domingo, 31 de maio de 2015

Fantasma de F. W. Murnau (phantom, 1922)


O título de um filme, com frequência, nos deixa com a pulga atrás da orelha sobre o seu conteúdo. Em muitos casos ele faz um eco de referência a um gênero. É o caso da palavra "fantasma". É próprio ao cinema de terror apresentar histórias de fantasmas. Aquelas histórias fantásticas que somente podem acontecer numa tela de cinema ou nas páginas de um livro. "Fantasma" ganhou uma conotação, com o passar do tempo, que o vincula a um gênero narrativo exatamente pela evocação que ele faz - o sobrenatural. Mas alguns filmes se valem de tal palavra quase como se estivesse a desconstruí-la, ou simplesmente a fazer uma brincadeira com o termo. Lembro de, poucos anos atrás, ter assistido a um curta nacional com o famigerado título: Fantasmas. Trata-se de uma película inteiramente composta de um único plano estático que observa uma rua com um posto de gasolina. Até que ao fim surge um carro, a câmera faz o zoom para mostrar a motorista. A imagem volta algumas vezes para ver esta motorista que aparece brevemente em tela. O "fantasma" evocado pelo título é o fantasma da ex-namorada do cinegrafista anônimo. O filme rendeu um texto muito interessante (como sempre) na Revista Cinética.

Em caminho semelhante anda este filme de Murnau, décadas antes do título de André Novais. Fantasma dá a impressão ao espectador um pouco familiarizado com a obra de Murnau de que será um filme semelhante a Nosferatu ou Fausto. Ao assisti-lo percebe-se que não. O fantasma de Murnau é semelhante ao fantasma de André Novais, um fantasma da memória, uma imagem do passado que quer permanecer presente. Que necessita ser exorcizada ou em vídeo (o curta) ou num romance (escrito), como faz o protagonista do filme alemão. Nesta retrospectiva que fiz nestas ultimas semanas da obra do mestre alemão, podemos perceber que seu gosto pelo fantástico não é tão trabalhado quanto pode parecer para aqueles que o conhecem como sendo o criador de Nosferatu. O filme do vampiro é uma exceção dentro da cinematografia de Murnau.


Deixemos de lado este debate e nos fixemos em Fantasma, o filme que realmente nos interessa aqui. É uma peça curiosa, escrita por Thea von Harbou baseada em conto de escritor ganhador do Nobel, Hauptmann. O filme começa com seu protagonista preocupado. Uma mulher diz que ele pode diminuir seus temores se colocá-los em papel. E ele o faz. A história que segue, dividida em seis atos, parte deste desenrolar cuidadoso do poeta que descreve seu passado dramático, e até trágico. O que soa curioso no filme é exatamente esta premissa tomada para contar a história: se é um dos personagens da narrativa que conta a história, como ele pode narrar aquilo que ele não tinha participado? Seria um trabalho da memória? O roteiro de von Harbou não explica. Simplesmente coloca-nos naqueles momentos em que vemos as relações entre os personagens se pautarem sem que Lorentz, o "narrador", esteja presente (seria a imaginação do escritor?).

Como também aconteceu em O castelo Voegelod, o filme de Murnau é extremamente afetado pela presença do trabalho de texto de von Harbou. Os letreiros, por vezes irrelevantes para a compreensão da trama, surgem com uma frequência absurda. Digo irrelevantes, porque muitas vezes eles vêm colocar um assunto que não necessariamente vá ter uma relação direta com a ação - e o letreiro, por sua vez, quebra o desenrolar da ação. Mas a narrativa consegue funcionar muito bem, em especial nos moldes de um cinema influenciado (não necessariamente sendo um, como muitos colocam) pelo expressionismo. Se Lorentz escreve a história que vemos, tomamos também as suas impressões do que acontecem. Dá espaço ao realizador de conceder seu trato estético mais ousado ao filmar partindo da perspectiva de quem está inserido na trama.


Lorentz, a caminho do trabalho, é atropelado por uma carruagem conduzida por uma bela jovem por quem ele se encanta. Passado seu momento de confusão e choque do acidente, ele corre atrás da carruagem da moça que, após ter visto que estava tudo bem e ajudado-o a se levantar, foi embora. Esta imagem da moça permanecerá na mente de Lorentz pelo resto do filme e o levará ao fundo do poço. O fantasma, dito pelo título do filme, será esta lembrança que surgirá sempre em sua mente e que lhe levará a criar uma obsessão. Com sua mente de poeta, o emocional de Lorentz se volta por completo para aquele ideal que deve ser alcançado - a garota perfeita que se foi. Ele a segue até sua casa, mas não consegue falar com ela. Pede aos pais da moça para cortejá-la, e acaba demitido de seu trabalho - são pessoas influentes na sociedade da cidade em que vivem. Na contínua obsessão ele enxerga o rosto da moça por quem está apaixonado no rosto de outra mulher, com quem passa a ter um caso, mas nada disso levará a uma completa satisfação. Com sua vida caindo aos pedaços, a tragédia final era irreversível.

