Werner
Herzog
Tradução para o inglês de Moira Weigel
Traduzido da versão em inglês por Yves São Paulo
[esse texto foi originalmente apresentado por Werner
Herzog na forma de palestra em Milão, Itália, em sequência à exibição de seu
filme Lições da Escuridão, sobre os incêndios no Kwait. Foi pedido para
que o cineasta falasse sobre o Absoluto, mas ele espontaneamente mudou seu tema
para o Sublime. Portanto, boa parte do que segue foi improvisada no momento.]
O colapso do universo estelar ocorrerá – como a
criação – em um grandioso esplendor.
Blaise Pascal
As palavras atribuídas a Blaise Pascal
que servem de prefácio ao meu filme Lições da Escuridão são, na verdade,
minhas. Pascal não poderia ter dito melhor.
Esta citação falsificada, e como mais
tarde demonstrarei, não falsificada citação serve como um primeiro
indicativo sobre o que estou querendo lidar com este discurso. De todo modo,
para reconhecer um falso como falso serve apenas como triunfo a quem conta.
Por que estou fazendo este percurso,
você pode se perguntar? A razão é simples e provém de considerações práticas, e
não teoréticas. Com esta citação como prefixo eu elevo [erheben[1]]
o espectador, antes que ele tenha visto o primeiro frame, a um alto nível para
adentrar no filme. E eu, o autor do filme, não o deixo descer desta altura até
que a obra seja terminada. Apenas neste estado de sublimidade [Erhabenheit]
algo de profundo pode se tornar possível, uma espécie de verdade que é inimiga do
meramente factual. Eu chamo de verdade extática.
Depois da primeira guerra no Iraque,
enquanto os campos de óleo queimavam no Kwait, a mídia – e aqui quero dizer a
televisão, em particular – não estava em posição de dizer de que se tratava,
para além de ser um crime de guerra, um evento de dimensões cósmicas, um crime
contra a própria criação. Não há um único quadro em Lições da escuridão
em que você consiga reconhecer nosso planeta; por esta razão o filme é categorizado
“ficção-científica”, como se somente pudesse ter sido filmado numa galáxia distante,
hostil à vida. Quando foi lançado no Festival de Berlin, o filme recebeu uma
orgia de ódio. Dos gritos raivosos do público eu apenas podia entender
“estetização do horror”. E quando me encontrei sendo ameaçado e cuspido no
pódio, lancei apenas uma reposta simples e banal. “Seus cretinos”, eu disse,
“isto é o que Dante fez em seu Inferno, o que Goya fez, como também fez Hieronymus
Bosh”. Em meu momento de necessidade, sem falar a respeito, evoquei meus anjos
da guarda que nos familiarizaram com o Absoluto e o Sublime.
O Absoluto, o Sublime, a Verdade... o
que estas palavras significam? Esta é, devo confessar, a primeira vez em minha
vida em que tive que assentar tais questões fora de minha obra, o que
compreendo, primeiro e acima de tudo, em termos práticos.
A título de qualificação, devo adicionar
já que não me aventurarei a definir o Absoluto, mesmo que este conceito lance
uma sombra sobre tudo o que eu fale aqui. O Absoluto põe um dilema
interminável para a filosofia, a religião, e a matemática. A matemática talvez
chegue o mais próximo de resolver esta questão quando alguém finalmente provar
a hipótese de Riemann. Esta questão envolve a distribuição de números primos,
permanecendo sem resposta desde o século XIX, alcança as profundezas do
pensamento matemático. Um prêmio de um milhão de dólares foi posto para quem
resolvê-lo, e em um instituto matemático em Boston atribuíram pelo menos mil
anos para que alguém apareça com a prova. O dinheiro está esperando por vocês,
assim como sua imortalidade. Por dois mil anos e meio, desde Euclides, esta
questão têm preocupado os matemáticos; descobrir que Riemann e sua hipótese brilhante
não estão certos, lançaria tremores que balançariam a matemática e as ciências
naturais. Somente posso vagamente começar a entender o Absoluto; não estou em
posição para definir o conceito.
A verdade do oceano
Por enquanto, ficarei no confiável campo
da práxis. Mesmo que não consigamos apreender, gostaria de falar para vocês
sobre um encontro inesquecível que tive com a Verdade enquanto filmava Fitzcarraldo.
