quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Travelling enquanto questão moral: um estudo em três partes

As próximas três postagens serão uma continuação. Cada uma delas caminha em sentido comum: a discussão da moral cinematográfica não enquanto conteúdo, mas levando em consideração principalmente a forma do filme. Separadas podem não fazer tanto sentido quanto fariam juntas. 
A problemática aqui levantada em três partes parte de um artigo publicado ainda este ano.

INTRODUÇÃO

Quando do lançamento de Hiroshima, meu amor (RESNAIS, 1959), Jean-Luc Godard – cineasta explosivo, crítico propenso à criação de aforismos – desenha a fórmula preciosa para os formalistas do cinematógrafo: travelling é uma questão de moral. Poderia ser uma das tantas frases do diretor de Acossado que passariam em branco, não fosse o uso feito dela pelo crítico e futuro cineasta Jacques Rivette em 1960. Sua crítica sobre Kapò (1959), de Gillo Pontecorvo, pouco se referia ao malfadado filme, mas ainda assim era o suficiente para fazer com que gerações inteiras de cinéfilos sentissem seus estômagos darem voltas devido às náuseas provocadas por um movimento de câmera. Sim, um movimento de câmera! No presente estudo, faremos uma discussão sobre o uso do travelling do cinema e questionamento sobre a moral do cineasta ao utilizá-lo. A questão trespassa o simples movimento de câmera e chega às formas de representação cinematográficas. Veremos que a moral não é somente uma questão de conteúdo, é também uma questão estética.

SOBRE TRAVELLING

Antes de começarmos qualquer discussão, expliquemos o que é um travelling para aquele leitor pouco familiarizado com a linguagem cinematográfica. Travelling consiste em um movimento em que a câmera deixa um ponto físico no cenário e passa a mover-se pelo mesmo sob a guia do diretor (MARTIN, 2011, p. 47). Exemplo: João, herói de nosso filme hipotético, espera ansiosamente por seu ônibus. Estica o pescoço para tentar enxergar melhor, num ato que claramente demonstra seu nervosismo e ansiedade. A câmera, neste momento, move-se para o lado e segue em direção a um ladrão que está localizado poucos metros atrás de João. Cria-se o suspense. O espectador sabe da presença do ladrão, mas o protagonista da história o desconhece. Sabemos, porque a câmera deixou o seu ponto fixo no cenário (em frente a João) e nos mostrou que algo está a ameaçá-lo.

Um movimento como o travelling possui algo de mais significativo do que possa parecer. Para a história do cinema, a câmera que percorre os cenários transforma-se em agente ativo frente à representação fílmica e não mais possui a passividade de outrora. Nos primórdios do cinematógrafo, a câmara de cinema permanecia parada – como um “regente de orquestra” como costumeiramente é chamado – em frente ao cenário simplesmente observando aqueles corpos ágeis que interagiam para seu deleite. O cinema consistia de um teatro filmado. Em 1896, como que por acidente, um dos cinegrafistas a serviço dos irmãos Lumière – inventores do cinema – cria o travelling ao filmar o casario histórico de Veneza a bordo de uma gôndola (MARTIN, 2011, p. 32). Este papel de agente ativo referido acima, diz respeito a um cinema mais consciente de sua condição de cinema: reconhece seus modelos de representação e trabalha sobre eles para moldar o espetáculo cinematográfico partindo das ferramentas que tem em mãos, o travelling e o close-up por exemplo. Mas como veremos neste texto, esta consciência de cinema enquanto cinema deve permanecer mesmo para aqueles momentos em que este “ser ativo” do cinema (formador de espetáculo) recue para que dê espaço a um cinema de consciência política.