O fantasma tem este poder de, invisivelmente, mexer nas peças que compõem a vida e derrubá-la, embaralhá-la. A moça que sobrevive somente na imaginação de Lorentz age como um fantasma ruim, que sem ser notado trás o caos. Tudo isso muito calmamente mostrado pelo filme e, por sua vez, pelo protagonista que deve pegar cada detalhe deste passado e colocar em papel para que seu sofrimento possa enfraquecer. Esta mostragem lenta da queda da sanidade mental do protagonista leva até o momento mais expressionista do filme: Lorentz passa a delirar e, na rua em que fora atropelado pela moça por quem está apaixonado, enxerga o fantasma da carruagem se distanciando, tal como no filme de Sjostrom*.


Fantasma, filme por muitos anos considerado perdido, mostra que Murnau é um cineasta que se preocupa mais com fazer um cinema dramático, humano, do que os filmes de gênero aos quais normalmente é associado - a exemplo do terror. Se poderia parecer numa primeira vista que o filme se trataria de uma obra sobrenatural, ele prova o contrário: é um filme sobre homens, sua memória e suas obsessões. E talvez o lado animalesco do homem: o desejo - que surge com certa frequência na filmografia do cineasta. O desejo de Lorentz pela moça que viu apenas uma vez, o desejo do homem pela mulher da cidade em Aurora, o desejo de Fausto pelo conhecimento e pela juventude em filme de mesmo nome. Fantasma mostra a universalidade do artista Murnau, de fazer uma obra que pode dialogar com qualquer pessoa, de qualquer lugar, a qualquer momento da história. Porque fala de coisas que são conhecidas por todos. Se já escrevi isso em textos anteriores sobre os filmes do cineasta, é porque é algo que se percebe em todos eles (como se percebe em Chaplin, Shakespeare, Dostoiévski...).


*A carruagem fantasma, 1921.

terça-feira, 26 de maio de 2015

A Rua de Karl Grune (Die Straße, 1923)


Costumeiramente, críticos e teóricos ao se referir ao expressionismo cinematográfico tendem a imaginar os filmes do movimento como possuidores de diversas inventividades estéticas no campo da montagem. Certamente era com este sentido que se referia ao expressionismo André Bazin ao repudiar a fragmentação do espaço cênico no cinema. O mesmo Bazin que observa que nem todos os cineastas do movimento o faziam: a exemplo de Murnau - e eu diria até mesmo, de Fritz Lang. Mas esta não é uma característica que se aplique a todo o cinema expressionista. Exemplo disso é este A rua que muito bem se vale das técnicas de montagem para poder representar o subjetivo de seus personagens. Lembremos que a característica primordial do expressionismo (e para isso recordemos de Munch) é a representação da percepção emocional subjetiva do mundo, não a sua visão objetiva: daí os cenários distorcidos em O gabinete do doutor Caligari.

Em A rua, filme de Karl Grune escrito por Carl Mayer, o expressionismo apresenta-se na montagem bem colocada em que as impressões da vida da cidade se põem sobre seus personagens. Mas talvez este não seja um filme expressionista, no fim das contas. Porque são momentos bem pontuais em que esta escolha estética surge na trama, e não durante todo o filme. Não podemos dizer que o filme é por inteiro expressionista devido a algumas poucas cenas. Talvez o filme se aproximasse mais do impressionismo francês - escola de Louis Delluc, Jean Epstein, Abel Gance - do que de seu semelhante alemão. Mas deixemos de lado este embate para que pensemos o filme.


Grune consegue construir uma peça do mais legítimo trato cinematográfico, o que significa dizer que é um filme todo feito por meio das imagens. Os cinco ou seis letreiros de diálogo que surgem no decorrer do filme em nada impedem a compreensão da trama que se desenvolve. O filme abre com um homem deitado no sofá de casa enquanto sua esposa prepara o jantar. Por meio da janela ele observa o movimento das sombras das pessoas que caminham na rua. Ele se empolga com o frenesi da cidade, o seu barulho, sua vida. Vai até a janela e enxerga além da rua cheia de gente e automóveis: ele vê tudo aquilo que a cidade pode lhe proporcionar, toda o seu entretenimento. Já sua esposa, ao se pôr em frente à mesma janela, vê somente a rua, mas desta vez ganhando uma conotação diferente, um tanto melancólica.