Estávamos filmando nas selvas peruanas ao leste dos Andes, entre os rios
Camisea e Urubamba, onde mais tarde eu içaria um enorme barco a vapor por cima
da montanha. Os indígenas que viviam ali, os Machiguengas, eram a maioria dos
extras da equipe e nos deram permissão para filmar em sua terra. Em adição ao
pagamento, os Machiguengas queriam mais alguns benefícios: queriam treinamento
para seu médico local e um barco, para que pudessem levar suas colheitas até o
mercado alguns quilômetros rio abaixo, ao invés de vender para algum
intermediário. Finalmente, eles quiseram ajuda na batalha legal pelo título da
terra entre os dois rios. Uma companhia depois da outra tinha se aproveitado do
local para pilhar seus estoques de madeira; recentemente, também empresas de
óleo tinham posto seus olhos gananciosos sobre o local.
Toda petição com a qual entramos desapareceu
na labiríntica burocracia provincial. Nossas tentativas de suborno falharam
também. Finalmente, tendo viajado até o ministério responsável por tais
assuntos, na capital Lima, me disseram que, mesmo que argumentássemos a
respeito do título legal com base em história e cultura, havia dois blocos que
se chocavam. Primeiro, o título não se encontrava em nenhum documento
legalmente verificável, tendo o suporte apenas do ouvir-falar, o que é
irrelevante. Segundo, ninguém nunca tinha inspecionado a terra para traçar uma
fronteira reconhecível.
No fim das contas, contratei alguém para
fazer a inspeção, que entregou aos Machiguengas um mapa preciso de sua terra
natal. Esta foi minha parte em sua verdade: tomou a forma de uma delineação,
uma definição. Admito, eu briguei com o inspetor. O mapa topográfico que ele
forneceu estava, ele me disse, incorreto em certos pontos. Não correspondia à
verdade porque não levava em consideração a curvatura da terra. Em um pedaço
tão pequeno de terra? Eu perguntei, perdendo a paciência. É claro,
ele disse raivosamente, atirando seu copo d’água em minha direção. Mesmo
com um copo d’água você tem que ser claro, o que estamos lidando aqui não é nem
mesmo a superfície. Você deveria ver a curvatura da terra como você a veria num
oceano ou num lago. Se você fosse realmente capaz de perceber tal como
realmente é – mas você é muito simplista – você veria a terra curvar. Nunca
me esquecerei desta severa lição.
A questão do ouvir-falar tinha uma
dimensão mais profunda e requeria uma pesquisa de tipo completamente
diferente. [Reclamando pelo título da terra], os indígenas podiam apenas
reivindicar que eles sempre estiveram ali, o que eles souberam por meio dos
avós. Quando, finalmente, o caso parecia sem esperança, consegui uma audiência
com o presidente, Fernando Belaúnde. Os Machiguengas de Shivankoreni elegeram
dois representantes para me acompanhar. Quando nossa conversação ameaçou chegar
num impasse [no escritório do presidente, em Lima], apresentei a Belaúnde o
seguinte argumento: na lei Anglo-Saxônica, ainda que ouvir-falar seja
geralmente inadmissível como evidência, não é absolutamente
inadmissível. Tão distante quanto em 1916, no caso Angu vs. Atta, uma
corte colonial na Costa do Ouro (hoje Gana) declarou que ouvir-falar poderia
servir como uma válida forma de evidência.
Aquele caso era completamente diferente.
Tinha relação com o uso do palácio do governador local; no caso, também, não
havia documentos, nada de oficial que pudesse ser relevante. Mas, a corte
julgou, o enorme consenso dos boatos dos tribais sendo repetido e repetido
passou a constituir uma manifestação da verdade que a corte pode aceitar sem
maiores restrições. Com esta apresentação, Belaúnde, que viveu por muitos anos
na selva, quedou quieto. Ele pediu por um copo de suco de laranja, então disse Bom
Deus, e então soube que tínhamos o conquistado. Hoje, os Machiguengas têm o
título de sua terra; mesmo os consórcios de firmas de óleo que descobriram uma
das maiores reservas de gás natural [no mundo] nas proximidades teve de
respeitar a decisão.
A audiência com o presidente ainda
concedeu outro estranho vislumbre da essência da verdade. Os habitantes da
vila de Shivakoreni não tinham certeza de que do outro lado do Andes houvesse
uma enorme quantidade de água, um oceano. Em adição, ainda havia o fato de esta
monstruosa quantidade de água, o Pacífico, ser supostamente salgada.
