domingo, 29 de junho de 2014

Bastidores: Morangos Silvestres



"Se continuar minha ponderação, penetrando um pouco mais no espaço difuso de Morangos silvestres, encontro no espírito da equipe que nele trabalhou, no esforço coletivo realizado, um caos negativo de relações humanas. O desquite da terceira esposa ainda me fazia sofrer muito. Foi uma experiência estranha aquela de amar alguém com quem não era possível viver. Também a vida em comum com Bibi Anderson, uma vida branda e criativa, havia começado a ruir, já não me recordo por que motivo. Com meus pais mantinha uma guerra aberta. Com meu pai não queria ou não podia falar, com minha mãe tentei repetidas vezes uma reconciliação temporária, mas, como dizemos em sueco, "havia demasiados cadáveres no guarda-roupa", demasiados mal-entendidos ainda frescos. Sem dúvida que nos esforçamos, pois queríamos, sim, fazer as pazes, mas os fracassos eram contínuos. 
[...]
Procurava meu pai e minha mãe, mas não podia encontrá-los. A cena final de Morangos silvestres contém uma forte dose de saudade e nostalgia: Sara toma a mão de Isak Borg levando-o para uma clareira na floresta, na qual bate sol. Do outro lado do canal ele pode divisar seus pais, que lhe acenam.
Por toda essa história perpassa um só motivo, apresentado sob múltiplas e variadas formas: a insuficiência no jogo da vida, a pobreza, o vazio, a ausência de perdão. Ainda hoje não posso avaliar, e naquela altura muito menos, como eu, por meio de Morangos silvestres, estava implorando a meus pais: vejam, compreendam e, se possível, me perdoem."



(Ingmar Bergman em "Imagens")

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Charles Chaplin (O Grande Ditador e a despedida de Carlitos)


O grande ditador é o filme em que Charles Chaplin se despede de seu velho parceiro de cena: Carlitos. O personagem criado pelo comediante inglês logo em suas primeiras excursões pelo mundo do cinema, o acompanhou por mais de vinte anos e até hoje é a marca do diretor. Mais do que a marca do diretor, nestes tempos imagéticos, o rosto de Carlitos transformou-se em sinônimo de comédia, de graça, de felicidade. É a alegria que esbanjava aquele rosto do homem pobre, com vestes feitas para alguém que tivesse um corpo maior, que não conseguia se encaixar na sociedade em que vivia nem nos moldes em que ela se apresenta. Ele estava lá, mas era como se não estivesse. E foi assim que passou  a maior parte de sua vida: sem que lhe déssemos ouvidos, apenas o espiando com o canto do olho. Foi em sua despedida que finalmente o seu criador resolveu dar voz a quem havia divertido multidões em todo o mundo. As multidões puderam ver Carlitos pela ultima vez em toda a sua forma. Ele agora falava.

Mas aos poucos, em O grande ditador, o personagem desaparece por baixo das feições de seu artista, que cada vez mais passa a tomar o lugar de seu tão querido personagem. E em determinado momento do filme, Carlitos desaparece sob a sombra de Chaplin para nunca mais retornar. O discurso final do filme é o exemplo claro desta despedida que não notamos termos efetuado. Quando o homem errado sobe ao palanque para falar para as multidões, não é mais Carlitos quem se apresenta, mas seu criador. Chaplin faz um pedido, travestido de Carlitos, para que sob o disfarce de Carlitos as plateias do mundo todo possam ouvi-lo com mais atenção. E é assim que se dá o fim de Carlitos. Como que de repente ele nos surge do meio de uma multidão em uma corrida de carros para meninos e desaparece por trás das feições de Charles Chaplin. E por múltiplos motivos ele continua a reaparecer em nossas lembranças mais calorosas.

sábado, 21 de junho de 2014

Hiroshima, Meu Amor de Alain Resnais (Hiroshima, mon amour - 1959)


direção: Alain Resnais;
roteiro: Marguerite Duras;
fotografia: Michio Takahashi, Sasha Vierny;
edição: Jasmine Chasney, Henri Colpi, Anne Sarraute;
estrelando: Emmanuelle Riva, Eiji Okada.

