Trazemos ao leitor deste blog o texto de Mário de Andrade publicado na revista Klaxon como parte da celebração do centenário do filme clássico de Chaplin.
O garoto por Charlie Chaplin é bem uma das obras primas mais completas da modernidade para que sobre ele insista mais uma vez a irrequieta petulância de KLAXON. Celina Arnauld, pelo último número fora de série da Action, comentando o fim com bastante clarividência, denuncia-lhe dois senões: o sonho e a anedota da mulher abandonada que por sua vez abandona o filho. Talvez haja alguma razão no segundo defeito apontado. Efetivamente o caso cheira um pouco a sub-literatura. O que nos indignou foi a poetisa de Poit de Mire criticar o sonho de Carlito. Eis como o percebe: "Mas Carlito poeta sonha mal. O sonho objetivado no film choca como alguns versos de Casimiro Delavigne intercaladas às Illuminations de Rimbaud. Em vez de anjos alados e barrocos, deveria simplesmente mostrar-nos pierrots enfarinhados ou ainda outra cousa e seu fim conservar-se-ia puro. Mas quantos poemas ruins têm os maiores poetas!"
Felizmente não se trata d'um mau poema. O sonho é justo uma das páginas mais formidáveis de O garoto. Vejamos: Carlito é o maltrapilho e o ridículo. Mas tem pretensões ao amor e à elegância. Tem uma instrução (seria melhor dizer conhecimentos) superficial ou desordenada, feita de retalhos, colhidos aqui e além nas correrias de aventura.
É profundamente egoísta como geralmente o são os pobres, mas pelo convívio diurno da desgraça chega a amar o garoto como a filho. Além disso, já demonstrara suficientemente no correr da vida uma religiosidade inculta e ingênua. Num dado momento conseguem enfim roubar-lhe o menino. E a noite adormecida é perturbada pelo desespero de Carlito que procura o enjeitado. Com a madrugada, chupado pela dor. Carlito vai sentar-se à porta da antiga moradia. Cabe nesse estado de sonolência que não é o sono ainda. Então sonha. Que sonharia? O lugar que mais perlustrara na vida, mas enfeitado, ingenuamente enfeitado com flores de papel, que parecem tão lindas aos pobres. E os anjos aparecem. A pobreza inventiva de Carlitos empresta-lhes as caras, os corpos conhecidos de amigos, inimigos, policiais e até cães. E os incidentes passados misturam-se às felicidades presentes. Tem o filho ao lado. Mas a briga com o boxista se repete. E os policiais perseguem-no. Carlito foge num voo. Mas (e estais lembrados do sonho de Descartes) agita-se, perde o equilíbrio, cai na calçada. E o sonho repete o acidente: o polícia atira e Carlito alado tomba. O garoto sacode-o chamando. É que na realidade um polícia chegou. Encontra o vagabundo adormecido para acordá-lo. Este é o sonho que Celina Arnauld considera um mau poema. Como não conseguiu ela penetrar a admirável perfeição psicológica que Carlito realizou! Ser-lhe-ia possível com a mentalidade e os sentimentos que possuía, no estado psíquico em que estava, sonhar pierrots enfarinhados ou minuetos de aeroplanos! Estes aeroplanos imaginados pela adorável dadaísta é que viriam forçar a intenção da modernidade em detrimento da observação da realidade. Carlito sonhou o que teria de sonhar fatalmente, necessariamente: uma felicidade angelical perturbada por um subconsciente sábio em coisas de sofrer ou de ridículo. O sonho é o comentário mais perfeito que Carlito poderia construir da sua pessoa cinematográfica. Não choca. Comove imensamente, sorridentemente. E, considerado à parte, é um dos passos mais humanos da sua obra, é por certo o mais perfeito como psicologia e originalidade.
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