Este embate surge com força neste cinema alemão dos anos 1920. O país passava por um momento, tal como grande parte do norte do ocidente, de urbanização. As pessoas cada vez mais deixavam sua vida no campo para viver no caos urbano, buscando todas as suas promessas. E claro que nem todas eram cumpridas. Este é um tema muito caro à obra de Carl Mayer que viria a roteirizar alguns filmes de Murnau, em especial Aurora, que tratam exatamente desde assunto. Em A rua não fica explícito de que um dia aquele casal morou no campo, ainda assim fica implícito por meio das ações ingênuas que o homem toma quando decide deixar o conforto do lar e viver os "benefícios" de uma vida na cidade.


O homem encontra uma mulher que combina com dois homens de dar um golpe em alguém para conseguir alguma coisa. O homem encantado pela beleza da mulher que dizia ter perdido seu dinheiro passa a segui-la quando ela diz que o encontrou. A relação entre eles evolui. Os homens que até então eram meros figurantes, tomam a cena e sentam-se à mesa. Logo em seguida surge um sujeito rico que também se encanta com a mulher e senta-se à mesa: a possibilidade de um golpe duplo é vislumbrada pelos bandidos. Terminada a noite numa jogatina mal planejada, a mulher leva os dois homens a quem dará um golpe até um apartamento, onde o sujeito rico é assassinado por seus comparsas. A trama é simples, sendo posta em simultaneidade com a história de um cego que vive com sua filha, uma criança de 3 ou 4 anos que é sua guia. 

Logo em sua saída de casa o homem vê uma bela moça que fica parada junto a uma parede. Ele se interessa pela moça tal como se interessará pela golpista, mais tarde. Mas algo de estranho acontece. O rosto belo da mulher dá lugar a uma caveira. O que poderia isso significar? O homem assusta-se, e atenção alguma dá àquele fenômeno e segue sua caminhada. Este é um primeiro aviso dos cineastas (Grune e Mayer) ao seu protagonista: algo de ruim irá acontecer, era melhor você ter ficado em casa e jantado com sua esposa. Daqui para frente estas proposições expressionistas serão deixadas de lado para que se dê espaço ao simples relato da aventura do homem na cidade.


A cidade engole o homem. É predatória. A rua parece ser o caminho em direção ao divertimento, mas leva somente ao desespero, a uma prisão desconfortável. Quando a inocência abre os olhos e mostra a verdade, o caminho a ser trilhado é o de retorno, o retorno ao lar, ao conforto seguro de quem já conhecemos e de quem esperamos somente o bem-estar. Assim, ao retornar para casa, o homem será recebido por sua esposa com um jarro com o jantar. Ela o esperara pacientemente e não se importa de que ele vá fazer coisa alguma lá fora: ele foi engolido pela rua, mas soube retornar para casa. E depois desta experiência terrível, dificilmente voltará a buscar tudo aquilo que imaginava existir lá fora. A diversidade da paisagem urbana é tentadora, e exemplo disso são suas vitrines, mas o que elas escondem por trás de si é o lado opressor da objetificação humana: em sua saída de casa ainda no início do filme, o homem se depara com uma vitrine que não estranhamente apresenta estátuas e pinturas de mulheres nuas. O desejo de fazer parte desta sociedade levará o homem a se tornar mais um dentro deste grupo. E quanto mais ele se envolve nesta sociedade, mais a inventividade do filme vai sendo deixada de lado quase como uma advertência: a sociedade é castradora da imaginação. A pergunta que permanece é: seria a sociedade ou o dinheiro? É devido ao dinheiro que o sujeito rico é morto ao fim do filme, é devido ao dinheiro que o homem é seduzido pela golpista.