Hiroshima, meu amor foi lançado no Festival de Cannes de 1959 em um momento que pode ser considerado o ápice da chamada nouvelle vague. O longa-metragem de estreia de Alain Resnais criou em torno de si um burburinho que se tornou, muito rapidamente, um estrondo demorado. Tão logo de seu aparecimento na sala de cinema do festival ele fora comentado e analisado por muitos críticos que ficaram boquiabertos com uma obra peculiar. De fato, Resnais se apresenta com este filme como um dos cineastas mais criativos da nouvelle vague. Junto a Jean-Luc Godard, ele procurou desenvolver uma estética diferenciada para um cinema particular que visava desenvolver. É muito interessante neste sentido nos depararmos com alguns textos escritos na época, quando o cineasta era ainda uma novidade e ninguém sabia que aquela obra ainda ganharia algumas parceiras para acompanhá-la pelo percurso da história do cinema. A tentativa dos críticos e estudiosos de desvendar o mistério que é Hiroshima, meu amor é prazerosa para todos aqueles que também ficaram atormentados com o filme. Digo o mistério que é Hiroshima, meu amor porque mesmo hoje, depois de diversos filmes feitos pelo cineasta - desde os mais palatáveis como Ervas daninhas até os mais complexos como O ano passado em Marienbad - este filme continua um filme belíssimo para os olhos, mas dificílimo para se escrever alguma coisa sobre. 


Alain Resnais é um cineasta que muito admiro. Gostaria de que houvessem mais diretores como ele mundo afora, mas não existem. Talvez este seja o lado positivo da coisa, é o que o faz único e tão impressionante. Nesta sua estréia o filme é difícil de ser analisado, mas muito fácil de ser sentido. É o resultado da parceria de Resnais com a escritora Marguerite Duras. Resnais parece neste ponto ter noção de seu cinema cerebral e para poder combater o tédio que poderia causar uma obra somente racional ele chama para acompanhar-lhe nesta empreitada uma escritora, para adicionar a este trabalho uma história. É o que faz deste filme tão espetacular e o mais famoso da carreira de Resnais. Ele consegue aquilo que muitos diretores de vanguarda não conseguem entender: o cinema é antes de qualquer coisa um entretenimento, logo deve contar uma história. Aliar uma história a uma forma cuidadosamente pensada e milimetricamente executada confere à obra o caráter de obra de arte.

Mais ainda do que seu filme seguinte, devo dizer. O ano passado em Marienbad, apesar de ser um filme espetacular que mesmo hoje, em 2014, não envelheceu, é somente uma obra para apaixonados por um cinema provocativo. Hiroshima, meu amor, é um filme que também não envelheceu porque não procura ser datado. É algo que muito facilmente acontece com outros filmes que procuram fazer de sua representação uma denúncia social. São filmes que ficam marcados com o espírito de um tempo, não causando o mesmo impacto décadas depois. É um filme sobre pessoas de qualquer período. Mais do que ser um filme sobre pessoas é um filme que procura quase uma resposta filosófica a um tema que Alain Resnais viria a buscar em outros filmes de sua carreira (como o já citado O ano passado em Marienbad): a memória.


Partindo de um tema tão diferente para a construção de um filme é que Alain Resnais consegue encontrar o trunfo que faz dele um mestre. A memória é um tema muito pouco trabalhado no cinema e quando trabalhado os diretores se valem de lugares-comuns que fazem de suas obras muito parecidas com todas as outras que trabalham com o tema. É no cinema de Resnais que encontramos toda a complexidade do tema que podemos encontrar em estudos filosóficos. E, neste século do cinema, não existira veículo melhor para poder apresentar uma reflexão sobre tema tão importante. Importante porque a memória se apresenta por meio de representações imagéticas que nos remetem a um passado vivido. É por meio destas representações imagéticas que também trabalha um cineasta, e é por meio delas que Resnais procura desvendar os mistérios por trás da memória.

Hiroshima, meu amor nos apresenta uma atriz francesa que se encontra em Hiroshima para fazer um filme sobre a paz. Lá ela encontra um jovem morador da cidade que não sofreu com o tormento da bomba atômica atirada sobre a cidade, porque estava a lutar pelo exército nipônico durante a guerra. Eles se encontram na cidade e iniciam um romance. O conflito das memórias dos personagens, em especial dela, se encontram desde os primeiros momentos do filme. É neste primeiro momento, em que ela diz ter lembranças de Hiroshima enquanto ele nega que fica a pergunta no ar: poderíamos criar lembranças de coisas que não vivemos? A memória pode trabalhar com aquilo que é apresentada àquele que irá reter a lembrança. Por isso é possível que a atriz francesa, quando confrontada com as imagens das vítimas da bomba no museu criado na cidade para manter viva esta lembrança (porque é para isto que os museus servem), tenha visto as imagens de arquivo do museu e transformado-as em suas próprias memórias. Ela as viu, e é como se tivesse vivido-as. 


