sábado, 29 de agosto de 2015

O céu de Lisboa de Wim Wenders (Lisbon Story, 1994)


Truffaut já escrevia, em prefácio ao livro de textos de André Bazin sobre, que mesmo entre aqueles que não reconheciam o cinema enquanto uma arte, Charles Chaplin tinha seu espaço. O artista inglês conquistou este lugar considerável no imaginário mundial poetizando a vida comum, a vida das pessoas simples. Enxergando beleza onde todos os outros veriam somente a miséria. Não são poucos os filósofos que indicarão que o artista é aquele que transforma o ordinário em extraordinário. É exatamente isso que faz Chaplin com os pãezinhos em Em busca do ouro. Aquilo que encontramos todos os dias e cujo trato é sempre igual é transformado pelo cômico inglês num baile. É numa homenagem a este tipo de visionário que Wim Wenders vai até a capital portuguesa filmar O céu de Lisboa. Em tempos de filmes digitais, quando as imagens tornaram-se descartáveis porque todos podem produzi-las aos montes, o cineasta alemão faz este retorno às origens, a busca dos poetas do cinematógrafo.

Tudo começa com um ciao a Fellini. O italiano que também possui suas inspirações chaplinianas (ou partilha das mesmas inspirações), surge na capa de um jornal que noticia seu falecimento. A morte de um autor como Fellini poderia anunciar os tempos críticos do cinema. E parece ser exatamente isso que se anuncia por alguns momentos durante a película. Phillip Winter recebe um postal de um amigo cineasta que está a filmar em Lisboa e precisa que ele até lá viaje para fazer o trabalho de som do filme. Na primeira recusa à modernidade prática, Winter escolhe ir da Alemanha à Portugal não de avião, mas de carro. Neste caminho, a influência dos cômicos do cinema mudo torna-se explícita. Winter está de pé quebrado e dirige. O pneu fura numa ponte e ele deixa cair o pneu reserva no rio. Mais tarde falta água no radiador, que ele repõe com Coca-Cola. O carro quebra. Chegando a Lisboa, de carona, não consegue encontrar o endereço do amigo, Friedrich. E, quando adentra o edifício, descobre que o amigo não está lá.


Na casa há uma mesa de montagem com algum filme e uma câmara antiga - semelhante à das fotos de Vertov - sobre um tripé. Deita numa cama e dorme. Acorda com um grupo de crianças o filmando com as práticas câmeras portáteis, digitais, que permitem filmar horas e horas de imagens. Elas seguram as máquinas, filmam o estranho que dorme na cama de seu amigo Friedrich, mas em momento algum prestam atenção ao trabalho de composição das imagens. As câmeras digitais são encontradas em qualquer lugar, a preços razoáveis e qualquer pessoa pode manejá-las. O que não significa que saberá criar com elas. As crianças são postas por Wenders em cena como figuras desta ingenuidade moderna de criação. Com o digital todos se acreditam criadores, e creem que qualquer imagem pode ser comparada às outras, que possui tanta beleza quanto. Mas o que produzem são conjuntos de imagens descartáveis que, caso desapareçam, ninguém, nem mesmo seus criadores, sentirá falta.

As crianças correm para todos os lados sempre com a câmera ligada. Põe a máquina no rosto do engenheiro de som que tenta esconder-se do assédio. Mas não consegue passar todo o tempo longe desta maquinaria sempre ligada. Faz amizade com as crianças e mostra-lhes seu trabalho. Esconde-se por trás de uma parede, faz sons e pede para que elas adivinhem o que é. Entusiasmadas, elas dão identidade àqueles sons produzidos pelo homem. Nunca deixando de gravar, mesmo que o nada. Aquele agrupamento de imagens desordenadas será, depois, projetada numa parede da casa para que Winter assista. Ele não consegue assistir. São muitas horas de imagens sem conteúdo. E parece que Friedrich nunca lhes disse o que poderiam filmar ou deixar de filmar.


Assistindo o filme que o amigo sumido deixou na mesa de montagem é que Winter passa a ter noção de com que trabalhar. Sai às ruas lisboetas em busca dos sons. Descobre toda a beleza do lugar a partir daquele trabalho de segurar o microfone. Fecha os olhos e tenta captar as imagens sonoras - porque é isso o som do cinema - da vizinhança. Ouve o bater de asas dos pombos. Uma mulher que grita com alguém. Uma criança que canta uma cantiga. O mundo se abre perante àquela percepção calma e cuidadosa. O fazer artístico é um processo demorado e paciente. Diferente das imagens digitais das crianças - nenhum preconceito contra as crianças, elas são representação de algo no filme - que buscam o imediato e que podem ser descartadas (e este é um ponto muito caro a Wenders, as imagens descartáveis), a criação artística de filmes de cinema busca este algo além, aquele algo que não seria por nós alcançado no cotidiano. Como os pãezinhos que transformam-se em pés a bailar sobre a mesa com Charles Chaplin.

O cineasta amigo de Winter torna-se desacreditado do fazer cinema. As pessoas são bombardeadas por imagens o tempo todo, e agora também podem produzi-las. Não há mais o espanto e o encantamento que tinham as plateias de tempos idos. É verdade, não há. Mas o que é que de relevante vem sendo feito? As imagens vem sendo produzidas sem qualquer conteúdo relevante. Sem a beleza estética necessária. É isso que Manoel de Oliveira, em participação especial, vem nos lembrar. Posto em frente à câmara, o cineasta português põe-se a imitar Chaplin e seu caminhar pelas ruas lisboetas. O conjunto de belezas da cidade está aí para ser apreciada, mas o passar cotidiano pela arquitetura distancia o sujeito de sua apreciação. O cinema é capaz de trazê-las de volta. E por que não fazê-lo como Vertov fez ao filmar seu O homem com uma câmera?