Travelling é este movimento, que por vezes pode ser envolvo em uma aura de complexidade. Ele é um movimento do qual muito gostam os cineastas de um cinema pop devido á agilidade que ele emprega ao filme. A câmera corre pelos cenários, pelas ruas, entre os carros em alta velocidade, conferindo ao filme um quê de frenético. É também um movimento invasor. Quando a câmera é movida em direção a um rosto ela disseca muito mais do que a expressão facial do ator: ela apresenta toda a complexidade do sentimento que o personagem está a sentir. Quando ela corre em direção a um pai atordoado com o roubo de sua bicicleta, que confunde um garoto com o ladrão, este movimento traduz a humilhação daquele homem frente à multidão que grita o seu equivoco (Ladrões de bicicleta). Quando em câmera lenta, ele pode exprimir o desejo de um homem por uma mulher (Touro indomável). Em outros casos, ao passear por corredores de um hotel de luxo, ele está a nos apresentar a intricada rede de lembranças da mente humana (Ano passado em Marienbad). E por estes e tantos outros motivos ele, por vezes, pode ser considerado como sendo a síntese do espetáculo cinematográfico. 

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

A palavra e seu império


Vimos em A palavra e o invisível como a palavra pode ser utilizada em conformidade com o espetáculo cinematográfico. Com o advento do cinema falado poucos foram os cineastas e estudiosos que se posicionaram de modo a enxergar a estranheza da palavra nesta arte. Foi assim que se criou e deixou crescer o império da palavra.

Foi André Bazin que, em A evolução da linguagem cinematográfica, se posicionou nesta discussão. Ele enxergava dois tipos de cinema, aquele da imagem e o realista. Este segundo, de sua preferência, estaria unido à palavra por ser este um modo realista de representação cinematográfica. Na vida cotidiana as pessoas conversam quando se encontram e nada mais natural ao cinema (que é a arte realista por excelência) que mostrar este cotidiano na tela. Mas será que este realista trazido ao cinema pela palavra (pela fala) não faria uma subversão de seus valores ao invés de “avançar” em sua linha evolutiva como propõe o título do texto de Bazin?

Os discípulos cineastas do crítico francês foram que melhor apresentaram este equivoco de seu mestre. François Truffaut rasga elogios a Hitchcock quando de sua famosa entrevista. Nela os dois cineastas entram em comum acordo de que o cinema é uma arte imagética e por isso deve ser ela a melhor pensada e trabalhada, os diálogos surgem como um adendo. Jean-Luc Godard – autor de filmes de falatório – trilha caminho semelhante ao de seu antigo parceiro de Cahiers. Em Acossado Godard apresenta ao público uma montagem que não pretende ser realista ou sugerir coisa alguma, ela simplesmente nos lembra do fato de estarmos assistindo a um filme e o corte é o modo mais explícito de se demonstrar isso.


Como vimos no citado texto anterior, a palavra surge no cinema falado e logo passa a fazer parte constituinte de sua formação (no sentido da forma do filme). Quando o invisível, aquilo que aparece no extracampo nos é apresentado somente pela fala dos personagens, será que não estaria ali, naquelas palavras de quem aparece em cena um constituinte da imagem? Em parte sim, mas não acontece com todo cinema. Como vimos, isto acontece em No tempo das diligências porque aquela ameaça que não vemos e que nos é sugerida pela palavra paira nas imagens do filme. Esta ameaça que está sempre presente necessita estar fora de quadro para que a potência do filme possa surgir.

Mas isto não acontece com todos os filmes, ainda que todos eles insistam em se basear nas palavras dos personagens. Porque este realismo que a palavra emprega ao cinema faz ser mais crível a relação entre os personagens que se apresentam na tela. Mas esta busca pelo realismo cotidiano no cinema faria uma subversão de seu princípio próprio: a história contada por imagens. O que levaria uma figura a preferir contar uma história no cinema ao invés de escrever um livro, um artigo para jornal ou mesmo uma peça de teatro? Muitos dos filmes que são lançados hoje em dia provocam esta dúvida: será que eles deveriam ter sido transformados em filme? Será que eles não estariam melhor alocados em diferentes formas de comunicação ou expressão artística?