Dirigimos até um restaurante ao sul de
Lima, à beira da praia, para comer. Mas nossos delegados indígenas não pediram
nada para comer. Permaneceram em silêncio e ficaram observando por cima dos
parapeitos. Não se aproximaram da água, apenas encararam. Então um deles pediu
por uma garrafa. Dei a ele minha garrafa de cerveja vazia. Não, esta não era a
certa, tinha que ser uma garrafa que pudesse ser selada. Então trouxe uma
garrafa de vinho chileno barato, abri, e derramei o vinho na areia. Enviamos a
garrafa para a cozinha para que fosse limpa o mais cuidadosamente possível.
Então os homens pegaram a garrafa e foram, sem uma palavra, até a margem. Ainda
usando as calças jeans, os tênis, e as camisetas que tínhamos comprados para
eles no mercado, eles adentraram nas ondas. Adentraram, olhando por cima do
oceano Pacífico, até que a água alcançasse suas axilas. Então, provaram da
água, encheram a garrafa, e a fecharam cuidadosamente com a cortiça. Esta
garrafa cheia de água era sua prova para a vila de que realmente existia um
oceano. Perguntei cautelosamente se não seria apenas parte da verdade.
Não, eles disseram, se há apenas uma garrafa de água do mar, então todo o
oceano tem que ser verdade também.
O ataque da realidade virtual
Daquele momento em diante, o que
constitui a verdade – ou, para colocar de uma maneira muito mais simples, o que
constitui realidade – se tornou um mistério muito maior para mim do que
já era. As duas décadas intermediárias colocaram desafios sem precedentes para
nosso conceito de realidade.
Quando falo de assaltos ao nosso
entendimento de realidade, me refiro às novas tecnologias que nos últimos vinte
anos se tornaram artigos de uso geral cotidiano: os efeitos digitais que criam
realidades novas e imaginárias no cinema. Não que eu queira demonizar estas
novas tecnologias, elas permitiram à imaginação humana alcançar coisas grandes
– por exemplo, convincentemente reanimar dinossauros nas telas de cinema. Mas,
quando consideramos todas as formas de realidade virtual que se tornaram parte
da vida cotidiana – na internet, nos videogames, e nos reality shows da tevê;
às vezes também em algumas formas estranhas, misturadas – a questão do que é
“realmente” a realidade se coloca novamente.
O que realmente está acontecendo
no programa de TV Survivor? Podemos realmente confiar numa fotografia,
agora que sabemos quão fácil tudo pode ser falsificado com o Photoshop? Algum
dia seremos completamente capazes de confiar num email, quando nosso filho de
doze anos nos mostra que o que estamos vendo é provavelmente uma tentativa de
roubar nossa identidade, ou talvez um vírus, ou um “cavalo de troia”, que tenha
vagado até o nosso núcleo e adotado cada uma de nossas características? Será
que já existo em algum lugar, clonado, como um Doppelganger, sem saber a
respeito?
A história oferece uma analogia sobre a
extensão da mudança trazida pelo virtual, outros mundos com os quais
estamos sendo confrontados. Por séculos e séculos, as campanhas de guerra eram
praticamente as mesmas, exércitos de cavaleiros lutadores, brigando com
espadas e escudos. Então, um dia, estes guerreiros se encontraram encarando uns
aos outros através de canhões e armas. As campanhas de guerra nunca mais foram
as mesmas. Também sabemos que as inovações do desenvolvimento de tecnologia
militar são irreversíveis. Apresento alguma evidência que pode ser de interesse:
em partes do Japão no começo do século XVII, houve uma tentativa de extinguir
as armas de fogo, para que os samurais pudessem lutar uns contra os outros com
espadas novamente. Esta tentativa durou muito pouco tempo; era impossível de
ser mantida.
Alguns anos atrás, vim entender o quão
confuso o conceito de realidade se tornou, de um jeito estranho, por meio de um
incidente acontecido em Venice Beach, em Los Angeles. Um amigo estava fazendo
uma festinha em seu quintal – um churrasco – e já estava escurecendo, quando,
não muito longe, escutamos alguns tiros que ninguém levou a sério até que
helicópteros da polícia apareceram com luzes de busca e mandaram, através de
seus alto-falantes, que entrássemos em casa. Compreendemos o caso apenas em
retrospecto: um garoto, descrito por uma testemunha como tendo algo em torno de
13 ou 14 anos de idade, estava vadiando ao redor de um restaurante uma quadra
adiante de onde estávamos. Quando um casal saiu, o garoto gritou, This is
for real, e atirou nos dois com uma semiautomática, fugindo em seguida em
seu skate. Ele nunca foi apanhado. Mas a mensagem do louco era clara: isto não
é um videogame, estes tiros são reais, isto é realidade.