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

E o papel social da crítica de cinema?

esta postagem segue como continuação de "O que é crítica de cinema, afinal?"
Godard no maio de 68
No último texto publicado aqui no blog fizemos uma breve discussão sobre o que seria a crítica de cinema. Mas nela ficou um gosto amargo. Dizíamos que o crítico de cinema não pode detratar uma obra partindo de sua ideologia, o que absolveria, de certo modo, o cinema de propaganda fascista. Sim, é verdade que lá dissemos que um crítico pode se posicionar dentro deste debate, mas não no sentido de denegrir a obra, que pode ser muito bem construída dentro de sua própria proposta. O que vale a um crítico de cinema é, antes de tudo, o cinema.

O problema que nos surge é: qual seria o papel social do crítico? Por que seria necessária a sua existência? Ainda retomando ao texto anterior, o crítico de cinema não pode ser posto como o sujeito com certo conhecimento de uma arte e que faz indicações de quais filmes, dentre os lançamentos da semana, vale a pena assistir. O papel dele não é o de publicitário. Sua importância está na sobrevivência de um mundo artístico. Assim como é necessário o artista é necessário o pensador da obra de arte. É preciso que exista o sujeito que vá enxergar naquela proposta a sua base e a construção dela.

A obra de arte se dirige sempre a muitas pessoas. Na verdade, nunca se sabe ao certo o tamanho da quantidade populacional que uma obra poderá alcançar. Ela pode tanto ficar restrita a determinados grupos político-ideológicos, a uma classe social, quanto chegar a toda a sociedade por igual (o que é sempre mais raro, mas acontece). Em qualquer um dos casos, existe uma ideia sendo abraçada pelo artista e que poderá ser comprada por seu espectador/leitor. E sabemos muito bem o poder agregador e manipulador dos discursos por trás das artes, em especial do cinema.
 
Eisenstein e Disney
Façamos um breve passeio pela história do cinematógrafo: em 1915, David Griffith lança O nascimento de uma nação. Hoje vista como uma obra racista, na época fora vista como apresentando o perigo que representam os negros para a população "de bem" dos EUA. Resultado: a Ku Klux Klan nunca teve tantos membros na história!: pouco mais de 2 milhões. Na União Soviética, Lênin decreta: das artes, o cinema é, para nós, a mais importante. O que significa que a revolução seria filmada pelas câmeras soviéticas, tanto para sonhar a utopia abraçada, quanto para lembrar o motivo de terem feito a revolução (como em Encouraçado Potemkin). Na década de 1930 é a vez do nazi-fascismo abraçar o cinema como arma de propaganda. Todo o cinema alemão e italiano é convertido em máquina de manipulação de suas respectivas populações. Nos EUA de 1940, dezenas são os filmes realizados em prol dos esforços de guerra: é preciso convencer a população de que há um perigo real e justificar a entrada do país na guerra (conquistando seu apoio incondicional, até mesmo para permitir seus filhos a partir).

E então? Qual seria o papel do crítico de cinema frente a estes filmes de bandeira ideológica tão agressiva assim? Calar-se frente aos seus discursos? Em primeiro lugar, a atrocidade do discurso muda de pessoa para pessoa. Há até mesmo quem acredite que o discurso dos filmes nazistas não seja tão ruim assim. E isso pode ser influenciado na crítica. E a crítica passaria, deste modo, a ser mais uma arma de manipulação da população. Não bastando o bom serviço dos cineastas em fazer a tal obra. Por isso dizemos aqui: o crítico de cinema não pode defender uma ideologia em sua crítica. Deve abster-se. O que ele tem que fazer é, antes de qualquer coisa, analisar o filme.

O maior problema que haveria nestes casos não é nem tanto o trabalho do crítico, mas o espectador/leitor procurar o amparo de uma crítica depois de ter sido convencido pelo discurso da obra. Ao depararmo-nos com um filme não devemos aceitar o que ele nos diz, mas digerir suas informações - o mesmo deve ser feito com tudo, até mesmo com textos jornalísticos e a presente tentativa de ensaio. E aqui entra algo que já havíamos falado no texto anterior: a verdadeira motivação da existência de um crítico.
 
O falso cego do M de Fritz Lang
A crítica de cinema (e de todas as artes) deve ampliar a experiência do espectador/leitor com a obra, mesmo depois desta já haver terminado. O que significa que por meio deste texto de comentário o sujeito que acabara de ver/ouvir uma obra artística passará a pensar nela. E, por meio das próprias formulações, dizer se o discurso empregado na obra se sustenta ou não. Se o artista insere o espectador/leitor em outro mundo, em que lhes são mostradas novas possibilidades, o crítico lhe questionará: isso se sustenta?

