americano já vem de muitos anos, e não será em 1970 que se mostrará seu princípio. Mas o objetivo não é este. Porque há outro ser surgindo, outra sombra que se ergue em frente ao sol da liberdade e que cobre milhões de pessoas. Mais uma vez, o fascismo se levanta fazendo com que o povo seja oprimido para que alguns pouco beneficiados possam se servir dos bens de um país rico.
Neste processo, A batalha do Chile surge como um documentário imediatista. Utilizando filmagens inteiras de material que as televisões normalmente recortam para utilizar segundos, Patricio Guzmán encontra o cerne realista de sua profissão de documentarista. A câmera de filmar de Guzmán (apesar de não dirigida por ele) é sempre ciente de produzir um filme, um documento de uma época (porque, inicialmente, servem à tevê, veículo imediatista criador de imagens descartáveis). As imagens são mantidas desde o bater da claquete (que aqui é a mão do entrevistador no microfone que ele segura e aparece na imagem) até o surgimento das informações relevantes ou não. O primeiro ato que diferencia este filme de seus antepassados é exatamente este detalhe: um filme que deixa abertamente o fato de ser um filme.
A câmera de filmar é capaz de documentar um fato histórico. E assim, sempre em zoom, A batalha do Chile insere seu espectador dentro de um processo divisor de um país, um processo político. Nas ruas, a câmera encontra multidões de pessoas, gritos distantes e próximos, pessoas sorridentes ao ver que foram escolhidas pela equipe para dar seu testemunho. Abrem as portas de suas casas para dizer em quem votou. Na eleição em que existem dois lados bem definidos: a esquerda popular socialista, e a direita conservadora de viés religioso.
Os resultados das eleições, acompanhados de perto por todos, inicialmente mostra um favorecimento da direita conservadora, mas ao abrir outras urnas, o crescimento da esquerda se mostra vencedor - normal em qualquer eleição, visto que em algumas zonas eleitorais existem eleitores de certo perfil eleitoral. Acreditando ter havido fraude no processo, um primeiro sopro de um futuro que Guzmán nos mostrou nos primeiros frames de seu filme: a violência golpista. Se o filme abre com o bombardeamento do palácio do presidente da república, é porque um processo lento foi sendo construído que o levasse até este momento. Processo lento que também enxerga a explosão de bombas, como ao não admitir a derrota nas eleições.
O aprofundamento desta separação entre oposição e governo somente cresce com o passar dos meses. Os burgueses lutam para ter seus benefício de mandatários únicos de um país trazidos de volta para si. A esquerda, que inicialmente acreditou ter saído vitoriosa das urnas, se vê derrotada dia após dia no parlamento. E o povo, por sua vez, sentindo as dores destas pancadas. Para enfraquecer o governo, os empresários tentam parar o país. A oposição monta seus sindicatos para poder unir alguns trabalhadores em prol de sua causa. Todos estes atos acompanhados de perto pelas imagens agrupadas por Guzmán, que mantém as gravações sem corte, em que ouvimos a equipe falando. É necessário manter o realismo deste filme, evitar o discurso manipulador próprio do totalitarismo que distorce os princípio ideológicos da montagem para transformar o cinema em arma propagandística.
As forças de esquerda resolvem sair às ruas também. Numa passagem em frente ao partido Democrata Cristão são recebidos com tiros. As imagens são brevemente captadas pelos câmeras de Guzmán, que também necessitam se proteger para não serem mais um dos feridos. Mas enquanto a câmera ou procura se esconder ou procura as imagens dos atiradores no prédio, os sons dos tiros ecoam para além da imagem. Pouco depois, o narrador fala que houveram naquele dia seis feridos e um morto - a impotência de um cinema realista de ser onipresente, próprio a um cinema transcendental, fictício. Acompanhando o funeral deste morto, comparece uma multidão de chilenos que cobre as ruas de Santiago.
A necessidade estética do fascismo: a organização dos corpos, a uniformização, o simbolismo (nos braços)* |
Depois desta passeata, em que a greve dos sindicados que apoiam a oposição ao presidente Allende chega ao fim, tanto direita quanto esquerda saem às ruas, cada um com seu manifesto, com seus gritos de guerra. Se o filme começa com o entrevistador perguntando às pessoas na rua, opositores de Allende, se ele deve ser deposto por fins democráticos ou não e todos respondem que por meios democráticos, a primeira parte de A batalha do Chile mostra que aquelas manifestações verbais não levariam a local algum senão a um golpe violento de estado.
O cinema, desta vez, encontra-se no centro das atenções quando um câmera filma a correria de passantes fugindo do som de tiros e explosões. De trás de um prédio surge um carro cheio de militares, que para na esquina oposta. A câmera filma as pessoas que haviam se escondido por trás de uma escadaria e que saem correndo ao ver a chegada dos militares - a correria que delata quem são os reais vilões da história, de quem as pessoas têm medo. Leonardo Henricksen, câmera argentino, mantém seu posicionamento filmando aqueles militares. Um deles, aponta a arma para um homem caído no chão. Ao ver que sua ação está sendo gravada, este mesmo militar levanta o revolver e dispara contra o câmera, que morre no local. A imagem de um cinema urgente e um prólogo para o que estaria por vir.
*Ver Arquitetura da destruição.
*Ver Arquitetura da destruição.
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