Axiomas de sentimentos
Devemos perguntar à realidade: quão
realmente importante você é? E: quão importante, realmente, é o Factual? É
claro, não podemos ignorar o factual, ele possui um poder normativo. Mas ele
não pode nunca nos dar o tipo de iluminação, o flash extático, de onde a
Verdade emerge. Se apenas o factual, sobre o qual o chamado cinema vérité
[cinema verdade] é fixado, fosse de significância, então se poderia argumentar
que a vérité – a verdade – quando muito concentrada deve residir na
agenda telefônica – em suas milhares de entradas que são todas factualmente corretas
e, então, correspondem à realidade. Caso fôssemos ligar para todo mundo
listado na agenda sob o nome de “Schmidt”, centenas desses telefonemas
confirmariam que se chamam Schmidt; sim, seu nome é Schmidt.
Em meu filme Fitzcarraldo, há uma
troca que levanta a questão. Partindo para o desconhecido com sua embarcação,
Fitzcarraldo para num dos postos mais distantes da civilização, uma estação
missionária:
Fitzcarraldo: o
que os índios mais velhos dizem?
Missionário: não
podemos curá-los da ideia de que a vida comum é apenas uma ilusão, atrás da
qual está a realidade dos sonhos.
O filme é sobre uma ópera sendo encenada
numa floresta tropical; como vocês sabem, eu realmente parto para produzir uma
ópera. Tal como fiz, uma máxima era crucial para mim: um mundo inteiro precisa
sofrer uma transformação para música, deve se tornar música; apenas
então teríamos produzido uma ópera. O que é bonito numa ópera é que a realidade
não tem lugar nela de modo algum; e o que acontece numa ópera é a superação da
natureza. Quando olhamos para um livreto das óperas (e aqui a Força do
destino, de Verdi é um bom exemplo), vemos muito rapidamente que a história
é tão implausível, tão removida de qualquer coisa que poderia ser uma
experiência real que as leis matemáticas da probabilidade são suspensas. O que
acontece na trama é impossível, mas o poder da música permite ao espectador
experimentá-la como verdade.
É a mesma coisa com o mundo emocional [Gefühlswelt]
da ópera. Os sentimentos são tão abstratos que não podem ser subordinados à
natureza do cotidiano humano, porque estiveram concentradas e elevadas ao grau
mais extremo e aparecem em sua forma mais pura; e apesar de tudo isso as
percebemos, na ópera, como natural. Sentimento na ópera é, no fim das contas,
como axiomas em matemática, o que não pode ser mais concentrado ou explicado
para além daquilo que já é. Os axiomas de sentimento da ópera nos levam,
contudo, dos modos mais secretos, numa linha direta para o sublime. Aqui poderíamos
citar “Casta Diva”, na ópera Norma, de Bellini como um exemplo.
Você pode perguntar: por que você diz
que o sublime se torna acessível para nós na ópera, de todas as formas,
considerando que a ópera não inovou em nenhum modo essencial ao longo do século
XX, como aconteceu com outras formas artísticas? Isto apenas parece ser
um paradoxo: a direta experiência do sublime numa ópera não é dependente de
qualquer desenvolvimento ulterior, ou de novos desenvolvimentos. Sua sublimidade
permitiu à ópera a sobrevivência.
A verdade extática
Todo nosso senso de realidade foi
questionado. Mas não quero duelar com este fato por muito mais tempo, uma vez
que o que me move nunca foi a realidade, e sim a questão que se encontra por
trás dela: a questão da verdade. Às vezes, os fatos excedem nossas expectativas
– tendo um poder incomum, bizarro – parecendo ser inacreditáveis.
Mas nas belas artes, na música, na
literatura, e no cinema, é possível alcançar um extrato mais profundo da
verdade – uma verdade poética, extática, que é misteriosa e pode apenas ser
apreendida com esforço; é possível atê-la por meio da visão, estilo, construção.
Neste contexto, vejo a citação de Blaise Pascal sobre o colapso de um universo
estelar não como falso, mas como um meio de fazer possível uma experiência
extática de uma verdade interior e profunda. Assim como não é falsidade quando
Michelangelo em sua Pietà retrata um Jesus de 33 anos e sua mãe com
apenas 17.