Enquanto filme pode, sim. Enquanto fala para um mundo melhor, pode ser que não. O que é necessário numa crítica é fazer com que esta digestão da obra se mantenha por tempo prolongado. Por tempo suficiente. Para que aquela propaganda ideológica seja vista enquanto tal e não me servindo. Ou me servindo. O real papel social da crítica de arte é pôr o leitor a pensar para além daquilo que ele simplesmente viu e ouviu. Será que é realmente todo mundo mau, ou Fritz Lang só escolheu a escória da sociedade para retratar em M - o vampiro de Dusseldorf e assim fazer crer seu espectador (de que há o mau em todos)? A reflexão do filme transcende a própria obra. E os filmes políticos são os que mais perigo trazem à sociedade - envolver a população em uma ideologia própria ao autor. Mas será que o filme é realmente um retrato da sociedade? É o que é preciso ser perguntado pelo crítico e, por extensão, pelo espectador.

O papel social da crítica de cinema, assim colocada, faz eco ao esclarecimento (também conhecido por iluminismo) kantiano: é preciso dar as possibilidades ao sujeito para que ele pense por conta própria e não seja enrolado por ninguém. Posso me emocionar com um filme de propaganda fascista, mas não abraçar sua mensagem - e com isto criar a barreira entre a ficção e a realidade. Mas posso enxergar a vida humana em um filme - é o que fazem os Lumière, De Sica, Kiarostami, Coutinho... Mas é necessário que pense por mim mesmo, enquanto leitor de crítica e cinéfilo, e não seja convencido por ninguém. E o papel do crítico é exatamente este: abrir-me o mundo de possibilidades de interpretações da obra para que não vá cegamente abrir uma única porta - aquela que me fora apontada.

Aos filmes se é dada a possibilidade de abraçar a ideologia que for: afinal de contas, o que é o cinema se lhe for tirada a capacidade de sonhar?

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

O que é a crítica de cinema, afinal?

André Bazin
O que é crítica, afinal? Esta é uma pergunta oportuna nestes tempos em que qualquer pessoa pode escrever sobre um filme, um livro ou um disco. O que é preciso primeiro apontarmos é que nem todo texto que se põe a comentar uma obra artística é uma crítica. Crítica é tão somente uma das formas pelas quais é possível escrever um texto. Se dermos um passeio rápido pela internet o que encontraremos é uma proliferação de resenhas, resumos, não críticas. O que inicialmente surge como algo positivo - a democratização do acesso à obra de arte - torna-se conflituoso: muitos desses textos não são críticas, apesar de se declararem enquanto tal. Este poder que o espectador comum ganha pode ser extremamente prejudicial à arte, já que muitos dos comentaristas possuem certa popularidade. Nesta vontade de escrever sobre os filmes ou livros de que tanto gostam, os chamados "críticos" da rede assumem um trabalho abjeto iniciado pela mídia impressa: o trabalho abjeto de se dar uma nota. Por que dar nota a uma obra artística? Qual o sentido de objetivar a qualidade da obra numa mensuração quantitativa?

O primeiro aspecto que devemos abordar aqui é a subjetividade. Não do artista, mas do espectador. Sim, porque muitos destes textos criados para a internet partem de uma concepção rasa do que seja arte, baseada em muitos pré-conceitos e lugar-comum. Destes pré-conceitos um muito comum diz respeito à apreciação da obra, a obra enquanto evocativa de sentimentos. É verdade que um dos papeis das artes é provocar no espectador sentimentos, mas será que devemos basear uma crítica em minhas preferências pessoais? Quem sou eu para impor meus gostos sobre os outros, ou até mesmo, desmerecer determinadas obras porque eu não gostei dela? A crítica não pode descair para o lado sentimental de um espectador. O que eu gosto pode ser diferente do que você gosta. No filme Crítico, Kleber Mendonça entrevista um profissional da área que é certeiro em seu ofício: o trabalho do crítico é encontrar a tese do autor e ver se ele deu bom tratamento à ela. Podemos concluir com isto que o trabalho do crítico de análise do filme é objetivo? Sim.

Paulo Emílio Sales Gomes
E porque não fazer a mensuração quantitativa da qualidade do filme já que a crítica é objetiva? Em primeiro lugar, este simbolismo ganha maior poder do que deveria. Muitos são os "leitores" que abrem uma crítica, correm a página somente para ver o número de estrelas dadas ao filme. E tudo passa a se resumir a este símbolo. Por mais que o texto elogie o filme, que procure mostrar que o filme é "bom", as três estrelas significarão ao "leitor": não, este filme não vale a pena ser visto. Mas desta formulação parte outro problema: a crítica enquanto indicação de uma obra. Muitas críticas são feitas assim, e muitos são os leitores que buscam uma ajuda "competente" na hora de escolher o filme que irá assistir. A crítica, enquanto indicação do que assistir no cinema, é um tanto pueril. É verdade que bons críticos são capazes de desempenhar este trabalho de indicação de um filme. Mas lembremos que os grandes nomes da crítica de cinema mundial escreveram suas críticas mais famosas (e difundidas através das décadas) em revistas mensais, ou seja, não como indicação mas como aprofundamento. A crítica deveria fazer um serviço posterior, de fornecer uma ampliação das possibilidades interpretativas ao espectador. Assisto ao filme, leio críticas e com o auxílio delas (não necessariamente por elas) passo a desenvolver um panorama do que me foi apresentado. Crio teorias, formulo interpretações aprofundadas. O filme passa a sobreviver pós-sessão.