O realismo óbvio alcançado pela objetividade fotográfica faz do cinema o meio mais fácil para que um sujeito que tenha menor inspiração criativa possa contar uma história. Porque para alcançar o realismo por meio da prosa é necessário muito trabalho e inventividade por parte do escritor. No caso do cinema é dada a possibilidade de deixar de lado todo este trabalho intelectual excessivo e desenvolver algumas frases – cujo brilhantismo ficaria por conta da capacidade do ator de expressá-las – e simplesmente pôr a câmera em frente aos personagens e deixá-los surgir. Estaria em nossa frente o realismo? Sim, em parte. Porque ninguém poderia negar que aquelas duas pessoas estão conversando uma com a outra ou que seu diálogo é, no mínimo, interessante.


É aí que surge um ponto interessante da teoria de Bazin: a duração. Tomando de empréstimo o termo central da filosofia de Henri Bergson, o crítico de cinema nos dá algo de muito interessante: o filme realista deve conseguir captar esta duração do mundo. Será que todo filme que se propõe realista porque coloca dois atores muito bons conversando torna-se por isso realista? Não é porque dois personagens trocam farpas em cena que isso vá ser ser realista. Nem porque o espectador reconhece aqueles sentimentos expressados em tela. Mais do que isso, é necessária que haja a interação com a câmera.

É a câmera que vai buscar esta duração presente no mundo e expressá-la no cinema. Isso por meio do plano-sequência em que se filma o fluxo de acontecimentos em seu desenrolar natural. Richard Linklater faz isso. Eric Rohmer também. E nem todo cineasta que se propõe a colocar a câmera em frente a seus personagens ou a segui-los por um longo tempo sem cortes que consegue expressar a tal “duração dos fatos”. Sua cena pode simplesmente ficar longa e chata ao invés de envolvente.

Chamando Richard Linklater para dentro desta argumentação retornamos ao primeiro texto desta série, A palavra no cinema. O cineasta estadunidense faz uma provocação muito interessante em seus filmes. Seus personagens falam muito e o diretor os deixa a vontade para que possa conversar e se expressar. A câmera não irá perturbá-los, nem a montagem irá quebrar o desenrolar de suas ações. E ainda assim não serão as palavras que contarão a história. Estas surgiram em cena de modo desconexo, os personagens poderão falar do que lhes será preferível – tal como fazem os personagens de Tarantino – sem ligação com aquele momento presente que vivem ou com o sentimento que aflora. Estará impresso nas imagens o sentimento entre aqueles personagens ou o sentimento dos personagens por si. Em Antes do amanhecer está lá na cena da cabine de música ou mesmo no gesto imperceptível de Jesse querendo ver o rosto de Celine e interrompendo seu ato de retirar o cabelo dela de cima do rosto. São estes gestos, mais que as falas, que traduzem o sentimento que nasce entre os dois personagens.


A palavra pode, sim, fazer parte das imagens, mas em momentos muito particulares, como no citado filme de John Ford. Ela, mesmo não sendo material, consegue transbordar para o exterior e fazer-se presente na imagem. Mas não são todas as obras que conseguem isso. O realismo do cinema pode ser buscado por uma obra que preze pelo falatório, e nem por isso estará lá uma grande obra. Como dissemos no primeiro texto, não adianta colocar um ator sentado em frente a uma câmera lendo Hamlet que ainda assim será um filme ruim. É necessário que parta do cineasta a motivação que o leva a contar aquela história no cinema, ou seja, por meio de imagens.

Nesse sentido a abertura do ultimo filme de Béla Tarr, O cavalo de Turim, é muito significativa. Nela Tarr coloca um narrador para contar determinado episódio na vida do filósofo Friedrich Nietzsche. O narrador nos oferece todos os elementos para que possamos compor a cena, lugar, tempo histórico, personagens..., mas a imagem nos é subtraída. O que temos é somente uma tela em preto e a voz do narrador. Com o auxílio de nossa própria imaginação construímos a tal cena, e por isso se faz desnecessária a presença de uma figura em quadro nos contando a tal fábula. Semelhante aspecto se encontra em Era uma vez na Anatólia. Os personagens conversam dentro do carro, mas não precisamos vê-los. Vemos somente os carros que cortam a paisagem da Anatólia. Em determinado momento, os carros parados, as pessoas do lado de fora, e um dos personagens decide contar uma história. Ouvimos suas palavras, mas não vemos seu rosto se mover. Ou vemos o rosto de mais ninguém se mover.