Transforma-se neste caso um embate com o próprio cinema (e esta provocação pode ser notada quando, em meio a cenas reais dos feridos pela bomba, Resnais insere um filme de reprodução, com atores reproduzindo as pessoas feridas no momento logo após a explosão da bomba). Se assisto a um filme, a lembrança do que nele se passou é de fato minha? Não vivi o filme, apenas estive em frente a ele. As imagens que nele aparecem são impressas em minha mente, mas não são vividas por mim, mas pelos personagens na tela. Seriam as lembranças de um filme que assisti memórias minhas, de algo que vivi (o filme que assisti) ou seria uma memória criada a partir de algo com que me deparei (uma obra de ficção)? Ah!, Hiroshima, meu amor, um filme que nos deixa com mais perguntas do que respostas...

[leia também: Você não viu nada em Hiroshima e O esquecimento começa pelo olho]

terça-feira, 17 de junho de 2014

Lírio Partido de D. W. Griffith (broken blossoms or the yellow man and the girl, 1919)


direção: D. W. Griffith;
roteiro: D. W. Griffith, Thomas Burke (baseado em sua obra);
fotografia: G. W. Bitzer;
estrelando: Lilian Gish, Richard Barthelmess, Donald Crisp.

Em sua série sobre a história do cinema, Mark Cousins coloca o cineasta D. W. Griffith em seu devido lugar no mundo do cinema. O cineasta estadunidense normalmente é tido como o criador da linguagem cinematográfica, quando na verdade ele foi quem conseguiu, em seus épicos mudos, juntar a terminologia do cinema (diferentes planos em uma cena, a forma da montagem...) em um mesmo filme. Isto foi feito em Nascimento de uma nação e Intolerância, dois filmes que contam com algo em torno de três horas de duração nas quais o cineasta consegue estruturar todas as formulações da linguagem cinematográfica e sua montagem que possibilitava uma continuidade da narrativa apresentada não necessitando permanecer em um mesmo plano ou em um mesmo ambiente.

Mas não é nenhum destes dois filmes clássicos que é considerado por grande parte da crítica como sendo o melhor filme do cineasta, mas sim Lírio partido, um filme sentimental em que o melhor de Griffith se apresenta de maneira poética, casando com uma apresentação magnífica de sua colaboradora corrente: Lilian Gish. É neste filme em que todo o poder da câmera pode ser demonstrado já que, por saber até onde era capaz de ir seguindo a gramática cinematográfica, Griffith sabia como conseguir o resultado esperado. E a escolha por filmar um melodrama é mais do que simbólica, porque é no melodrama em que reside a linha mais tênue de todos os gêneros a serem trabalhados no cinema. O risco que um cineasta corre ao filmar um melodrama é enorme, de ter como produto final um filme enfadonho e cansativo com pessoas chorosas. O risco de o público não conseguir se identificar com as personagens apresentadas e de, até mesmo, repudiá-las é maior do que em qualquer outro gênero. Passar pelo desafio de filmar um melodrama é um risco que Griffith aceita e do qual obtém êxito.


Um dos trunfos de Griffith ao saber utilizar a linguagem cinematográfica (sendo melhor termo para defini-lo não de criador, mas o sistematizador da linguagem cinematográfica) é a sua capacidade de contar história se valendo de caracteres fílmicos para poder contar o seu drama e criar toda a atmosfera emocional exigida pala história contada. Saber pontuar os momentos em que seria inseridos os close-ups em um filme é a sua marca registrada. É conhecida a história de que o filme era inicialmente montado e, depois de assistir a esta primeira versão do filme o diretor pontuava em quais momentos necessitaria incluir os close-ups. Os close-ups no cinema de Griffith servem, assim, como sinais de pontuação que exclamam um determinado sentimento que o protagonista da história está a sentir e, por conseguinte, o espectador.