Voltemos: a crítica de arte não pode se ancorar em minha perspectiva do que é ou não belo. O emocional é subjetivo, ou seja, difere de pessoa para pessoa (e até mesmo de situação para situação: se não gostei de filme A anos atrás, nada indica que venha a desgostá-lo dele hoje). O maior problema de quem defende esta ideia é a limitação interpretativa das obras a que se porá a criticar. Em especial porque parte somente da trama do filme ao invés de perceber como a trama é apresentada - lembremos o comentário no filme de Kleber Mendonça citado anteriormente. E este como é muito importante para a compreensão da arte. Toda obra artística é composta entre a forma e o conteúdo. O trabalho do crítico é analisar o trato desta relação entre o que é apresentado e como é apresentado. Ao criticar uma obra fílmica devemos perceber o posicionamento da câmera, dos personagens, como a cena montada e como isso se casa com a trama. Fazer o resumo da trama como se fosse crítica e a ele adicionar uma nota é permanecer distante da obra, ou da arte. É não ver o caráter cinematográfico de uma obra de cinema.

François Truffaut
Na arte apresentam-se formas de olhar o mundo, e junto a eles a constituição de conceitos. Na simples compreensão da trama muito disso se perde. É o caso do cinema de Resnais, em especial Hiroshima, meu amor. Por muitos vista de modo simplista como uma obra de amor, a profundidade política da obra do filme se apresenta por meio da relação pautada entre o texto e a imagem. Com a constituição da montagem e a criação de uma temporalidade própria. E aquilo que primeiro se enxerga como uma "história de amor" torna-se um filme político. E para este serviço é mais que necessário, é essencial, para um crítico de cinema o conhecimento teórico profundo do cinema. Para que assim possa saber, também, separar seu modo de ler sua arte do modo como lê outras artes - e até ser capaz de reconhecer a inovação de alguns criadores. Este foi um dos grandes equívocos da crítica de cinema da primeira metade do século passado - não toda, claro. Já que o cinema conta histórias, podemos analisá-lo do mesmo jeito que uma obra literária. Terrível engano. Hitchcock passou boa parte de sua carreira sendo posto à margem do cinema "de primeira" porque filmava filmes policiais - gênero B na literatura. Para sua revitalização foram necessários críticos que assistissem cinema, ao invés de ouvidores de diálogo.

Neste sentido há ainda aqueles grupos que embebem-se de certa ideologia e passam a realizar suas críticas partindo deste ideário. Para além de permanecer somente no campo da trama - conteúdo - esta é uma forma de fazer crítica muitíssimo perigosa para a vida de uma obra de arte. Isso porque grandes artistas que não compactuam com a ideologia pregada - digamos, o marxismo ou o liberalismo - podem ser pregados numa cruz. E este, caro leitor, não é um grupo de críticos raros de se encontrar. Eles são muitos e encontram-se em todos os lugares. Os críticos que não gostam dos filmes soviéticos porque propagandeiam o comunismo, os marxistas que não gostam dos filmes hollywoodianos (não todos, mas boa parte) que defendem o "american way of life".

Serge Daney
A crítica ideológica pode trazer pontos positivos por defender novas estéticas, mas isso é muito raro de acontecer. O ideal a uma crítico é ser aberto às obras que lhes são apresentadas independente da ideologia. Porque a ideologia pode nos fazer perder a beleza de certas obras. Claro que ressalvas são sempre necessárias de serem feitas. Caso disso é o cinema nazista. Obviamente, se defender tal ideário é condenável. Mas a beleza de certos filmes não pode ser negada simplesmente porque não compactuo com o ideário ali por trás. É o caso de Olympia de Leni Riefenstahl. O importante aqui é fazermos a defesa do bom cinema e não da ideologia A ou B - e nem ressaltá-la enquanto se faz sua crítica.

Crítica imparcial é quase difícil de encontrar - e pode-se dizer que ela não existe. Até porque sempre defendemos (adotamos) uma perspectiva. Mas o que se deve ser encontrado numa crítica é esta permanência da obra mesmo depois da sessão. E se a obra não consegue se manter viva nestes momentos posteriores, será a crítica que explicitará esta falta.

As páginas a seguir são algumas das que realizam este tipo de crítica aqui defendida:


Segue a este texto, E o papel social da crítica de cinema?,  publicado em 24 de agosto de 2015.

Talvez, o melhor exemplo que se encontre aqui no blog: Adeus, Dragon-Inn | O pão nosso de cada dia

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Tabu de F. W. Murnau (tabu: a story of the south seas, 1931)

por João Bénard da Costa

"Não, não tinha pensado começar esta série sobre “os mais belos dos filmes” com Tabu. Foi idéia de última hora, quando reparei, como contei na crônica do cão amarelo, que Godard o citou para explicar o que queria dizer com o superlativo absoluto de beleza. Acaso?

Mas foi acaso por acaso que, entre a sexta-feira passada e a sexta-feira de hoje, revi Tabu duas vezes? E foi acaso por acaso que o revi na mais bela das cópias que de Tabu me foi dado ver, essa da Cinemateca de Praga que agora passou na cinemateca? E foi acaso por acaso que, com dois dias de intervalo, pude comparar Tabu com Sunrise, o filme de Murnau que, até Janeiro de 1996, era incontestavelmente o meu favorito?