A palavra ganhou bastante espaço no cinema depois do surgimento do cinema falado, mas isso não quer dizer que um filme deva ser feito somente baseado nas palavras falada ou escrita. Quando o entendimento ficar mais complexo nas imagens, é necessário o uso das palavras, mas caso contrário não. Era uma vez na Anatólia nos mostra isso. O “era uma vez” do título que nos remete ao ato de contar uma história nos faz pensar nos diferentes modos de contar uma história que aparecem no filme. Existe aquela história principal que é contada por meio da câmera e outras menores que são contadas pelos personagens em suas conversas. A fala, neste momento, adquire um sentido especial: ele pode servir de adendo ao entendimento daquilo que nos mostra a câmera.

Era uma vez na Anatólia se torna muito semelhante a No tempo das diligências. Ambos os filmes fazem a palavra incorporar as imagens porque estaria ali presente um sentido nesta relação. Mas a palavra não possuiria o maior poder no filme em nenhum dos dois casos. Ela torna-se subalterna ao que é mostrado. Ainda assim é parte constituinte da imagem.

Um filme deve ser construído primando por suas imagens. O cinema é uma arte de imagens e assim deve ser pensado e feito. O que dizem os personagens não deve ser mais que um adendo àquilo que é mostrado. 



[este texto faz parte da série a palavra no cinema publicada aqui no blog em novembro de 2014. Este texto é precedido por A palavra no cinema e A palavra e o invisível]

domingo, 16 de novembro de 2014

A palavra e o invisível

quando a imagem esconde a ameaça

Este texto serve como continuação de A palavrano cinema, já publicado aqui. Ele surge para suprimir um espaço que se encontrava no texto passado, mas que não diminui sua importância. Isso porque a imagem ainda é o ponto principal da arte cinematográfica e é o que melhor deve ser pensado e tratado por quem faz filmes. Mas isso não quer dizer que possa ser trabalhado um quesito a mais do cinema: o extracampo.

O que é o extracampo? Ele é aquilo que está fora do campo e que de alguma forma faz parte da mise-en-scène. Com o passar do tempo se desenvolveu todo o potencial deste não-estar da imagem cinematográfica. Escrevo não-estar porque é uma presença que não se faz presente. Pode servir como uma ameaça que não aparece no quadro. E é exatamente por não aparecer que cria toda força dramática[1] da trama do filme. Porque este algo que não está na imagem pode a qualquer momento aparecer em quadro. É criada uma sensação exatamente a partir desta presença faltante.

Comumente é tratado como sendo uma ameaça. Esta é anunciada pela palavra. Algum personagem anuncia o perigo e logo começa a paira no entorno do quadro este risco, aquilo que quer invadir o quadro e expulsar dele os protagonistas. Deste quadro transbordam sensações diversas, mas a que melhor se apresenta é a tensão. Quando é privada ao espectador de ver algo porque também os personagens não podem ver, quem assiste passa por semelhante temor daquele pelo qual passa seu querido herói.


Daí se faz uma grande diferença logo de início. Existem aqueles filmes que optam por mostrar logo a tal ameaça e que, por esta escolha, caem em um fracasso artístico, e aqueles filmes que, escondendo a ameaça, se fazem bem sucedidos. No primeiro caso estão os filmes de terror que constroem sua relação com o espectador pautado pelo choque das imagens cruas que preferem mostrar: o chamado terror gore. De outro lado há o suspense que prefere tirar do espectador a sua onisciência e, com isso, faz dele uma figura a mais no filme.

É este segundo caso que quero me aprofundar no presente texto. Para isto tomemos primeiro o clássico do faroeste No tempo das diligências. Iniciamos com este filme para deixar claro que não é somente no cinema de terror ou de suspense em que se podem ser feito o trabalho com o extracampo. No caso deste filme de John Ford, a trama começa com operadores de telégrafo recebendo a notícia de que o índio Geronimo está nas proximidades. Mesmo sob esta ameaça um grupo decide cortar o deserto numa diligência.