Para resolver a trama, Grune e Mayer se voltam para o uso do letreiro para colocar a criança guia do pai cego dizendo quem é o real assassino. Isso porque todo o envolvimento dos personagens com o capital os leva a uma castração da imaginação. Esta castração resulta na também falta de recursos estéticos por parte do filme que se rende, enfim, ao letreiro. Se inicialmente poderia parecer uma falha frente ao seu começo tão promissor, posto nestes termos, A rua torna-se mais uma obra de crítica social envolta no pensamento formalista de construção de um cinema esteticamente ousado.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Tartufo de F. W. Murnau (herr Tartüffe, 1925)


Jacques Rancière, em A fábula cinematográfica, escreve um artigo sobre Tartufo de Murnau. O texto abre com um comportamento típico de filósofo de buscar a origem da palavra central antes de atribuí-la um conceito. A palavra em questão é hipócrita. Trata-se de uma palavra de peso, que ganhou contornos de insulto com o passar do tempo. Este resgate realizado pelo filósofo oferece-nos um retrato de um sentido que se perdeu, mas que ainda é muito válido, especialmente ao tratar de um filme baseado em obra de Moliére. "...'hipócrita' vem de uma palavra grega, hupokrites, que significa ator, o homem que fala oculto atrás da máscara" (p. 35), escreve Rancière. Ou seja, o hipócrita é aquele que age e fala como sendo um quando na verdade é outro: promove uma ilusão. Mas não faremos aqui uma resenha do texto de Rancière, e sim um exercício próprio.

Carl Mayer escreveu o texto de Tartufo que chegou ás mãos de Murnau após um projeto que o diretor muito desejava fazer ter sido a ele negado. Obrigado a fazer este filme, Murnau modificou o texto e o encurtou. Nele é apresentada uma história de hipocrisia no duplo sentido que a palavra tem, como provoca Rancière. Isso porque o filme abre com uma história original de Mayer: um velho rico vive somente com sua governanta e mais ninguém. A hipocrisia que vive ao nosso lado, como diz os letreiros ao início do filme, surge na figura da governanta. Sempre que ela aparece em frente ao patrão é amável, sorridente, prestativa. Quando ele dá as costas ou está a uma distância suficiente para que já não a possa mais ouvir (distância que não é muita, o velho é quase surdo), ela promove insultos contra o homem. E a hipocrisia desta permanência dela ao lado do patrão surge nos esforços de ser ela sua única herdeira. O neto do homem tornou-se ator o que é tratado pela governanta como degenerado, o que faz o velho não querer mais vê-lo.


Enfim o neto aparece na casa do avô, que se recusa a encontrá-lo. Notando que a raiva do velho é dirigida pela governanta - e Murnau explicita bem isso com um corte para mostrar como a governanta estimula o ataque de raiva do avô contra o neto -, o rapaz decide usar suas habilidades de ator para desmascará-la. Para isso torna-se o hupokrites de Rancière, e surge na casa de seu avô como um cinema móvel. Após flertar com a governanta para que ela aceitasse a exibição na casa, o rapaz organiza a sessão de cinema em que passará o Tartufo, história título do filme e baseada na peça de Molière.

No filme que o rapaz exibe na sala de seu avô, desenrola a trama de um homem que se torna seguidor de um estranho a quem realiza todos os desejos. Sua esposa vê o lado prejudicial daquela relação e tenta abrir os olhos de seu marido para o aproveitamento do líder de um culto. (Nas cópias do filme existentes no Brasil temos alguns cortes providenciais da censura estadunidense da época que não deixou que detalhes de símbolos do cristianismo fossem vistos nas mãos do Tartufo, o que geraria insinuações perigosas). Após algumas tentativas a mulher finalmente consegue mostrar a seu marido que o homem não se passava de um aproveitador. Agora a dedicação incondicional do homem passará do líder religioso que tentou dormir com sua esposa, para a própria esposa. Finda o filme (que toma a maior parte da película de Murnau) o neto desmascara a governanta que é posta para fora de casa. 


Um detalhe que salta aos olhos dos espectadores ao assistir ao filme é a diferença de tratamentos aos atores da trama da governanta e aos atores do filme exibido da sala. Os atores da película que o neto exibe para seu avô são maquiados, bem tratados, para que possam dar aquela ilusão de outro momento no tempo, de que não são eles, mas outras pessoas que estão ali presentes (a máscara). É necessário fazer sentida a presença de Tartufo, de Orgon e de sua esposa. E para isso é necessário criar a ilusão de que aquele é outro mundo, de que vemos outra situação que não a que presenciamos no momento. Somos os enganados pelo hipócrita que nos mostra e diz aquilo que queremos ver e ouvir (no caso do filme, somente ver). Já os atores da trama da governanta não estão maquiados, seus rostos surgem em sua verdade, em seus defeitos naturais. Sem tratamento especial. São postos em frente às câmeras para serem desnudados: terão suas mascaras retiradas.