E foi acaso por acaso que reli uma velha critica (1953) de Maurice Scherer (= Eric Rohmer) onde se diz: “Os referendos estão na moda. Desculpem se me deixei apanhar. Fazer listas de preferência, à hora do chá, entre amigos, é um jogo de salão agradável e que só depende da nossa disposição no momento (…) Mas não quis perder a ocasião para dizer - como uma recente visão de Tabu mo confirmou - que este filme é, na verdade, a obra-prima do seu autor, o maior filme do maior autor de filmes”. Se acaso tudo são acasos, acaso sou eu também.



Foi relativamente por acaso que F. W. Murnau decidiu, em Abril de 1929, aos 40 anos, partir para Taiti e filmar à luz dos mares do sul. Tinha chegado à América cerca de três anos antes (Julho de 1926) aclamado como o “gênio alemão”. Tinha filmado - 1927 - Sunrise, Oscar para a melhor “produção de qualidade artística”, no primeiro ano em que houve prêmios da academia. Depois (The Four DevilsCity Girl) foi forçado a vergar-se às regras da Fox. Depois, “por acaso”, conheceu David Flaherty, irmão de Robert Flaherty, que estava a tentar convencer a mesma Fox a fazer um filme em Taiti. Depois, esse filme malogrou-se. E, depois, Murnau convidou David Flaherty para jantar, no solar em que vivia, sozinho com os criados, numa das colinas mais altas de Hollywood. Parece que se sentaram os dois sozinhos, numa mesa enorme, na enorme casa de jantar de Murnau. E, à hora em que o jovem Hutter se feriu com a faca e derramou algumas gotas de preciosíssimo sangue (estou a referir-me a Nosferatu, para quem não saiba), Murnau disse baixinho ao irmão de Flaherty: “Queres vir comigo para Taiti?” No dia seguinte, antes do nascer do dia, partiram para o México, onde estava Bob. Poucos dias depois, com o muito dinheiro ganho por Murnau, formaram uma sociedade - a Colorart - para produzir uma série de filmes nas ilhas dos mares do sul. O primeiro devia chamar-se Turia e contava a história de um pescador de pérolas. “Bali é a última Thule dos meus desejos” teria dito Murnau, antes de embarcar, no fabuloso iate que comprou (vê-se no filme) e a que também deu o nome dessa ilha: Bali.

Daí por diante e até a primeira versão do argumento de Tabu se concluir (Dezembro de 1929, depois de um longo périplo de Murnau pelo Arquipélago das Marquesas e pelas ilhas Paumotu), tudo separou os dois cineastas. Flaherty sonhava encontrar o paraíso na terra e o mundo antes do pecado original. Murnau já sabia que “nessa terra / também, também / o mal não cessa, não dura o bem”. O “terror antigo”, o terror de Nosferatu, foi o que encontrou em Bora-Bora ou em Tokapoto, as ilhas de rodagem. Flaherty assombrou-se: “Como são profundas as inibições destes alemães!... Como é terrível a sua vontade de domínio!... Como é imenso o seu fatalismo!...”. Como não se assombraria? Tabu, às vezes descrito como um documentário de Murnau e de Flaherty, nada (ou pouquíssimo) tem de Flaherty e é tudo menos um documentário. Murnau, que chegou a Taiti como Nosferatu, num barco a velas (e como é terrível e ameaçadora a primeira visão do iate, apenas ou por causa da imensa beleza dele e da imensa beleza do plano), é o filme do encontro de Murnau com a Morte, essa morte com que mil vezes foi ameaçado durante as rodagens (Janeiro a Outubro de 1930), essa morte que o apanhou, numa curva da estrada, a 11 de Março de 1931, aos 42 anos, uma semana antes da estréia mundial de Tabu.


Nosferatu. “Um nome que soa como a chamada noturna da Ave da Morte”, para citar o primeiro intertítulo do filme de Murnau de 1922, não é, em Tabu, explicitamente, um morto-vivo ou um vampiro? Talvez não seja. Mas se o não for, quem é então Hitu, o prodigioso velho, de olhar inexorável, que, no iate de Murnau, chega a Bora-Bora para lançar o seu tabu sobre Reri, a virgem sagrada?

Antes, víramos planos de ofuscante beleza em que os mais belos corpos masculinos - donde logo emerge Matahi, o protagonista - pescam como se dançassem ou dançam como se pescassem. É o mar e no mar. Uma simples panorâmica (simples?) e o mundo roda 180º para os planos subjetivos das mulheres em flor, sob as cascatas. Passagem tão misteriosa como a misteriosa passagem do mundo do lago para o do carro elétrico, em Sunrise, depois de George O’Brien ter tentado matar Janet Gaynor.

É um allegro prestíssimo esse início coral, a que se sucede o adágio, no plano inadjetivável em que Reri encosta a cabeça ao peito de Matahi e para sempre fica colada a ele.


É um pouco mais tarde (precedido pelo grande, grande plano do mensageiro dos apelos) que surge o navio fantasma, com o velho Hitu.

Antes de o vermos, vemos uma grande onda preta. E Reri tapou os olhos ao ouvir o tabu. Flores para os mortos.

Matahi reaparece depois, ainda solto, ainda resplandecente. E sempre me pareceu que, logo que o viu, o velho soube tudo (se é que o não sabia antes). Há um plano - brevíssimo - em que quase podemos dizer que uma certa compaixão se apodera dele. Mas, como as nuvens, passou.