Neste filme a ameaça de Geronimo se faz presente em praticamente todas as cenas, apesar de ele somente aparecer em quadro nas últimas cenas do filme. Este embate é criado pela palavra. A palavra falada que anuncia que a ameaça existe. A ameaça, esta coisa imaterial que por isso não pode surgir em cena. Como anunciar este perigo se não por meio da linguagem falada ou escrita? Será que o espectador teria a mesma sensação de perigo se, ao invés de ouvirmos da boca dos operadores de telégrafo que Geronimo está por perto com seu bando, víssemos os sinais de fumaça dos índios? Provavelmente não. A palavra serve neste caso como um meio imaterial que nos deixa cientes de algo tão imaterial quanto: o futuro.


Esta coisa que somente imaginamos, que temos a esperança de que algum dia chegue, mas que nunca chegará (vivemos sempre no presente). Mas no cinema este porvir se torna presente em algum momento. Sabemos disso enquanto espectadores e, de certa forma, também sabem os personagens. Eles, mais que nós, esperam que esta ameaça nunca chegue a se concretizar. Mas em algum momento ela se fará presente e tomará a imagem. Geronimo por fim aparece em cena e tal como era anunciado, ataca os antigos membros constituintes daquele espaço que agora ele quer ocupar.

A materialização de Geronimo se transforma em um meio de materializar aquilo que vinham temendo os personagens. Aquela ameaça que transbordava para fora da tela na sensação de tensão. Esta que cresce até que não consiga mais ser simplesmente uma sensação para tomar forma material e lá se faz o índio vilão em imagem.

Algo semelhante se dá em Tubarão. A ameaça do animal assassino que vive por debaixo das águas está sempre à espreita deixando assustados os banhistas de verão que foram até a praia. Esta ameaça os deixa atemorizados exatamente por esta característica: ele não pode ser visto, mas sentido. Aqui a ameaça ganha contornos mais agressivos. Diferente de No tempo das diligências, não é somente por meio das palavras que se constitui a ameaça. Na primeira cena do filme a garota que participava de um luau corre até a água e lá é atacada por algo de debaixo da água. Neste momento não sabemos o que está debaixo da água atacando, mas ainda assim existe a ameaça que se faz presente no extracampo.


Depois de certo tempo, certos do que seria a ameaça, um grupo de pessoas parte para a caçada do tubarão. Esta ameaça se constitui principalmente graças à palavra. Mas diferente do filme de Ford, aqui os ataques são mostrados fazendo com que o espectador possua algo de concreto pelo qual temer. Existe um perigo real por debaixo daquelas águas, escondido em algum canto fora da imagem. Queremos ver, mas esta possibilidade não nos é dada. Não. O que nos é permitido ver são os ataques, os corpos se contorcendo pela dor da morte iminente, o sangue que inunda a praia. Vemos o efeito, não a causa (ou causador).

Em ambos os filmes existe um conteúdo vibrante para além das imagens que é atestado pela palavra escrita e falada. Em ambos os casos a ausência da presença da ameaça em quadro faz com que as imagens demonstrem um peso de algo que está para além dela. Algo que se faz presente no tempo fílmico. Em ambos os casos o extracampo desempenha papel de grande importância para o desenvolvimento da fábula. Este extracampo faz surgir a importância da palavra, este elemento estranho ao cinema, no filme. É aderida pelo cinema para que se atinja a excelência na expressão de uma sensação.  O espectador, embora nem sempre consiga entender, sabe que a palavra é um artifício estranho ao cinema e por isso sofre com esta ausência da imagem à que a palavra se refere. A palavra sugere uma imagem que mais tarde surgirá no filme. A palavra constrói esta espera angustiante. Uma vez surgida a imagem se desfaz a espera e tem-se, enfim, a mudança de sentimento.