Uma das características mais comentadas no início do cinema é a capacidade da câmera de registrar a verdade por trás daquilo que ela mostra, a sua capacidade de despir o que é posto em frente às suas lentes. Os rostos dos personagens de uma trama fictícia é o caso mais comum. Porque ao invés de colocar por meio de palavras, dos malditos letreiros, se buscava fazer este trabalho no desenrolar natural da ação, dos cortes. No close-up do personagem que fosse o mentiroso, que tivesse sua máscara retirada à força pela sabedoria da câmera. Na cena final esta capacidade da câmera é bem trabalhada por Murnau e seu fotógrafo Karl Freund. O neto tinha visto que a governanta estava envenenando seu avô aos poucos e sabia onde ela guardava o veneno. Após a sessão, quando ele finalmente mostra quem é por trás de seu disfarce (a queda de uma máscara), ele olha para a bolsa da governanta onde estava o frasco de veneno. Seu rosto, enquadrado em close-up tem seus olhos acentuados pela iluminação que deixa o resto de seu rosto nas sombras, ainda que seja possível vê-lo. A governanta ao ver que ele tem o frasco em mãos assusta-se em outro close-up, desta vez breve. O close é este plano capaz de desnudar e fazer as máscaras caírem.


No cinema as máscaras devem ser convincentes, senão facilmente cairão. A única forma possível de se esconder no cinema é por trás das sombras, onde a luz não chega - motor primordial da imagem cinematográfica. Ou permanecer fora do quadro. Tartufo tenta fazer dos livros que lê a sua máscara (imagem acima). Constantemente caminha com eles à altura do rosto para que não seja possível que vejamos sua face. Mas ainda assim ele está em frente à câmera, assim como está em frente à plateia. É por meio do ato de desnudar-se da esposa de Orgon, que Tartufo deixa sua máscara cair. A mulher levanta a saia e mostra as pernas, e Tartufo deixa o personagem que estava interpretando e torna-se quem ele realmente é. Mas, e no caso da governanta, quando não havia uma tentativa de criação de uma máscara, como mostrar que ela era uma hipócrita? O cinema, literalmente, nos mostra. A câmera torna-se o olho do neto que olha pelo buraco da fechadura quando a governanta coloca o veneno na água do avô (penúltima imagem, acima) - é sempre mais recomendável olhar pela fechadura do que simplesmente acreditar no que dizem os outros: é o que faz Orgon no filme também para ver que Tartufo é um patife. O cinema transforma em concreto aquilo que seria somente ideal: a suspeita. A suspeita transforma-se em ato e o hipócrita é, finalmente, desmascarado.

sábado, 16 de maio de 2015

Eisenstein - O relógio de Outubro


"A propósito dos relógios e das horas, permitam-me trazer aqui uma recordação pessoal. No Palácio de Inverno, durante a filmagem de Outubro (1927), descobrimos um curioso relógio antigo cujo mostrador principal era ornado com uma guirlanda de pequenos mostradores cada um deles com uma inscrição de um nome de cidade - Paris, Londres, Nova York etc. - e que indicavam a hora correspondente desses lugares quando em Moscou ou Petersburgo, não sem bem, era tal hora. O aspecto desse relógio gravou-se em minha memória. Quando precisei por em destaque, no filme, o minuto histórico da vitória dos Sovietes, foi aquele relógio que me inspirou uma montagem original: a hora da queda do Governo provisório, indicada, imediatamente, segundo o meridiano de Petrogrado, foi por nós repetida em todos os mostradores em que se liam as horas correspondentes, segundo o meridiano de Londres, de Paris, de Nova York etc. Esta hora única  na história e no destino dos povos repercutia através de uma quantidade enorme de publicações diversas como se unisse todos os povos num só bloco, na sensação desse instante que viu a vitória da classe operária. A ideia estava ainda reforçada pelo movimento circular da guirlanda dos mostradores, movimento que, aumentando e acelerando, soldava ainda plasticamente todas as diversas indicações de horas, na sensação de uma hora única da História..."