Se não é Nosferatu, quem é aquele velho sempre recortado contra o vulcão de Paia? Gauguin, que tantas vezes Murnau evocou em Tabu e expressamente no plano de Matahi, sentado na cabana, tão farto de esperar bem, contou-nos que o Deus Ora desceu do alto dessa montanha à procura de uma mulher transformada em coluna de fogo. E Reri - a mulher que vemos a chorar no lancinante ritual da despedida da mãe - como fogo se acende quando, na dança sagrada, Matahi, despertado pela música, subitamente se lhe vem juntar, afastando todos os corpos para dominar com a sombra dele a sombra da mulher. Se não é Nosferatu, quem é Hitu, o velho que retira a grinalda e corta o amor?


À luz de Hina, a lua, vem depois a noite em que Matahi arranca Reri ao barco da morte e a leva com ele para a ilha dos chineses e das pérolas.

Mas, senão é Nosferatu, quem é esse velho que um tempo, algum tempo, muito tempo depois, desembarca na ilha, em que os amantes se supunham a salvo, para cumprir a maldição?

Não o vemos chegar. Tudo o que vemos é, nessa noite, Reri acordar na cabana, como as crianças acordam dos pesadelos, soltar-se dos braços de Matahi e olhar para a porta, deixada aberta. Todo o terror do mundo nos olhos dela. Depois, tapa-os com as mãos. Contraplano e vemos, no portal, o velho, de branco e de pé. A câmera volta a Reri, que lentamente tira os braços dos olhos. Contraplano e não está lá ninguém. Visão? Sonho? Premonição? Quem souber decidir, sabe o segredo da arte de Murnau.

No dia seguinte, um dos pescadores da ilha é comido por um tubarão. As autoridades declaram essas águas tabu. A palavra TABU aparece no filme. O que aparece é sempre menos do que o que não aparece. Que é esse tabu, decretado pelos homens, face ao outro, que veio do fundo dos mares e dos tempos?


Nessa noite, há a luz sobre os amantes. Matahi dorme, de novo, dorme sempre quando Reri vela, como ela dormiu, depois, quando ele foi pescar a pérola negra. E se não é de Nosferatu, de quem é essa sombra esguia que, como uma seta, deixa a mensagem que anuncia a morte de Matahi se, passados três dias, ela não o seguir? Os corpos parecem agora as pietás de Antonello. A fuga de ainda, gora-se. Em montagem paralela, o desafio ao tubarão da pérola negra e a carta de Reri do imenso adeus.





E se não é Nosferatu, quem é o Caronte que conduz o barco que leva Reri de volta? E se não é Nosferatu, quem é o velho que corta a corda da vida no momento em que Matahi atinge o barco para lhe roubar Reri?


E o maior milagre que já vi no cinema é a perseguição final, quando Matahi se lança atrás do barco. A pé, numa embarcação e, depois, finalmente, a nado, a câmera voa em planos fixos, atravessando terras e mares, para figurar o impossível - possível: Matahi a atingir a velocidade do vento que sopra as velas e a tocar na barca, onde Nosferatu acabou de sepultar Reri. Mas, quando a corda é cortada, tudo se torna de uma lentidão imensa, enquanto o barco se afasta e Matahi se afunda nas águas, nadando, nadando sempre, como se esse movimento já sem razão fosse a última razão possível.


Numa carta à mãe, escrita no final da rodagem, Murnau disse: “Estou enfeitiçado por estes lugares (…) Às vezes, sonho que gostava de voltar a casa. Mas a minha casa não é em parte nenhuma (…) Em casa nenhuma, em terra nenhuma e com nenhuma pessoa.”

Cumpriu-se a maldição que uma lenda antiga atribui a um feiticeiro de Bora-Bora: “Quando o homem branco ouvir o grito da Ave da morte, o Diabo Oramatua-hiaro-rorua o levará.”


Se o cinema, como disse Henry Miller, é “a consciência visual da morte” nunca a vimos de tão perto como em Tabu de Murnau. Depois deste filme, nenhum outro pode ser “o mais belo dos filmes”.


Contraplano. E repito: nenhum outro."



disponível em: Foco Revista de Cinema.

domingo, 9 de agosto de 2015

Redenção de Roberto Pires (1959)


O mundo do cinema é feito de extremos. De um lado temos filmes que gastam fortunas para serem feitos e que dominam o mercado exibidor. A maior parte do público sabe de sua existência e prefere assisti-lo por pressão feita pela própria campanha propagandística. É um filme essencial de ser visto nesta temporada, dizem eles. E não poucos são os que embarcam nesta onda e mantém este jogo viciante em que o lucro se sobrepõe à obra. No outro extremo do tabuleiro encontramos filmes feitos sem verbas, que batalham longamente para serem produzidos e, em seguida, para encontrar um pequeno espaço no mercado exibidor. Sofrem com sua concorrência desleal. Mas se você me pergunta a que filme prefiro assistir, respondo prontamente que é este segundo tipo.

Os filmes feitos por grandes corporações podem, sim, ser feitos por pessoas com paixão pelo cinema. Que assistem números extraordinários de filmes e colocam esta sua paixão na tela. Mas isso não acontece na maioria dos filmes, e quando acontece não surge tão melhor quanto com estes filmes mais simples. As falhas de películas que duram quatro ou cinco anos em produção, dotados de orçamento reduzido, filmados em parcerias entre amigos que simplesmente querem ver aquele projeto ser concretizado podem ser facilmente perdoadas, ao contrário do que acontece aos chamados blockbusters. Porque num filme pequeno há, acima de tudo, a paixão pelo cinema. E isso surgirá em cada fotograma, por mais simples que seja a trama.