O cinema faz a deglutição do que lhe é externo para que passe a constituir parte de seu ser. Ainda assim a palavra não é algo que deva ser considerado antes das imagens. Um filme deve ser construído a partir de suas imagens. Embora No tempo das diligência e Tubarão se valham da palavra para anunciar este perigo que paira sobre os personagens, está ali impressa nas imagens o sinal deste temor, seja pela expressão dos personagens (No tempo das diligências) seja pelo ataque do monstro não visto (Tubarão).


[este texto faz parte da série a palavra no cinema publicada aqui no blog em novembro de 2014. Este texto é precedido por A palavra no cinema e é seguido por A palavra e seu império]



[1] Este dramático é um termo genérico, pode ser entendido por ele tanto suspense, terror...

terça-feira, 11 de novembro de 2014

A palavra no cinema


Com o passar dos tempos o homem desenvolveu e aperfeiçoou suas formas linguísticas, escritas e faladas. Hoje é muito mais simples nos expressarmos por meio da linguagem do que por meio de imagens. Existem determinados conceitos que são de extrema dificuldade de serem expressos (e entendidos) se não o for por meio da escrita ou da fala - e nem pensamos em fazê-lo de outra forma. O desenvolvimento da filosofia, por exemplo, se dá exatamente sobre este solo. Muitos dos embates filosóficos são desenvolvidos tomando como ponto de partida uma questão linguística, desenvolvendo-a em busca de um correspondente realista, no mundo.

Aqui se trata de falar de cinema. Neste caso, a linguagem escrita (em especial) exerce papel principal num quesito posterior do cinema: a teoria. Nela são desenvolvidas questões sobre os meios estéticos representativos e ontológicos do cinema que seriam de particular complexidade se não tivéssemos desenvolvido uma linguagem tão sofisticada quanto esta que utilizamos. Imagine se ainda nos servíssemos de caracteres de comunicação como de nossos antepassados que desenhavam nas paredes das cavernas: talvez não tivéssemos avançando tanto intelectualmente e nossa compreensão de mundo seria muito mais limitada.

Mas ainda assim o homem sempre buscou uma formulação imagética em que fosse desnecessário o uso linguístico para que fosse compreendido. É o caso, por exemplo, da pintura. Qualquer homem, de qualquer lugar do mundo, que fale a língua que for, terá compreensão semelhante a de outros homens acerca de determinada pintura – conquanto ela não seja abstrata. Ao nos depararmos com um quadro que apresente um homem sentado numa cadeira, compreendemos o que ele faz, o cenário em que está. E provavelmente compreenderemos até mesmo a significação de sua expressão facial.


No caso do cinema, em particular em seu período mudo, viu-se como uma das principais questões guiadoras desta nova forma artística era a de, como nas artes plástica, se libertar da palavra escrita para que pudesse se expressar somente por meio das imagens. Como é de conhecimento geral, no período do cinema mudo aqueles pontos mais complicados de serem expressos na imagem (como a fala dos personagens) apareciam em letreiros que interrompiam o fluxo contínuo da ação que se desenrolava. Era um processo pouco criativo do qual os cineastas cada vez mais tentaram se desvencilhar até o fim do período mudo.

Neste momento a palavra era vista como sendo inimiga do cinema. Era uma saída fácil que fazia o cineasta fugir de um meio mais criativo, e por consequência mais artístico. Era a transição de um pensamento, de uma ideia, para as imagens. Por meio de sobreposições e cortes que davam significação a determinadas cenas, o período mudo foi um dos momentos de maior efervescência criativa da história do cinema. O cineasta que se contentava a se curvar aos letreiros era visto como pouco artístico. Daí surge a genialidade de uma figura como Murnau e Chaplin. Ambos tentavam fazer seus filmes com o mínimo possível de letreiros, e ainda assim seus filmes são compreensíveis e envolventes, souberam reconhecer a essência da forma artística com a qual trabalhavam.