Quando Lucy (Lilian Gish) está encurralada no armário para se proteger de seu pai abusivo, o diretor se vale de um close-up não apenas para mostrar mais nitidamente para o espectador como está o personagem, mas para que este possa sentir como está aquele personagem que ele vem acompanhando há pouco mais de uma hora. O close-up serve como uma ponte entre o emocional do espectador e do personagem, e aquele sentimento que é representado arrebata a quem assiste ao filme tal como se estivesse a viver a história. É o momento em que sentimos pena de Lucy, queremos salvar, queremos gritar para alguém salvá-la, mas somos impotentes. O close-up nos aproxima de uma realidade que não existe, nos mergulha nela. 


Interessante nesta aspecto podermos fazer a comparação entre dois cineastas contemporâneo (na verdade até mesmo sócios de um mesmo estúdio): D. W. Griffith e Charles Chaplin. Enquanto Griffith se vale de close-ups para criar esta pontuação do sentimento que a cena apresentada expressa, Chaplin não se utiliza desta técnica em seus filmes, mesmo em um filme tão sentimental como O garoto. Talvez o único close-up da obra chapliniana seja o close final no rosto de Carlitos quando ele reencontra a garota cega e ela o reconhece. Mas para Chaplin a movimentação do ator em cena poderia dizer muito mais do que a proximidade da câmera de seu rosto poderia mostrar. Chaplin por possuir uma formação do teatro passou grande parte de sua obra em construções como esta, ao passo que Griffith exercitou seu fazer cinematográfico apenas por trás da câmera. 

E o que seria de Lírio partido sem Lilian Gish? A atriz, quando da filmagem tinha 22 anos, mas interpretava uma adolescente de 14 ou 15 anos, consegue arrebatar a atenção do espectador se destacando frente a todos os demais atores que com ela contracenam. É belíssima as imagens que Griffith faz dela, seu rosto sofrido, seu caminhar penoso, seu olhar sem esperanças e sempre guardando algumas lágrimas no canto. Não é a toa que o cineasta sempre esteja pronto para fazer um close-up dela. De um rosto frágil como o de Gish, Griffith conseguiu extrair o significado do que foi, é e será o cinema de melodrama, e a beleza que pode ser extraída da tragédia humana.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Eu, Um Negro de Jean Rouch (moi, un noir - 1958)


direção: Jean Rouch;
roteiro: Jean Rouch;
edição: Catherine Dourgnan, Marie Josèph, Yoyotte;
estrelando: Oumarou Ganda, Gambi, Petit Touré.

O cinema de Jean Rouch se apresenta com certas particularidades que o destacam frente ao cenário cinematográfico mundial. Neste filme em especial, além da busca pelo contato com outras civilizações, temos uma construção fílmica interessante que viria a influenciar, em especial, Jean-Luc Godard. Rouch em Eu, um negro dá a seus personagens a total liberdade para criarem uma história e narrarem aquilo que vemos na tela. A desconexão entre a narração e as imagens não faz com que o filme perca sua qualidade e sim ganhe força partindo de uma história contada por quem aparece na tela contando as histórias que vive no lugar em que as vive. Esta busca pela identidade dos lugares, dos personagens e das tramas narradas no cinema é o motor principal do cinema europeu do pós-guerra até metade da década de 1960, e é em busca desta identidade conjunta que parece buscar a câmera de Rouch.

Jean Rouch, antes mesmo de querer contar uma história por meio das imagens, tem como principal motivação um estudo etnológico de seus retratados. Por isso ele dá liberdade para que seus personagens possam se criar e crescer na tela. Eles começam por criar o nome de seus personagens, o que a partir deste momento já diz muito sobre quem são e as influências que ditam suas ações. Os nomes de seus personagens são baseados em personagens da cultura estadunidense que por meio de seu império capitalista se apoderou e modificou os quereres e não-quereres de quase todo o ocidente. Neste meio encontram-se os africanos, que vivem em situações miseráveis, tais como são apresentados pelas lentes de Rouch, mas que sonham em crescer, prosperar, dentro desse sistema econômico, mesmo que a cidade em que vivem não lhes ofereça muito. Nesta vida sem motivações eles se agarram à religião. Não é mais sua religião original, mas a religião que lhes fora imposta pelos europeus, em que no centro da cidade se ergue imponente uma igreja católica. Do outro lado estão os islâmicos, cada vez mais populosos em terras africanas e que no ano em que o filme fora filmado já ocupavam toda uma vasta rua da cidade de Treichville. Esta influência proveniente de terras estadunidenses é logo pontuada por Rouch no princípio do filme quando ele nos apresenta os personagens que seguiremos nos 70 minutos seguintes de projeção: a influência exercida pelo cinema hollywoodiano e pelo boxe norte-americano nos jovens afircanos faz com que eles escolham para seus personagens nomes como Edward G. Robinson e Eddie Constantine.