Redenção é o primeiro longa-metragem filmado no estado da Bahia. Fruto da paixão de um grupo de amigos pelo cinema, o filme chega até nós com muitos problemas. Por muito tempo o filme foi deixado de lado, considerado perdido em determinado momento desta caminhada, até retornar aos olhos do público. Como nem tudo são flores, partes da película utilizada para restaurar a obra ficou estragada, o que significa que cenas ou pedaços de cenas se perderam. Este é um primeiro ponto que nos faz olhar com calma para esta obra. Não mais com o olhar crítico de quem estivesse na época, mas com um olhar terno de quem vê um bebê (o cinema baiano) a dar os primeiros passos.

A crítica mais dura sobre o filme fica para o passado. A cinematografia baiana em muito ganhou com o passar dos anos, e hoje caminha lentamente em direção a um amadurecimento artístico protagonizado por nomes da envergadura de Edgar Navarro e Henrique Dantas. Mas é quase inevitável fazer menção à imaturidade da trama e da criação dos personagens deste Redenção. A escrita do roteiro exala este despreparo dos cineastas que tinham, sobretudo, boas intenções. Tão boas que chegaram a criar uma lente para imitar o sucesso do cinemascope. A imagem larga favorece, sobretudo, a abertura do filme, que desenha para si um mistério. Um táxi percorre uma pista à beira da praia. Vemos os coqueiros alinhados uns aos outros e o automóvel, que quebra. O taxista informa a seu passageiro que não poderão continuar viagem e de que ele terá que ou pegar carona ou pedir guarida numa fazenda de cocos não muito longe dali. O homem então escolhe a segunda opção.


Na fazenda moram dois jovens. Eles pensam em ampliar a fazenda para que possam lucrar mais. Um deles pensa em se casar, e o outro diz que ele deve conversar com sua namorada para conseguir um financiamento com o tio funcionário de banco para a fazenda de cocos ser ampliada. É quando alguém bate à porta, já noite. Ao abrir, imerso em sombras, está o passageiro do táxi que pede para se hospedar ali. Este é um plano muito interessante para introduzir o personagem aos demais membros da trama. No dia seguinte, a dupla sai pela cidade. Vão ao bar, à praia, à casa de um amigo jogar cartas. Lá um deles lê num jornal que um louco assassino fugiu de um manicômio: trama clichê do terror estadunidense dos anos 1980 (mas estamos na Bahia de 1950). Pouca atenção dão ao caso.

Mas o fato é que a suspeita que um deles levanta ao ler a descrição do louco está certa: o homem que hospedaram é mesmo o assassino. Numa das melhores sequências do filme, Roberto Pires monta em sucessão as ações simultâneas de seus personagens. A namorada de um dos jovens vai até a fazenda dar-lhes boas notícias, e o louco ainda não foi embora; os amigos tardaram para sair do jogo de cartas e agora retornam para casa à noite. O carro da menina entra na fazenda, estaciona em frente à casa. Eles ainda continuam longe. Ela entra na casa e é recepcionada pelo louco, que a ataca. Um tiro é ouvido. O que se segue são cenas quase desconexas que nos deixam implícito o que aconteceu naquela noite. Um corpo é retirado de detrás do caminhão e posto numa praia. Retornam para casa com a culpa. Mas logo a polícia baterá em sua porta. O que acontecerá?


Numa sobreposição de mãos apontando para um dos jovens, que supostamente realizou o disparo contra o homem que atacava a menina, ouvimos vozes dizendo: "assassino". Uma síntese do sentimento do jovem atormentado. Este tormento nos soa tão implausível quanto o de Orlac*, mas nem por isso faz da obra menos interessante. No que concerne à criação de uma trama, ela deixa a desejar. No resto, é uma peça no mínimo curiosa. Um filme de que foi picado pelo bichinho do cinema. O que torna tudo muito mais prazeroso de ser visto.


* em As mãos de Orlac

terça-feira, 4 de agosto de 2015

M, o vampiro de Dusseldorf de Fritz Lang (M, 1931)


A década de 1920 se configurou como uma das mais criativas da história do cinema. Os cineastas se permitiam a experimentação, buscando a inovação. Tudo era permitido - mesmo que o orçamento não desse conta (Abel Gance). Tentavam se desprender das outras artes, tentavam superar as limitações que encontravam, e os vícios - muitos haviam migrado de outras artes (eram poetas, arquitetos de formação, artistas plásticos). Montavam, cortavam, sobrepunham umas imagens sobre aos outras em busca da emoção, da ideia, do retrato do subjetivo, do retrato de um mundo idealizado, da representação imagética de ideias.

Quando chega o cinema falado, boa parte desta inventividade da composição das imagens parece se perder. É mais difícil filmar com som. Há o problema da continuidade sonora. Alguns preferem filmar com várias câmeras - como as novelas da tevê brasileira ainda fazem. É mais rápido e mais simples, mas muito pouco artístico. A composição das imagens perde a prioridade, fazendo a inventividade migrar. Ecoando as inventividades da década passada, os pioneiros do som cinematográfico buscaram formas diferentes de introduzir o som em seus filmes. E Fritz Lang é uma destas figuras.