Contudo, também ganhamos nossa
habilidade de ter experiências extáticas de verdade através do Sublime, por
meio das quais somos capazes de nos elevar sobre a natureza. Kant diz: A
irresistibilidade do poder da natureza nos força a reconhecer nossa impotência
física enquanto seres naturais, mas ao mesmo tempo revela nossa capacidade de
nos julgarmos independentes da natureza, assim como superiores à natureza...
estou deixando algumas coisas de lado aqui, em nome da simplicidade. Kant
continua: Neste sentido, a natureza não é estimada em nosso julgamento
estético como sublime porque ela excita medo, mas porque ela evoca nosso poder
(que não é da natureza)...
Eu deveria tratar Kant com a necessária
cautela, porque suas explanações com relação ao sublime são tão abstratas que
sempre permaneceram estrangeiras às minhas práticas de trabalho. Contudo,
Dionísio Longino, quem primeiro vim a descobrir ao explorar estes temas, está
muito mais próximo de meu coração, porque ele sempre fala em termos práticos e
oferece exemplos. Não sabemos nada sobre Longino. Especialistas nem sequer
sabem se este é realmente o seu nome, e apenas podemos especular que ele viveu
no primeiro século depois de Cristo. Infelizmente, seu ensaio Sobre o
sublime é também fragmentário. Nos mais antigos escritos que temos datando
do século X, o Codex Parisinus 2036, existem algumas páginas faltando em todos
os lugares, e às vezes grandes quantidades de páginas.
Longino procede sistematicamente: aqui,
desta vez, não posso falar sobre a estrutura de seu texto. Mas ele sempre cita
exemplos muito vivazes da literatura. E aqui vou eu, novamente, sem seguir qualquer
ordem esquemática, para apoderar-me do que me parece mais importante.
O que é fascinante é que, logo ao
princípio de seu texto, [Longino] invoca o conceito de Êxtase, mesmo que ele
faça num contexto diferente do que eu identifiquei como sendo “a verdade
extática”. Em referência à retórica, Longino diz: O que quer que seja
sublime não leva os ouvintes à persuasão, mas a um estado de êxtase; a todo o
tempo e de toda forma possível impondo seu discurso com o feitiço que lança
sobre nós, prevalecendo sobre aqueles que buscam apenas a persuasão e a
gratificação. Podemos controlar nossas persuasões normalmente, mas as
influências do sublime trazem poder, reinando supremo sobre o ouvinte...
Aqui ele usa o conceito de ekstasis, a pessoa saindo de si mesma em direção
a um estado de elevação – onde podemos nos elevar sobre nossa própria natureza
– o que o sublime revela ser “como um raio”[2].
Ninguém antes de Longino havia tão claramente falado sobre a experiência de
iluminação; aqui, estou falando da liberdade de aplicar esta noção a momentos
raros e fugazes em filme.[3]
Ele cita Homero para demonstrar a
sublimidade das imagens e de seu efeito iluminador[4].
Aqui um exemplo da batalha dos deuses:
Aidoneus, senhor
das sombras, com medo saltou de seu trono e gritou alto para que acima dele a
terra não fosse dividida por Poseidon, o Agitador da Terra, e sua morada fosse
mostrada para ver os mortais e os importais – a morada terrível e úmida, a qual
os próprios deuses odeiam: grande foi o barulho que surgiu quando os deuses
entraram em confronto.
Longino era um homem muito lido, que
sabia citar com exatidão. O que é impressionante aqui é que ele toma a
liberdade de soldar juntas duas passagens diferentes da Ilíada. É
impossível que isso tenha sido um erro. Contudo, Longino não está falsificando,
e sim, ao invés disso, concebendo uma nova verdade, mais profunda. Ele afirma
que sem a verdade e a grandeza da alma, o sublime não pode vir a ser. E ele
cita uma declaração que pesquisadores hoje dizem ser ou de Pitágoras ou de
Demóstenes:
Pois
verdadeiramente bela é a afirmação do homem que em resposta a uma pergunta
sobre o que temos em comum com os deuses, respondeu: a capacidade de fazer o
bem e a verdade.
