Truffaut já escrevia, em prefácio ao livro de textos de André Bazin sobre, que mesmo entre aqueles que não reconheciam o cinema enquanto uma arte, Charles Chaplin tinha seu espaço. O artista inglês conquistou este lugar considerável no imaginário mundial poetizando a vida comum, a vida das pessoas simples. Enxergando beleza onde todos os outros veriam somente a miséria. Não são poucos os filósofos que indicarão que o artista é aquele que transforma o ordinário em extraordinário. É exatamente isso que faz Chaplin com os pãezinhos em Em busca do ouro. Aquilo que encontramos todos os dias e cujo trato é sempre igual é transformado pelo cômico inglês num baile. É numa homenagem a este tipo de visionário que Wim Wenders vai até a capital portuguesa filmar O céu de Lisboa. Em tempos de filmes digitais, quando as imagens tornaram-se descartáveis porque todos podem produzi-las aos montes, o cineasta alemão faz este retorno às origens, a busca dos poetas do cinematógrafo.
Tudo começa com um ciao a Fellini. O italiano que também possui suas inspirações chaplinianas (ou partilha das mesmas inspirações), surge na capa de um jornal que noticia seu falecimento. A morte de um autor como Fellini poderia anunciar os tempos críticos do cinema. E parece ser exatamente isso que se anuncia por alguns momentos durante a película. Phillip Winter recebe um postal de um amigo cineasta que está a filmar em Lisboa e precisa que ele até lá viaje para fazer o trabalho de som do filme. Na primeira recusa à modernidade prática, Winter escolhe ir da Alemanha à Portugal não de avião, mas de carro. Neste caminho, a influência dos cômicos do cinema mudo torna-se explícita. Winter está de pé quebrado e dirige. O pneu fura numa ponte e ele deixa cair o pneu reserva no rio. Mais tarde falta água no radiador, que ele repõe com Coca-Cola. O carro quebra. Chegando a Lisboa, de carona, não consegue encontrar o endereço do amigo, Friedrich. E, quando adentra o edifício, descobre que o amigo não está lá.
Na casa há uma mesa de montagem com algum filme e uma câmara antiga - semelhante à das fotos de Vertov - sobre um tripé. Deita numa cama e dorme. Acorda com um grupo de crianças o filmando com as práticas câmeras portáteis, digitais, que permitem filmar horas e horas de imagens. Elas seguram as máquinas, filmam o estranho que dorme na cama de seu amigo Friedrich, mas em momento algum prestam atenção ao trabalho de composição das imagens. As câmeras digitais são encontradas em qualquer lugar, a preços razoáveis e qualquer pessoa pode manejá-las. O que não significa que saberá criar com elas. As crianças são postas por Wenders em cena como figuras desta ingenuidade moderna de criação. Com o digital todos se acreditam criadores, e creem que qualquer imagem pode ser comparada às outras, que possui tanta beleza quanto. Mas o que produzem são conjuntos de imagens descartáveis que, caso desapareçam, ninguém, nem mesmo seus criadores, sentirá falta.
As crianças correm para todos os lados sempre com a câmera ligada. Põe a máquina no rosto do engenheiro de som que tenta esconder-se do assédio. Mas não consegue passar todo o tempo longe desta maquinaria sempre ligada. Faz amizade com as crianças e mostra-lhes seu trabalho. Esconde-se por trás de uma parede, faz sons e pede para que elas adivinhem o que é. Entusiasmadas, elas dão identidade àqueles sons produzidos pelo homem. Nunca deixando de gravar, mesmo que o nada. Aquele agrupamento de imagens desordenadas será, depois, projetada numa parede da casa para que Winter assista. Ele não consegue assistir. São muitas horas de imagens sem conteúdo. E parece que Friedrich nunca lhes disse o que poderiam filmar ou deixar de filmar.
Assistindo o filme que o amigo sumido deixou na mesa de montagem é que Winter passa a ter noção de com que trabalhar. Sai às ruas lisboetas em busca dos sons. Descobre toda a beleza do lugar a partir daquele trabalho de segurar o microfone. Fecha os olhos e tenta captar as imagens sonoras - porque é isso o som do cinema - da vizinhança. Ouve o bater de asas dos pombos. Uma mulher que grita com alguém. Uma criança que canta uma cantiga. O mundo se abre perante àquela percepção calma e cuidadosa. O fazer artístico é um processo demorado e paciente. Diferente das imagens digitais das crianças - nenhum preconceito contra as crianças, elas são representação de algo no filme - que buscam o imediato e que podem ser descartadas (e este é um ponto muito caro a Wenders, as imagens descartáveis), a criação artística de filmes de cinema busca este algo além, aquele algo que não seria por nós alcançado no cotidiano. Como os pãezinhos que transformam-se em pés a bailar sobre a mesa com Charles Chaplin.
O cineasta amigo de Winter torna-se desacreditado do fazer cinema. As pessoas são bombardeadas por imagens o tempo todo, e agora também podem produzi-las. Não há mais o espanto e o encantamento que tinham as plateias de tempos idos. É verdade, não há. Mas o que é que de relevante vem sendo feito? As imagens vem sendo produzidas sem qualquer conteúdo relevante. Sem a beleza estética necessária. É isso que Manoel de Oliveira, em participação especial, vem nos lembrar. Posto em frente à câmara, o cineasta português põe-se a imitar Chaplin e seu caminhar pelas ruas lisboetas. O conjunto de belezas da cidade está aí para ser apreciada, mas o passar cotidiano pela arquitetura distancia o sujeito de sua apreciação. O cinema é capaz de trazê-las de volta. E por que não fazê-lo como Vertov fez ao filmar seu O homem com uma câmera?