(EISENSTEIN, S. Reflexões de um cineasta. tradução: Gustavo A. Doria. Zahar Editores. Rio de Janeiro, 1969. p. 83)

segunda-feira, 11 de maio de 2015

O Castelo Vogelod de F. W. Murnau (Schloß Vogelöd, 1921)


Como poderiam os filmes em preto e branco fazer a distinção entre noite e dia? O espectador de cinema contemporâneo conhece muitas maneiras, sua cinefilia o faz saber as resoluções criativas conquistadas por décadas de exercício prático do fazer fílmico. Em minha mente salta logo a imagem do cinema noir e os belíssimos jogos de sombras. Se neste texto falaremos sobre o cinema alemão, nada mais justo do que lembrar do cinema expressionista, influenciador dos filmes noir das décadas de 1940-50. Mas existe uma diferença muito grande entre o trabalho feito pelos expressionistas de 1920 dos cineastas da década de 1940: os primeiros utilizavam uma luz achatada, que iluminava a tudo com equidade. As sombras eram desenhadas ou provocadas por distorções nos cenários. Nos filmes noir a sombra provinha de um jogo de luz, com o posicionamento do refletor em lugares estratégicos para que iluminasse determinada parte do cenário e outra ficasse no escuro.

Mas como poderiam os espectadores não fazer a distinção entre dia e noite? Entre a luz exterior e interior? É óbvia a diferença, mesmo nos filmes em preto e branco. Óbvia quando se filma no exterior "de verdade". O que isso significa? Que a luz natural é diferente da luz artificial habitualmente utilizada para a iluminação dos cenários dentro dos estúdios fechados. Mas poucos eram os diretores - e mais importante ainda, os produtores, filmar fora dos estúdios era de custo muito maior do que hoje - que se arriscavam filmar fora das dependências de seus estúdios, onde tudo podia ser milimetricamente controlado (incluindo os gastos). As filmagens em exterior ficavam exclusivas para aquelas cenas maiores, como as batalhas de Nascimento de uma nação. Assim, tanto a luz de interior quanto a de exterior poderiam ser de muita semelhança porque filmadas em estúdio se valendo de semelhante equipamento.


Solução: o uso de cores. Mas o filme não era preto e branco? Sim, mas a película podia ganhar diferentes colorações únicas: o quadro podia ficar avermelhado, ou alaranjado, ou mesmo azulado (imagem acima). Estas diferentes cores eram exploradas pelos cineastas para poder fazer esta diferenciação de cenários e não prejudicar o visionamento da obra com imagens menos nítidas devido à escuridão das cenas. Tal técnica foi utilizada maravilhosamente em A carruagem fantasma, por exemplo, de Victor Sjostrom. E neste O castelo Vogelod, de Murnau. O experimento de Murnau neste filme demonstra maior profundidade que o de Sjostrom em seu clássico sueco, uma vez que no meio das cenas a cor da imagem muda quando um personagem em cena acende a luz: explicitando a intenção do diretor nestes momentos.

Fora esta experimentação, O castelo Vogelod parece um filme em que Murnau estava muito pouco a vontade de filmar. Não há grandes cenas, e a interrupção da narração por letreiro é constante - talvez a maior de seus filmes. O desenrolar da ação pelos personagens é truncado, a trama decorre por suas falas, e o passado que é por eles evocado fica somente em seu diálogo - novamente, apresentado pelos letreiros que cortam o ritmo da ação. Longe de ser um dos melhores filmes do diretor, Vogelod apresenta como ponto positivo o desenvolvimento da mise-en-scène que viria a utilizar em seus filmes posteriores. O cinema de Murnau se posiciona fortemente contrário à montagem, ao contrário de seus pares vanguardistas de 1920. O que ele não fica contrário é das sobreposições, dos truques de montagem. O elogio de André Bazin ao seu cinema fica nítido ao se assistir a este filme: a câmera não fragmenta o cenário. Mas por buscar a narrativa nas falas de seus personagens, é o ritmo do filme que fica fragmentado, deixando de lado a especificidade cinematográfica (a imagem em movimento) para poder contar a história com palavras escritas.


Numa de suas melhores cenas, Murnau apresenta-nos o sonho de um dos hóspedes do castelo que dá título ao filme. O homem - alívio cômico do filme de suspense - acorda em sua cama e vê a mão de um monstro do lado de fora da sua janela. A tal mão consegue abrir a janela, entrar no quarto e levá-lo. Acordando em seguida, o homem vê que tudo não se passara de um sonho, mas como o castelo está passando por alguns problemas com seus hóspedes estranhos - que desaparecem ou são suspeitos de crimes - ele prefere deixar a residência na manhã seguinte.

O sonho é envolto por uma aura de suspense. Algo vai errado com alguns hóspedes do castelo. Um homem sai já no fim de uma tarde chuvosa para caçar. A chegada de um padre é anunciada. O dono do castelo afirma ter capacidade de prever o futuro, e dita um desfecho trágico para aquelas férias. Se isso abala o homem que tem o sonho a ponto de ele encurtar sua jornada no castelo, os demais preferem permanecer por lá e acompanhar o desenvolver da ação como se fossem espectadores de Hitchcock: voyeurs que dão pitacos sobre o que virá a seguira (e ainda assim, são surpreendidos com o desenvolver das ações). Uma pena a participação de Murnau na construção deste filme ser tão pequena. Como podemos atestar com Hitchcock, o poder das imagens na construção de suspense é vital.