A liberdade que é dada aos jovens retratados é proposital para que por meio dela eles possam libertar seus sonhos, seus desejos, e mais além, o que eles pensam do mundo em que vivem. Os sonhos deles já são, se não os mesmos, muito parecidos com o de diversas outras pessoas que vivem no ocidente. É o sonho de ter uma casa própria, constituir uma família, ter um carro. Essa tríade família-carro-casa pontua o sonho que fora implantado na mente de toda uma civilização para sustentar um modelo de mundo que hoje está vigente. Mas nem todo mundo pode ter tudo isso, e mais ainda um jovem africano que não tem muitas perspectivas de ascender num mundo que coloca as pessoas em uma pirâmide, os mais pobres que estão na base da pirâmide nunca chegarão a vislumbrar a vista do topo. E esta lição é deixada quando vemos um italiano roubar a garota de um dos personagens do filme com quem este sonhava em se casar e construir sua família. Outro personagem é preso. Eles podem até sonhar com uma vida melhor, mas a realidade sempre lhes dará um banho frio e lhes cortará as asas.

Do lado da construção do discurso fílmico encontramos uma pérola. É o filme que influenciou diretamente Godard e seu Acossado e a sua montagem com saltos temporais curtos ou longos se baseando em um mesmo cenário com os mesmos personagens. Os saltos são realizados para que nada do que acontece nos momentos retratados fujam ao espectador, para que este possa ter a impressão de que o filme conseguiu ser o mais abrangente possível ao buscar imagens daquela localidade (com uma câmera estática não poderíamos acompanhar os personagens e sua movimentação frenética e com a câmera em movimento não poderíamos abarcar toda a extensão espacial que é retratada quando podemos simplesmente pular de um lugar para outro). Além destes saltos temos um filme que foi completamente narrado, mostrando para o jovem aspirante a cineasta quanta liberdade esse processo poderia lhe dar - isso levaria Godard mais tarde a fazer suas "brincadeiras" com as linguagens cinematográfica e falada.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Charles Chaplin (Truffaut escreve sobre Chaplin)

No prefácio do livro Charlie Chaplin, um compilação de textos que André Bazin escreveu ao longo de sua vida sobre o magnífico cineasta, François Truffaut escreve as palavras que reproduzo abaixo:

"Charlie Chaplin, abandonado pelo pai alcoólatra, viveu seus primeiros anos na angústia de ver a mãe ser levada para o asilo; depois, quando a internaram definitivamente, na aflição de ser perseguido pela polícia. Era um pequeno vagabundo de nove anos que se esgueirava pelos muros de Kensington Road, vivendo, tal como escreve em suas Memórias, "nas camadas inferiores da sociedade". Se volto a essa infância, tão frequentemente descrita e comentada a ponto talvez de perdermos de vista sua crueza, é porque convém examinar o que há de explosivo na miséria - se ela é total. Quando Chaplin entrar na Keystone para rodar 'filmes de perseguição', correrá mais rápido e mais longe  que seus colegas do music-hall, pois, embora não fosse o único cineasta a descrever a fome, foi o único a conhecê-la, e isso é o que iriam perceber os espectadores do mundo inteiro quando os filmes começaram a circular a partir de 1914."

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Nas Garras do Vício de Claude Chabrol (le beau Serge, 1958)


direção: Claude Chabrol;
roteiro: Claude Chabrol;
fotografia: Henri Decae;
estrelando: Jean-Claude Brialy, Gérard Blain, Michèle Méritz, Bernadette Lafont.

Tal como Robert Bresson conseguira alguns anos antes levantar a produção de Um condenado à morte escapou, Claude Chabrol conseguiu, frente à Companhia Nacional de Cinematografia (CNC), uma premiação em dinheiro para poder levantar seu primeiro longa-metragem. Este prêmio em muito estimulou o cinema francês, mas somente ele não era motivo para garantir a distribuição dos filmes. Nas garras do vício, o tal primeiro filme de Chabrol, fora filmado numa comuna no interior da França no inverno de 1957-1958, mas somente fora lançado nos cinema em fevereiro de 1959, exatamente um mês antes de Os primos, seu segundo longa. Foi devido ao sucesso deste seu segundo filme no festival de Berlim, em que Akira Kurosawa levou o urso de prata de melhor diretor, que o jovem estreante saiu coroado com o urso de ouro - o melhor filme do festival.