Não deveríamos simplesmente traduzir euergesia
como “caridade”, de tal forma que esta noção foi apropriada pela nossa cultura
cristã. Nem mesmo a palavra grega para verdade, aletheia, é simples de
apreender. Etimologicamente falando, provém do verbo lanthanein,
“esconder”, e é relacionada à palavra lethos, “escondido”. A-letheia
é, portanto, uma forma de negação, uma definição negativa: é o
‘não-escondido”, o revelado, a verdade. O que os gregos quiseram com o pensar
através da linguagem foi, portanto, definir a verdade como um ato de
divulgação – um gesto próximo do cinema, onde um objeto é lançado à luz, e
então uma imagem latente, mas ainda não visível, é conjurada no celuloide, onde
primeiro tem que ser processada, e então divulgada.
A alma do ouvinte ou do espectador
completa este ato; a alma atualiza a verdade através da experiência da
sublimidade: ou seja, completa um ato independente de criação. Longino diz: Nossa
alma é elevada acima da natureza por meio da verdadeira sublimidade,
movendo-se com os altos espíritos, sendo preenchida com prazer orgulhoso, como
se criasse o que estivesse a escutar.[5]
Mas não quero me perder em Longino, a
quem considero como um bom amigo. Me apresento perante vós como alguém que
trabalha com filme. Gostaria de apontar algumas cenas de outro filme meu como
evidência. Um bom exemplo seria O grande êxtase do entalhador Steiner
(1974), onde o conceito de êxtase já aparece no título.
Walter Steiner, um escultor suíço e
múltiplas vezes campeão de salto de ski, eleva a si mesmo como se em êxtase
religioso no ar. Ele voa tão temerosamente alto, que penetra na região da
morte: apenas um pouquinho mais longe e ele não poderia aterrissar, ao invés
disso se acidentando. Steiner fala, ao final, de um jovem corvo do qual ele
cuidou e que foi seu único amigo de infância. O corvo perdia cada vez mais
penas, o que provavelmente tinha relação com a alimentação proporcionada por
Steiner. No final, outros corvos atacaram o seu, torturando-o tão temerosamente
que o jovem Steiner não teve outra escolha: Infelizmente, eu tive que atirar
nele, disse Steiner, porque era tortura ter que assistir como ele foi
torturado por seus próprios irmãos porque ele não podia mais voar. E então,
num corte rápido, vemos Steiner no lugar de seu corvo, voando, num enquadramento
terrivelmente estético, em extrema câmera lenta, lentamente entrando na
eternidade. Este é o voo majestoso do homem cuja face está contorcida pelo medo
da morte como se perturbado por um êxtase religioso. E então, pouco antes da
zona da morte – para além do declive, no plano, onde ele poderia ser esmagado
pelo impacto, como se ele tivesse pulado do Empire State Building em direção ao
chão abaixo – ele pousa suavemente, salvo, e um texto impresso é superposto na
imagem. O texto foi tirado do escritor suíço Robert Walser, e lê:
Eu deveria estar completamente
sozinho neste mundo
Eu, Steiner e mais ninguém.
Sem sol, sem cultura; eu, nu numa
pedra alta
Sem tempestade, sem neve, sem bancos,
sem dinheiro
Sem tempo e sem suspiro.
Então, finalmente, não teria mais
medo de nada.
Referências para a tradução:
Texto
originalmente publicado na Revista Arion, vol. 17, n° 3 (Inverno de 2010), pp.
1-12. Disponível em: https://www.bu.edu/arion/on-the-absolute-the-sublime-and-ecstatic-truth/
Utilizamos também como fonte de consulta a tradução para
português da mesma palestra publicada em Revista Carbono: http://revistacarbono.com/artigos/01sobre-o-absoluto_wernerherzog/
[3] A citação completa
desta passagem, na tradução de Marta Várzeas: “1.4 O extraordinário não leva os
ouvintes à persuasão mas ao êxtase; e o maravilhoso, quando acompanhado de
assombro, prevalece sempre sobre o que se destina a persuadir e a agradar; pois
se, em geral, a persuasão depende de nós, o sublime impõe-se com força
irresistível e fica acima de qualquer ouvinte. E enquanto a mestria na
invenção, a disposição e o arranjo do material não saltam à vista facilmente ao
fim de um ou dois passos mas no conjunto da obra, o sublime, produzido no
momento certo, faz tudo em pedaços como um raio e, num instante, mostra toda a
força do orador.” Em: LONGINO. Do sublime. Tradução: Marta Isabel de
Oliveira Várzeas. Coimbra (Portugal), São Paulo (Brasil): Imprensa da Universidade de Coimbra, Annablume Editora,
2015. [nota do tradutor]