Quando o estranho padre chega ao castelo, uma das mulheres recém-chegadas pede logo para vê-lo. Parecem ser velhos conhecidos. Ela, então, rememora um passado que já é familiar ao padre. Ela ainda se martiriza pela morte do marido, ao que a cena termina com um close-up - um dos raros recursos de fragmentação do espaço cênico executados por Murnau durante o filme - misterioso. Esta imagem teria ganho contornos mais profundos de mistério se a cena seguinte não retornasse para a continuação da conversa do padre com a mesma mulher. A impressão que dá é de que o fabuloso Murnau está lá, mas o roteiro o impede de aparecer. Não que a trama não seja bem desenvolvida, ela simplesmente não consegue se adaptar à arte das imagens em movimento, e insiste em retornar à arte das letras.

Carl Mayer, roteirista desta obra, parece muito pouco confortável com o trabalho de uma obra que não é sua - tanto que poucas vezes em sua carreira voltou a tratar histórias não-originais. O desenrolar da história é claro, mas muito pouco se casa com uma história a ser contata por meio do cinema. Talvez ficasse melhor para o cinema sonoro, mas ainda assim muito refém de um texto sendo recitado pelos atores. Mayer, que mais tarde trabalharia com Murnau em A ultima gargalhada, filme sem letreiros, mostra bem a sua capacidade de contar uma história para cinema. A parceria rendeu muita coisa extraordinária para que venhamos diminuir devido a este percalço. E mesmo aqui Murnau demonstra ser um diretor extraordinário. A quebra do ritmo pelos letreiros não impede que vejamos sua capacidade de construção de cena, de posicionamento de atores: a exemplo da cena em que, durante o jantar, o dono do castelo pergunta a seu hóspede sentado ao seu lado se ele já matou alguém. Ao fundo do homem perturbado com a pergunta vemos uma pintura em que homens caçam um animal. O homem interpelado toma o lugar do animal no quadro e fica sob a mira das armas dos caçadores. Somente a genialidade de Murnau pode nos proporcionar momentos assim.


[sobre a segunda imagem: a mulher acusa o irmão (fora de quadro) de seu ex-marido de ser o assassino (do ex-marido). Perceba como Murnau enquadra o verdadeiro assassino de tal modo que seja ele que fique sob a acusação: é ele que é posto como culpado pelo diretor, ao contrário do que sua personagem mentirosa diz. Ela aponta o assassino e Murnau nos mostra o verdadeiro assassino. Fantástico, não?]

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Revista Sísifo - lançamento


Esta semana foi lançada a Revista Sísifo, publicação de divulgação filosófica com o devido espaço para o debate sobre o cinema que tanto nos interessa.

Participo dela na condição de editor, e para esta primeira edição preparei também a tradução de um capítulo do livro The Photoplay, obra de Hugo Munsterberg datada de 1915. Para muitos, o psicólogo alemão é o primeiro teórico do cinema. Quanto a isso, nada afirmo, mas posso dizer que a obra de Munsterberg surge como uma curiosidade para os cinéfilos contemporâneos. Afinal, trata-se de uma das primeiras formulações tentando desvendar os segredos por trás desta nova arte.

Como bom psicólogo, Munsterberg procurará descobrir em seu livro as relações entre as formas dos filmes e a reação do espectador. Algumas de suas formulações permanecem relevantes ainda hoje, e merecem estudo.

Visitem a página: www.revistasisifo.com


Yves São Paulo.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Adeus Dragon Inn de Tsai Ming-liang (bu san, 2003)


Não sou do tempo das grandes salas de cinema. Daqueles espaços imensos que reuniam mais de mil pessoas para assistir a um filme. Com a virada do século o espanto com o cinema passou a diminuir. As pessoas estão cada vez mais habituadas com as imagens em movimento e tem a impressão de que tudo é cinema. Não é. Cinema é este sentar numa sala escura e esquecer o resto do mundo. Ter a possibilidade de mergulhar numa outra realidade que não a minha. Viver um pouco o cotidiano de quem não conheço. Poder viver aventuras que eu, sendo muito covarde, não seria capaz de encarar. É um destes cinemas gigantescos que Tsai Ming-Liang vai mostrar em Adeus Dragon-Inn. O título já é uma referência a este passado, o adeus é somente dado àquele ente querido que deixamos para trás. No caso, um filme, exibido num cinema moribundo.