Mas no meio do caminho surge o cinema falado, e com ele todas as aspirações de um “cinema puro” – que seria um cinema feito sem a influência das outras artes, feito partindo de suas próprias particularidades – desmoronam. Os atores que, até então, tinham que se valer de inúmeras caretas para se fazerem entender, agora podiam resolver seus problemas falando algumas linhas escritas no roteiro. O cinema falado foi visto como o fim de um cinema poético, artístico, por grande parte dos entusiastas do cinema mudo. Mas até mesmo estes se curvaram às falas dos atores. Mesmo Chaplin que tentou o máximo que pôde manter acesa a chama da criatividade de outrora.


Com o cinema falado veio a preguiça. O cineasta não precisa mais pensar um meio de mostrar que o personagem está angustiado, ele simplesmente simplesmente o faz dizer que está angustiado. O espectador comum não se preocupa com esta questão porque está mais interessado na história que se desenrola. É assim que surgem os filmes de “teste de cadeira”, em que os personagens passam o filme inteiro a conversar, sentados. O espectador tem a impressão de ter visto um bom filme porque estes se assemelham muito com suas próprias vidas em que os problemas são resolvidos por meio de conversas, sem muitas ações. O cotidiano os acostuma a esta falta de inventividade do filme.

A palavra seria, assim, um conteúdo estranho ao mundo cinematográfico, que tende ao imagético. Um filme de ficção deve se resolver por meio de suas imagens, e é nesta inventividade que se encontra o traço mais característico de um cineasta-artista. Carlitos nunca precisou falar para ser engraçado. Nem mesmo em O grande ditador, quando as piadas eram todas feitas por meio dos gestos dos atores e não por falas engraçadinhas. O mesmo se dá com os filmes de Hitchcock. Ao entrevistá-lo, foi precisamente este o ponto que mais chamou atenção de Truffaut quanto à obra do mestre do suspense: não são necessárias palavras para a compreensão de seus filmes. Mesmo um espectador que não fale o idioma do filme seria capaz de entendê-lo somente pelo que se apresenta na tela.

É estranho que com o passar do tempo a palavra tenha ganho tanta atenção no cinema. Filmes que não são bons, que não possuem qualquer inventividade no modo de contar uma história (não necessariamente inventando algo de novo, pode usar as velhas fórmulas, contanto que seja criativo ao apresentar a história, abolindo o simples campo/contracampo das cenas de diálogos) são tidos como grandes obras de arte. Mas o que eles têm, na verdade, é um grande texto. Será esta característica o suficiente para que consideremos um filme como uma obra de arte? Não seria esta uma particularidade da literatura ou, quem sabe, do teatro?


A excelência do fazer cinematográfico encontra-se exatamente neste “como” contar a história, e não no simples “contar uma história”. É aí que se encontra, por exemplo, a genialidade de Godard ao filmar Acossado. A história de seu filme-debute é extremamente banal, semelhante a de tantos outros filmes, mas como Godard resolve conta-la é diferente de tudo o que se havia tentado fazer até então. Temos em frente a nossos olhos um filme que baila ao som do movimento da película que corre dentro da câmera: seus falsos raccord e seus planos-sequência são memoráveis.

Este ato de deixar a palavra escrita e falada de lado é um conhecimento que provém, em parte, dos curiosos de cinema que iam à cinemateca francesa conhecer a cinematografia de todo mundo. Os filmes nem sempre precisavam ser legendados para que eles assistissem, mesmo que não soubessem o idioma nele falado. Não necessitamos compreender espanhol para poder compreender a obra de Picasso. De sentir algo quando nos deparamos com ela. O mesmo deve acontecer com um filme. Aquele olhar choroso de Nana para a tela de cinema em Viver a vida, também de Godard, traduz isso. Se virmos uma pessoa chorando, de imediato nos simpatizamos por ela. Um bom cineasta deve saber traduzir este sentimento por meio das imagens de seu filme e não coloca-las na boca de algum ator. As lágrimas possuem mais valor que as palavras: "estou triste".