O sucesso de Chabrol com seu segundo filme não somente abriu caminho para os demais cineastas estreantes como para ele mesmo, como já fora colocado acima. Neste filme acompanhamos François (Jean-Claude Brialy) que morou em um vilarejo no interior da França durante sua juventude, saíra alguns anos antes para fazer universidade e agora retorna para poder descansar depois de ter tido alguns problemas de saúde. Nele encontra algumas figuras que fizeram parte de sua juventude, incluído Serge (Gérard Blain). Serge teve a oportunidade de ter feito o mesmo percurso de François, mas não o fez quando uma namoradinha sua ficou grávida, o que o impediu de deixar o vilarejo. Na trama fica implícito o marasmo da vida em um lugarejo como o apresentado no filme, em que somente pode-se crescer caso o indivíduo saia deste lugar. E por ter voltado para ele François irá pagar por este retorno.


Este é considerado o primeiro filme da nouvelle vague, embora não apresente nenhuma novidade estética como seriam apresentados mais tarde por Jean-Luc Godard e Alain Resnais em suas obras de estreia - o que define o movimento como um movimento que não possuía uma definição estética, mas que havia surgido devido a diversos artigos que eram constantemente publicados pela imprensa francesa frente a uma nova geração de pensadores de cinema que nascia no país. Esta geração de pensadores aos poucos começava a deixar seus lápis de lado para pegar a câmera e escrever em película. Entre 1957 e 1958 muitos dos diretores que vieram a mais tarde formar a "geração nouvelle vague" estavam em seus primeiros curtas-metragens: Jacques Rivette terminava O truque do pastor, Truffaut filmava seu curta Os pivetes, e Godard filmava Operação concreto.

O filme apresenta sua história embebido pela estética neorrealista, seguindo seus personagens pelas ruas do vilarejo em que decidiram filmar a história, sem o uso de luz adicional e com atores estreantes - deveriam ser rostos que não fossem facilmente reconhecíveis pelo público, e mesmo se tratando de atores, eles deveriam ter o rosto de pessoas normais, que transparecesse que o filme fora filmado com não atores. Esta perspicácia de Chabrol neste primeiro filme da nouvelle vague francesa foi seguida por seu companheiros porque, embora buscassem uma naturalidade que não era encontrado naquilo que Truffaut chamava depreciativamente de "cinema francês de qualidade", suas histórias possuíam um peso dramático extremamente pesado para poder ser trabalhado com não-atores. Estes dramas deveriam ser sentidos pelo espectador e somente por meio do trabalho dramatúrgico eles poderiam surgir na tela com todo seu poder. Neste filme, Serge é alcoólatra, e o poder da atuação de Gérard Blain é o que imprime na película toda a sensibilidade da trama que está a ser apresentada. Por exalar todo este peso é que parte da direção de Chabrol ter cuidado com o que filmar e de que forma filmar. 


Serge quando enxerga François, vê aquilo que ele poderia ter sido, mas não é. Ele devolve esta frustração em agressões a todos aqueles que o cercam. Sua esposa Yvonne (Michèle Méritz) é quem mais sofre. Ela o quer por perto, está grávida novamente e espera não perder este filho (a criança que impedira Serge de sair do vilarejo para estudar morrera no parto). O cuidado do diretor ao filmar tais personagens é o que deve ser observado atenciosamente, porque é a visão do sujeito cineasta neste momento que separa o filme de ser um filme sentimental de um filme sadista (tomando o termo sadista da maneira mais pejorativa possível). O olhar de Chabrol sobre aqueles personagens não procura julgá-los, mas humanizá-los, mostrar que eles agem da forma como agem por determinados motivos, motivos estes que ele busca durante todo o filme. Trata-se de mais um filme que busca humanismo, tal como fará de forma mais bela por Truffaut em Os incompreendidos, e que marca a obra de alguns dos diretores do movimento de rejuvenescimento do cinema francês. Atenção para a fotografia de um dos maiores fotógrafos do cinema nouvelle vague, Henri Decae.