O título de um filme, com frequência, nos deixa com a pulga atrás da orelha sobre o seu conteúdo. Em muitos casos ele faz um eco de referência a um gênero. É o caso da palavra "fantasma". É próprio ao cinema de terror apresentar histórias de fantasmas. Aquelas histórias fantásticas que somente podem acontecer numa tela de cinema ou nas páginas de um livro. "Fantasma" ganhou uma conotação, com o passar do tempo, que o vincula a um gênero narrativo exatamente pela evocação que ele faz - o sobrenatural. Mas alguns filmes se valem de tal palavra quase como se estivesse a desconstruí-la, ou simplesmente a fazer uma brincadeira com o termo. Lembro de, poucos anos atrás, ter assistido a um curta nacional com o famigerado título: Fantasmas. Trata-se de uma película inteiramente composta de um único plano estático que observa uma rua com um posto de gasolina. Até que ao fim surge um carro, a câmera faz o zoom para mostrar a motorista. A imagem volta algumas vezes para ver esta motorista que aparece brevemente em tela. O "fantasma" evocado pelo título é o fantasma da ex-namorada do cinegrafista anônimo. O filme rendeu um texto muito interessante (como sempre) na Revista Cinética.
Em caminho semelhante anda este filme de Murnau, décadas antes do título de André Novais. Fantasma dá a impressão ao espectador um pouco familiarizado com a obra de Murnau de que será um filme semelhante a Nosferatu ou Fausto. Ao assisti-lo percebe-se que não. O fantasma de Murnau é semelhante ao fantasma de André Novais, um fantasma da memória, uma imagem do passado que quer permanecer presente. Que necessita ser exorcizada ou em vídeo (o curta) ou num romance (escrito), como faz o protagonista do filme alemão. Nesta retrospectiva que fiz nestas ultimas semanas da obra do mestre alemão, podemos perceber que seu gosto pelo fantástico não é tão trabalhado quanto pode parecer para aqueles que o conhecem como sendo o criador de Nosferatu. O filme do vampiro é uma exceção dentro da cinematografia de Murnau.
Deixemos de lado este debate e nos fixemos em Fantasma, o filme que realmente nos interessa aqui. É uma peça curiosa, escrita por Thea von Harbou baseada em conto de escritor ganhador do Nobel, Hauptmann. O filme começa com seu protagonista preocupado. Uma mulher diz que ele pode diminuir seus temores se colocá-los em papel. E ele o faz. A história que segue, dividida em seis atos, parte deste desenrolar cuidadoso do poeta que descreve seu passado dramático, e até trágico. O que soa curioso no filme é exatamente esta premissa tomada para contar a história: se é um dos personagens da narrativa que conta a história, como ele pode narrar aquilo que ele não tinha participado? Seria um trabalho da memória? O roteiro de von Harbou não explica. Simplesmente coloca-nos naqueles momentos em que vemos as relações entre os personagens se pautarem sem que Lorentz, o "narrador", esteja presente (seria a imaginação do escritor?).
Como também aconteceu em O castelo Voegelod, o filme de Murnau é extremamente afetado pela presença do trabalho de texto de von Harbou. Os letreiros, por vezes irrelevantes para a compreensão da trama, surgem com uma frequência absurda. Digo irrelevantes, porque muitas vezes eles vêm colocar um assunto que não necessariamente vá ter uma relação direta com a ação - e o letreiro, por sua vez, quebra o desenrolar da ação. Mas a narrativa consegue funcionar muito bem, em especial nos moldes de um cinema influenciado (não necessariamente sendo um, como muitos colocam) pelo expressionismo. Se Lorentz escreve a história que vemos, tomamos também as suas impressões do que acontecem. Dá espaço ao realizador de conceder seu trato estético mais ousado ao filmar partindo da perspectiva de quem está inserido na trama.
Lorentz, a caminho do trabalho, é atropelado por uma carruagem conduzida por uma bela jovem por quem ele se encanta. Passado seu momento de confusão e choque do acidente, ele corre atrás da carruagem da moça que, após ter visto que estava tudo bem e ajudado-o a se levantar, foi embora. Esta imagem da moça permanecerá na mente de Lorentz pelo resto do filme e o levará ao fundo do poço. O fantasma, dito pelo título do filme, será esta lembrança que surgirá sempre em sua mente e que lhe levará a criar uma obsessão. Com sua mente de poeta, o emocional de Lorentz se volta por completo para aquele ideal que deve ser alcançado - a garota perfeita que se foi. Ele a segue até sua casa, mas não consegue falar com ela. Pede aos pais da moça para cortejá-la, e acaba demitido de seu trabalho - são pessoas influentes na sociedade da cidade em que vivem. Na contínua obsessão ele enxerga o rosto da moça por quem está apaixonado no rosto de outra mulher, com quem passa a ter um caso, mas nada disso levará a uma completa satisfação. Com sua vida caindo aos pedaços, a tragédia final era irreversível.
O fantasma tem este poder de, invisivelmente, mexer nas peças que compõem a vida e derrubá-la, embaralhá-la. A moça que sobrevive somente na imaginação de Lorentz age como um fantasma ruim, que sem ser notado trás o caos. Tudo isso muito calmamente mostrado pelo filme e, por sua vez, pelo protagonista que deve pegar cada detalhe deste passado e colocar em papel para que seu sofrimento possa enfraquecer. Esta mostragem lenta da queda da sanidade mental do protagonista leva até o momento mais expressionista do filme: Lorentz passa a delirar e, na rua em que fora atropelado pela moça por quem está apaixonado, enxerga o fantasma da carruagem se distanciando, tal como no filme de Sjostrom*.
Fantasma, filme por muitos anos considerado perdido, mostra que Murnau é um cineasta que se preocupa mais com fazer um cinema dramático, humano, do que os filmes de gênero aos quais normalmente é associado - a exemplo do terror. Se poderia parecer numa primeira vista que o filme se trataria de uma obra sobrenatural, ele prova o contrário: é um filme sobre homens, sua memória e suas obsessões. E talvez o lado animalesco do homem: o desejo - que surge com certa frequência na filmografia do cineasta. O desejo de Lorentz pela moça que viu apenas uma vez, o desejo do homem pela mulher da cidade em Aurora, o desejo de Fausto pelo conhecimento e pela juventude em filme de mesmo nome. Fantasma mostra a universalidade do artista Murnau, de fazer uma obra que pode dialogar com qualquer pessoa, de qualquer lugar, a qualquer momento da história. Porque fala de coisas que são conhecidas por todos. Se já escrevi isso em textos anteriores sobre os filmes do cineasta, é porque é algo que se percebe em todos eles (como se percebe em Chaplin, Shakespeare, Dostoiévski...).
*A carruagem fantasma, 1921.