Alguns anos atrás um filme me chamou atenção. Wall-e era o mais novo lançamento da Pixar, e um dos lançamentos mais comentados do ano. A proposta é interessante, no aspecto fílmico. Como pode um cineasta desenvolver um filme centrado num robô solitário que não fala? O filme deveria se desenvolver todo por meio de imagens, dos atos limitados de um robô que não tinha articulações ou músculos expressivos como os que possui o homem. Ainda assim – talvez por se tratar de um filme infantil – os cineastas caem no lugar-comum de colocar alguns telões explicando o que até então as imagens poderiam por si só terem deixado implícito, esforçando o trabalho cooperativo do espectador com o filme.


Existe ainda uma saída que fora encontrada nos tempos do cinema mudo: o jornal. Era posto um personagem em cena lendo um jornal que logo seria posto em close-up quase como um letreiro. Mas não se tratava esta cena como sendo um letreiro, mas como uma saída inventiva. Na verdade, trata-se de uma trapaça. Um jornal em close-up é um letreiro, são palavras escritas sendo utilizadas para explicar alguma parte do filme de grande complexidade para ser executada por meio de imagens – ou muito longa. É escolhido o menor caminho em direção à saída.

Novamente, não podemos tomar um filme como uma obra artística por sua trama e pelo diálogo travado por seus personagens. Como o diretor se esforça para resolver os problemas da história que tem em mãos? Neste sentido, Hitchcock era gênio. Genialidade que provinha do fato de pensar seu filme em imagens e não em acontecimentos. Quando o cineasta se bate com o segundo ele deixa o primeiro (que é a essência do cinema) de lado. Os acontecimentos podem ser resolvidos sem qualquer inventividade. Ao invés de colocar um ônibus pegando fogo numa rua da cidade o cineasta prefere colocar um personagem comentado o fato.

O roteiro pode ser muito bem estruturado, muito bem escrito, mas não servir um bom filme. Poderíamos filmar um homem lendo Hamlet por uma hora e meia sentado em uma cadeira. O texto é maravilhoso, o filme ruim. Parte da inventividade do diretor saber traduzir Hamlet em imagens, sem que necessariamente se retire o belo texto de Shakespeare - e assim justifique a sua motivação de transformá-lo em filme. Mas como fazê-lo? Cabe a um grande artista pensá-lo.


É possível escrever por meio de imagens e se fazer entendido. É possível fazer passar uma ideia (Eisenstein, Vertov) ou uma emoção (Murnau, Hitchcock) sem o uso de palavras. Daí a ideia de que o cinema possui uma linguagem própria – se ele possui uma linguagem própria não seria necessária outra, como os livros que geralmente não necessitam de ilustrações para se fazer entendido. Daí, também, intitularmos este texto por "a palavra no cinema", já que na sétima arte existem dois tipos de linguagem. Concluímos que a palavra é uma substância estranha dentro do cinema.

Isto em nada impede o uso das palavras por parte dos atores. Hitchcock fez grande parte de seus filmes durante o período falado, mas nem por isso ele se curvou às palavras para contar suas histórias. É aceita a palavra no cinema, contanto que ela não substitua a imagem. O realismo almejado pelos cineastas do cinema falado se dá com a presença da palavra, mas isto não significa que seus filmes devam ficar submissos ao uso da palavra escrita ou falada. É o que nos mostra Richard Linklater em Antes doamanhecer: o filme é constituído de longas conversas, mas nem por isso a paixão que cresce entre os personagens passa despercebida pela imagem. Muito pelo contrário. Os personagens não falam de seu desejo um pelo outro até o fim do filme, e quando chegamos a este momento já sabemos tudo aquilo que eles externam por meio das falas. A cena em que o casal escuta um disco dentro da cabine da loja de música é um exemplo do sucesso do filme enquanto filme (cinema).

O cinema é a arte das imagens em movimento e deve ser pensado e feito como tal.



[Este texto faz parte da série a palavra no cinema, publicada aqui no blog em novembro de 2014. Seguem este texto: 
A palavra e o invisível
A palavra e seu império]

[as imagens: 1- Acossado (Godard); 2 - Encouraçado Potemkin (Eisenstein); 3 - Janela indiscreta (Hitchcock); 4 - Luzes da cidade (Chaplin); 5 - Aurora (Murnau); 6 - Antes do amanhecer (Linklater).]