Não sou do tempo das grandes salas de cinema. Daqueles espaços imensos que reuniam mais de mil pessoas para assistir a um filme. Com a virada do século o espanto com o cinema passou a diminuir. As pessoas estão cada vez mais habituadas com as imagens em movimento e tem a impressão de que tudo é cinema. Não é. Cinema é este sentar numa sala escura e esquecer o resto do mundo. Ter a possibilidade de mergulhar numa outra realidade que não a minha. Viver um pouco o cotidiano de quem não conheço. Poder viver aventuras que eu, sendo muito covarde, não seria capaz de encarar. É um destes cinemas gigantescos que Tsai Ming-Liang vai mostrar em Adeus Dragon-Inn. O título já é uma referência a este passado, o adeus é somente dado àquele ente querido que deixamos para trás. No caso, um filme, exibido num cinema moribundo.
São mais de mil lugares na sala de cinema que são ocupadas por algo em torno de dez pessoas. Apenas três estão ali para assistir ao filme, de fato. Dois deles atores desta produção de tempos idos, quando as salas de cinema eram populares. O terceiro, uma criança, neto de um dos atores. Os demais personagens nada falam, mas também parecem pouco interessados na projeção. A sala de cinema não é para eles um lugar para se ver uma obra artística, mas para encontrar alguém - os muitos homens em busca de um contato homossexual anônimo. A forma do filme de Tsai Ming-Liang é semelhante ao de seus filmes anteriores: longos planos fixos. Mas desta vez há um algo além, uma espécie de justificação.
Os homens que vão até a sala de cinema em busca de um encontro não conseguem travar um contato entre eles. Simplesmente trocam olhares e passam adiante. Trocam cadeiras. São os espectadores modernos, estes a quem a contemplação das imagens dançantes na tela de cinema não possui similitude com aquelas de sua realidade. O que Tsai Ming-Liang lhes dirá é: sim, há semelhança. Vocês andam pelo prédio do cinema, contemplam as formas uns dos outros, exalam seu desejo pelo outro, mas em momento algum os terão. O que fica é o sentimento proveniente da contemplação: a experiência estética. Algumas vezes ele é frustração, em outros, não. Mesmo que eles não demonstrem interesse de assistir à película projetada na tela, eles vivem como ávidos cinéfilos, mas neste caso contemplando o seu mundo próprio.
Em paralelo com estes personagens, Ming-Liang coloca ainda uma funcionária do cinema, que trabalha na bilheteria, que vaga pelo prédio sem ter muito o que fazer enquanto a sessão acontece. Em determinado momento, ela resolve tentar inciar um contato (amoroso?) com o projecionista. Mas como estamos numa sala de cinema, ver o projecionista não será possível, a não ser que o filme já tenha acabado. Mesmo quando ela sobe até a cabine de projeção, numa cena dolorosa devido a sua perna manca, ela não o encontrará. Não podemos ver o projecionista, assim como não podemos ver os processos de criação de uma obra cinematográfica - um dos grandes pecados do fazer fílmico é deixar aparecer a sombra da câmera na imagem (coisa boba, eu sei).
Num dos encontros de um japonês (imagem acima do personagem sem nome) que é parte da plateia do filme Dragon-Inn, que é exibido no cinema, lhe é dito que há um fantasma que habita o cinema. Estranho. Existiria realmente um fantasma naquela sala? Seria este o motivo pelo qual as pessoas não iriam mais até ela? Provavelmente não. Ainda assim, quando o jovem vê uma mulher estranha no cinema, e que some por um momento, ele a toma como um fantasma. Esta é uma das tiradas cômicas de Ming-Liang no decorrer do filme, comicidade que é feita num tempo muito próprio, muito diferente do resto do cinema - e de difícil digestão para boa parte dos espectadores habituados a uma cinema rápido, de planos de 3 segundos.
Mas o que realmente fica durante toda a projeção de Adeus Dragon-Inn é um gosto amargo travando a garganta. Uma sensação de despedida de alguém muito querido. O mais doloroso é imaginar este adeus sendo dado ao cinema. - Apesar de possuir um viés cômico, logo no início do filme Ming-Liang coloca duas mulheres comendo. Não se importam do barulho que fazem, que incomoda a quem está por perto. É esta outra faceta do espectador de cinema contemporâneo: a sala de cinema não é um lugar para assistir filmes, mas para passar o tempo. E neste tempo a ser passado pode-se fazer de tudo, inclusive comer.
O que sobra é o olhar marejado de um ator frente ao passado em que a arte da qual ele fez parte já fora grandiosa o suficiente para ser posta num palácio como aquele. Esta pouca importância que o cinema possui hoje é, em parte, decorrente da constante presença do audiovisual em nossas vidas, o que faz, de certa maneira, diminuir a importância do espetáculo fílmico como um todo - inclusive a sua exibição numa tela grande. Daí a ação de um dos velhos atores levar junto seu neto criança. É somente mostrando a importância da arte para os mais jovens que eles poderão respeitá-la e apreciá-la, e não deixar que mais salas de cinema cheguem ao seu fim. Se nós já somos espectadores em nossas relações com o mundo, por que não sermos também espectadores de cinema?
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