São mais de mil lugares na sala de cinema que são ocupadas por algo em torno de dez pessoas. Apenas três estão ali para assistir ao filme, de fato. Dois deles atores desta produção de tempos idos, quando as salas de cinema eram populares. O terceiro, uma criança, neto de um dos atores. Os demais personagens nada falam, mas também parecem pouco interessados na projeção. A sala de cinema não é para eles um lugar para se ver uma obra artística, mas para encontrar alguém - os muitos homens em busca de um contato homossexual anônimo. A forma do filme de Tsai Ming-Liang é semelhante ao de seus filmes anteriores: longos planos fixos. Mas desta vez há um algo além, uma espécie de justificação.


Os homens que vão até a sala de cinema em busca de um encontro não conseguem travar um contato entre eles. Simplesmente trocam olhares e passam adiante. Trocam cadeiras. São os espectadores modernos, estes a quem a contemplação das imagens dançantes na tela de cinema não possui similitude com aquelas de sua realidade. O que Tsai Ming-Liang lhes dirá é: sim, há semelhança. Vocês andam pelo prédio do cinema, contemplam as formas uns dos outros, exalam seu desejo pelo outro, mas em momento algum os terão. O que fica é o sentimento proveniente da contemplação: a experiência estética. Algumas vezes ele é frustração, em outros, não. Mesmo que eles não demonstrem interesse de assistir à película projetada na tela, eles vivem como ávidos cinéfilos, mas neste caso contemplando o seu mundo próprio.

Em paralelo com estes personagens, Ming-Liang coloca ainda uma funcionária do cinema, que trabalha na bilheteria, que vaga pelo prédio sem ter muito o que fazer enquanto a sessão acontece. Em determinado momento, ela resolve tentar inciar um contato (amoroso?) com o projecionista. Mas como estamos numa sala de cinema, ver o projecionista não será possível, a não ser que o filme já tenha acabado. Mesmo quando ela sobe até a cabine de projeção, numa cena dolorosa devido a sua perna manca, ela não o encontrará. Não podemos ver o projecionista, assim como não podemos ver os processos de criação de uma obra cinematográfica - um dos grandes pecados do fazer fílmico é deixar aparecer a sombra da câmera na imagem (coisa boba, eu sei).


Num dos encontros de um japonês (imagem acima do personagem sem nome) que é parte da plateia do filme Dragon-Inn, que é exibido no cinema, lhe é dito que há um fantasma que habita o cinema. Estranho. Existiria realmente um fantasma naquela sala? Seria este o motivo pelo qual as pessoas não iriam mais até ela? Provavelmente não. Ainda assim, quando o jovem vê uma mulher estranha no cinema, e que some por um momento, ele a toma como um fantasma. Esta é uma das tiradas cômicas de Ming-Liang no decorrer do filme, comicidade que é feita num tempo muito próprio, muito diferente do resto do cinema - e de difícil digestão para boa parte dos espectadores habituados a uma cinema rápido, de planos de 3 segundos.

Mas o que realmente fica durante toda a projeção de Adeus Dragon-Inn é um gosto amargo travando a garganta. Uma sensação de despedida de alguém muito querido. O mais doloroso é imaginar este adeus sendo dado ao cinema. - Apesar de possuir um viés cômico, logo no início do filme Ming-Liang coloca duas mulheres comendo. Não se importam do barulho que fazem, que incomoda a quem está por perto. É esta outra faceta do espectador de cinema contemporâneo: a sala de cinema não é um lugar para assistir filmes, mas para passar o tempo. E neste tempo a ser passado pode-se fazer de tudo, inclusive comer.


O que sobra é o olhar marejado de um ator frente ao passado em que a arte da qual ele fez parte já fora grandiosa o suficiente para ser posta num palácio como aquele. Esta pouca importância que o cinema possui hoje é, em parte, decorrente da constante presença do audiovisual em nossas vidas, o que faz, de certa maneira, diminuir a importância do espetáculo fílmico como um todo - inclusive a sua exibição numa tela grande. Daí a ação de um dos velhos atores levar junto seu neto criança. É somente mostrando a importância da arte para os mais jovens que eles poderão respeitá-la e apreciá-la, e não deixar que mais salas de cinema cheguem ao seu fim. Se nós já somos espectadores em nossas relações com o mundo, por que não sermos também espectadores de cinema?