quinta-feira, 21 de maio de 2015

Tartufo de F. W. Murnau (herr Tartüffe, 1925)


Jacques Rancière, em A fábula cinematográfica, escreve um artigo sobre Tartufo de Murnau. O texto abre com um comportamento típico de filósofo de buscar a origem da palavra central antes de atribuí-la um conceito. A palavra em questão é hipócrita. Trata-se de uma palavra de peso, que ganhou contornos de insulto com o passar do tempo. Este resgate realizado pelo filósofo oferece-nos um retrato de um sentido que se perdeu, mas que ainda é muito válido, especialmente ao tratar de um filme baseado em obra de Moliére. "...'hipócrita' vem de uma palavra grega, hupokrites, que significa ator, o homem que fala oculto atrás da máscara" (p. 35), escreve Rancière. Ou seja, o hipócrita é aquele que age e fala como sendo um quando na verdade é outro: promove uma ilusão. Mas não faremos aqui uma resenha do texto de Rancière, e sim um exercício próprio.

Carl Mayer escreveu o texto de Tartufo que chegou ás mãos de Murnau após um projeto que o diretor muito desejava fazer ter sido a ele negado. Obrigado a fazer este filme, Murnau modificou o texto e o encurtou. Nele é apresentada uma história de hipocrisia no duplo sentido que a palavra tem, como provoca Rancière. Isso porque o filme abre com uma história original de Mayer: um velho rico vive somente com sua governanta e mais ninguém. A hipocrisia que vive ao nosso lado, como diz os letreiros ao início do filme, surge na figura da governanta. Sempre que ela aparece em frente ao patrão é amável, sorridente, prestativa. Quando ele dá as costas ou está a uma distância suficiente para que já não a possa mais ouvir (distância que não é muita, o velho é quase surdo), ela promove insultos contra o homem. E a hipocrisia desta permanência dela ao lado do patrão surge nos esforços de ser ela sua única herdeira. O neto do homem tornou-se ator o que é tratado pela governanta como degenerado, o que faz o velho não querer mais vê-lo.


Enfim o neto aparece na casa do avô, que se recusa a encontrá-lo. Notando que a raiva do velho é dirigida pela governanta - e Murnau explicita bem isso com um corte para mostrar como a governanta estimula o ataque de raiva do avô contra o neto -, o rapaz decide usar suas habilidades de ator para desmascará-la. Para isso torna-se o hupokrites de Rancière, e surge na casa de seu avô como um cinema móvel. Após flertar com a governanta para que ela aceitasse a exibição na casa, o rapaz organiza a sessão de cinema em que passará o Tartufo, história título do filme e baseada na peça de Molière.

No filme que o rapaz exibe na sala de seu avô, desenrola a trama de um homem que se torna seguidor de um estranho a quem realiza todos os desejos. Sua esposa vê o lado prejudicial daquela relação e tenta abrir os olhos de seu marido para o aproveitamento do líder de um culto. (Nas cópias do filme existentes no Brasil temos alguns cortes providenciais da censura estadunidense da época que não deixou que detalhes de símbolos do cristianismo fossem vistos nas mãos do Tartufo, o que geraria insinuações perigosas). Após algumas tentativas a mulher finalmente consegue mostrar a seu marido que o homem não se passava de um aproveitador. Agora a dedicação incondicional do homem passará do líder religioso que tentou dormir com sua esposa, para a própria esposa. Finda o filme (que toma a maior parte da película de Murnau) o neto desmascara a governanta que é posta para fora de casa. 


Um detalhe que salta aos olhos dos espectadores ao assistir ao filme é a diferença de tratamentos aos atores da trama da governanta e aos atores do filme exibido da sala. Os atores da película que o neto exibe para seu avô são maquiados, bem tratados, para que possam dar aquela ilusão de outro momento no tempo, de que não são eles, mas outras pessoas que estão ali presentes (a máscara). É necessário fazer sentida a presença de Tartufo, de Orgon e de sua esposa. E para isso é necessário criar a ilusão de que aquele é outro mundo, de que vemos outra situação que não a que presenciamos no momento. Somos os enganados pelo hipócrita que nos mostra e diz aquilo que queremos ver e ouvir (no caso do filme, somente ver). Já os atores da trama da governanta não estão maquiados, seus rostos surgem em sua verdade, em seus defeitos naturais. Sem tratamento especial. São postos em frente às câmeras para serem desnudados: terão suas mascaras retiradas.

Uma das características mais comentadas no início do cinema é a capacidade da câmera de registrar a verdade por trás daquilo que ela mostra, a sua capacidade de despir o que é posto em frente às suas lentes. Os rostos dos personagens de uma trama fictícia é o caso mais comum. Porque ao invés de colocar por meio de palavras, dos malditos letreiros, se buscava fazer este trabalho no desenrolar natural da ação, dos cortes. No close-up do personagem que fosse o mentiroso, que tivesse sua máscara retirada à força pela sabedoria da câmera. Na cena final esta capacidade da câmera é bem trabalhada por Murnau e seu fotógrafo Karl Freund. O neto tinha visto que a governanta estava envenenando seu avô aos poucos e sabia onde ela guardava o veneno. Após a sessão, quando ele finalmente mostra quem é por trás de seu disfarce (a queda de uma máscara), ele olha para a bolsa da governanta onde estava o frasco de veneno. Seu rosto, enquadrado em close-up tem seus olhos acentuados pela iluminação que deixa o resto de seu rosto nas sombras, ainda que seja possível vê-lo. A governanta ao ver que ele tem o frasco em mãos assusta-se em outro close-up, desta vez breve. O close é este plano capaz de desnudar e fazer as máscaras caírem.


No cinema as máscaras devem ser convincentes, senão facilmente cairão. A única forma possível de se esconder no cinema é por trás das sombras, onde a luz não chega - motor primordial da imagem cinematográfica. Ou permanecer fora do quadro. Tartufo tenta fazer dos livros que lê a sua máscara (imagem acima). Constantemente caminha com eles à altura do rosto para que não seja possível que vejamos sua face. Mas ainda assim ele está em frente à câmera, assim como está em frente à plateia. É por meio do ato de desnudar-se da esposa de Orgon, que Tartufo deixa sua máscara cair. A mulher levanta a saia e mostra as pernas, e Tartufo deixa o personagem que estava interpretando e torna-se quem ele realmente é. Mas, e no caso da governanta, quando não havia uma tentativa de criação de uma máscara, como mostrar que ela era uma hipócrita? O cinema, literalmente, nos mostra. A câmera torna-se o olho do neto que olha pelo buraco da fechadura quando a governanta coloca o veneno na água do avô (penúltima imagem, acima) - é sempre mais recomendável olhar pela fechadura do que simplesmente acreditar no que dizem os outros: é o que faz Orgon no filme também para ver que Tartufo é um patife. O cinema transforma em concreto aquilo que seria somente ideal: a suspeita. A suspeita transforma-se em ato e o hipócrita é, finalmente, desmascarado.

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