Em M, o vampiro de Dusseldorf, o cineasta põe o som como parte componente da imagem. O som alarga nosso campo de sentidos, e por meio dele "enxergamos" para além daquilo que é posto em cena. Se algo não está em quadro, sua presença será denunciada pelo som. O filme abre com a cena da menina Elsie saindo da escola. Em paralelo, Lang filma sua mãe preparando o almoço à sua espera. A menina vai atravessar a rua, quando um perigo que ela não vê - nem nós - é anunciado pelo som. Um carro buzina, a menina pula para trás. Só depois de salva que o carro surge em tela. O som funciona como anúncio de uma presença ainda não vista. Seguindo nesta mesma cena surge o assassino de crianças que encosta para conversar com Elsie. "Muito bonita esta sua bola", fala o homem fora de tela, cuja sombra vemos projetada num poste. Sabemos de sua presença pela sombra, mas sua ação nos chega por meio de sua fala. É ele o assassino procurado pela polícia - apenas um espectro, aqui.

Voltamos para a mãe. Ouvimos os passos nas escadas do lado de fora do apartamento. A mulher vai até lá e vê duas crianças subindo com a pasta nas costas. Ela pergunta se Elsie não voltou com elas. As crianças dizem que não. Sucede-se um conjunto de imagens que criam certo desconforto. A mãe grita o nome de sua filha, que rapidamente se torna um clamor. Mas não vemos a mulher gritando. Ouvimos sua voz enquanto espaços vazios nos são mostrados. O som que iniciara a cena sendo afirmação da presença converte-se na afirmação da ausência. Elsie não está mais lá para ouvir sua mãe chamar. A bola com que brincava rola por detrás do mato e o balão que o assassino comprou para a criança se enrosca na fiação dos postes.


Esta onda de crimes passa a ter cada vez mais clamor. A polícia procura o sujeito em todos os lugares. Mas onde ele está? O chefe de polícia fala ao telefone toda a ação que a polícia tomou, ainda que ineficaz. Enquanto fala, suas palavras são ilustradas pelas imagens. Fizeram buscas com cães farejadores nos matos, as rondas pelas ruas aumentaram. Os policiais trabalham sem parar e estão muito cansados. Nada disso vem ajudando, e a população sempre pede a participação deles, numa relação de amor e ódio com a polícia.

Para descobrir quem é o assassino, os policiais resolvem ir até um bar em que a marginalidade se encontra. Dezenas de policiais são postos para fazer a batida. A cena é filmada com maestria: vemos os policiais andando, mas não ouvimos seus passos. Vemos a ação no bar, que se encontra num porão (há apenas uma saída). O silêncio da chegada dos policiais nos põe em sintonia com os marginais. Como não escutam a chegada da polícia, também não há tempo de fugir. E quando finalmente percebem, já é tarde, os policiais cercaram a única saída do bar. Todos que lá estão possuem alguma irregularidade, e por isso vão todos para a cadeia. Mas ninguém ali é o assassino.


Com estas batidas policiais cada vez mais constantes, o trabalho dos mafiosos - que possuem uma organização - fica cada vez mais escasso, assim como o dinheiro que entra em seus bolsos. Para que possam retornar à sua regularidade comercial, decidem também eles agir e investigar quem é o assassino. Fazendo uma parceria com uma organização de mendigos, juntam-se para poder investigar tudo e todos. Mas será novamente pelo som que o mistério será desvendado. O mendigo vendedor de balões é cego. No dia em que Elsie morreu ele vendeu um balão a ela, que estava acompanhada por um homem que assoviava. Reconhecendo a canção, o vendedor de balões chama um conhecido - o sujeito que possibilitará a entrada do assassino do quadro. E lá está o assassino, desta vez sendo visto, e podendo ser caçado.

É interessante notarmos que, mesmo com personagem tão odioso quanto o assassino de crianças interpretado por Peter Lorre - impossível sentir simpatia por alguém que cometa tal crime - não existe oposição ao personagem durante a narrativa. Não existe o Bem no filme, senão na breve aparição das crianças, sempre inocentes, cantando musiquinhas que acham engraçada e cujo sentido não compreendem. Os homens que caçam o assassino são igualmente condenáveis, e desejam praticar o mesmo crime - o assassínio. O que surge de realmente curioso neste filme é a formulação do som nesta relação. Sempre desvelando algo escondido da imagem, o som anuncia que algo está escondido por detrás das máscaras - tal como o mafioso que se torna juiz num tribunal paralelo ao Estado, e acusa o personagem de Peter Lorre de ser assassino, já tendo ele mesmo três mortes no "currículo".


Este algo escondido é o Mal. Presente em todos, o Mal não pode ser visto isoladamente. Não há a imagem do Mal supremo que deve ser extinguido. O que existe é o mal em suas diferentes escalas nas ações cotidianas. O problema é que ninguém se acha o malvado da história: nem o personagem de Lorre, nem o mafioso que preside o julgamento. A multidão conclama pela morte do assassino de crianças como se aquela morte fosse extinguir o Mal da face da terra - o bode expiatório. Mas matar o sujeito é a solução? Certamente que não. A polícia por fim chega e interrompe o julgamento. O assassino é levado para responder por seus atos frente ao Estado, à lei. Lang tem o cuidado de encerrar o filme antes de dar-nos a condenação. Ele encerra o filme com a fala da mãe de Elsie: temos que cuidar melhor de nossas crianças. O que significa isso? Bom leitor, deixarei esta por sua conta.

[atualizado em 03 de novembro de 2020]