terça-feira, 30 de setembro de 2014

O sangue de Pedro Costa por João Bénard da Costa


Reproduzo abaixo parte do texto de João Bénard da Costa sobre o filme O sangue de Pedro Costa. Mesmo se tratando de um trecho é possível notar a beleza do texto de João Bénard.

"De O Sangue se tem falado como de um filme obscuro. Melhor seria falar de um filme escuro, nome do cão que quase logo no princípio conhecemos. Alguma atenção - mas já estamos tão desabituados que no-la peçam assim - dissipará as aparentes obscuridades do filme. A mesma atenção só lhe reforça o lado escuro, que, neste caso nada tem que ver com o lado negro. É escuro porque é noite - é quase sempre noite - e é em noites destas que há sonhos e pesadelos e vem lá o lobo mau. De noite - em noites dessas - não vemos as cores e por isso este filme - contra quaisquer modas, modernismos ou pós-modernismos - só podia ser um filme a preto e branco, ou a escuro e claro, no escuro tão escuro e no claro tão claro da prodigiosa fotografia de Martin Schäfer.


[...] 
Antes, muito antes, tentara Vicente suportar sozinho o peso do seu sangue (seqüência da farmácia) quando procura ocultar de Clara a ferida da primeira solidão. E só quando esta lhe agarra a mão - porventura o mais belo grande plano do filme, ou o mais belo plano do filme - se lhe entrega com o pedido de salvação, precedendo a noite do cemitério.


É a seqüência mais onirizante do filme (durante ela, Nino dorme); é também a seqüência mais elíptica, como se os dois tentassem redimir uma culpa oculta, sabendo já da impossibilidade da mancha do corpo não alastrar. “Os sonhos existem mesmo?” E a resposta é a árvore assombrada, a dívida reclamada, e as figuras de substituição paterna (credores, tio) minando o incesto sangrento. O homem com um grande termômetro no chapéu, sonhar e inventar são coisas muito diversas. Não há mundos sem dívidas, como não há mundos sem culpas. Na noite mítica do amor, Vicente e Clara descobrem-se sós e têm medo. Se ninguém será como eles, tudo e todos existem para o mal. “Estás a tremer... Pede-me coisas... Mais perto... Mais”. Depois só resta a névoa da festa, a profundidade de campo e a posse por Clara do corpo de Vicente, enquanto um outro fio de sangue - ferida do tio - os conduzirá para a cidade junto de bichos mais antigos e mais famintos (as piranhas e as tartarugas do aquário, Isabel de Castro) que nos ritos da magia negra ofuscam a magia escura dos juncos e dos pântanos e da noite em que Nino dormiu com a cabeça pousada no colo de Vicente e Clara. São os décors de Alphavillevisitados pelos foragidos da noite, em termos de cinema outra aliança secreta dos mundos de Ray e de Godard, dos amantes assustados do primeiro plano de They Live by Night ao Rimbaud citado por Belmondo, junto ao mar, no último plano de Pierrot le fou."

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Eztetyka da Fome - Glauber Rocha

(texto de 1965)

[tese apresentada durante as discussões em torno do Cinema Novo, por ocasião retrospectiva realizada na Resenha do Cinema Latino-Americano, em Gênova, janeiro de 1965, sob o patrocínio do Columbianum. O tema proposto pelo secretário Aldo Viganó foi Cinema Novo e Cinema Mundial. Contingências forçaram a modificação: paternalismo do europeu em relação ao Terceiro Mundo - foi o principal motivo da mudança de tom]

Dispensando a introdução formativa que se transformou na característica geral das discussões sobre América Latina, prefiro situar as relações entre nossa cultura e a cultura civilizada em termos menos reduzidos do que aqueles que, também, caracterizaram a análise do observador europeu. Assim, enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como sintoma trágico, mas apenas como dado formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino.

Eis - fundamentalmente - a situação das Artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizam problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos limites da Arte mas contaminam sobretudo o terreno geral do político.


Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo; e este primitivismo se apresenta híbrido, disfarçando sob tardias heranças do mundo civilizado, mal compreendidas porque impostas pelo condicionamento colonialista.

A América Latina permanece colônia e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é apenas a forma mais apropriada do colonizador: e além dos colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que também sobre nós armam futuros botes.

O problema internacional da AL é ainda um caso de mudança de colonizadores, sendo que uma libertação possível estará ainda por muito tempo em função de uma nova dependência.

Este condicionamento econômico e político que nos levou ao raquitismo filosófico e à impotência, que, às vezes inconsciente, às vezes não, geram no primeiro caso a esterilidade e no segundo a histeria.


A esterilidade: aquelas obras encontradas fartamente em nossas artes, onde o autor se castra em exercícios formais que, todavia, não atingem a plena possessão de suas formas. O sonho frustrado da universalização: artistas que não despertam do ideal estético adolescente. Assim, vemos centenas de quadros nas galerias, empoeirados e esquecidos; livros de contos e poemas; peças teatrais, filmes (que, sobretudo em São Paulo, provocam inclusive falências)... O mundo oficial encarregado das artes gerou exposições carnavalescas  em vários festivais e bienais, conferências fabricadas, fórmulas fáceis de sucesso, coquetéis em várias partes do mundo, além de alguns monstros oficiais da cultura, acadêmicos de Letras e Artes, juris de pinturas e marchas culturais pelo país afora. Monstruosidades universitárias: as famosas revistas literárias, os concursos, os títulos.

A histeria: um capítulo mais complexo. A indignação social provoca discursos flamejantes. O primeiro sintoma é o anarquismo que marca a poesia jovem até hoje (e a pintura). O segundo é uma redução política da arte que faz má politica por excesso de sectarismo. O terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma sistematização para a arte popular. Mas o engano de tudo isso é que nosso possível equilíbrio não resulta de um corpo orgânico, mas de um titânico e auto-devastador esforço no sentido de superar a impotência: e, no resultado deste operação fórceps, nós nos vemos frustrados, apenas nos limites inferiores do colonizador: e se ele nos compreende, então, não é pela lucidez de nosso diálogo mas pelo humanitarismo que nossa informação lhe inspira. Mais uma vez o paternalismo é o método de compreensão para uma linguagem de lágrimas ou de mudo sofrimento.

A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida.


De Aruanda a Vidas Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi estas galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo pela crítica a serviço dos interesses anti-nacionais pelos produtores e pelo público - este ultimo não suportando as imagens da própria miséria. Este miserabilismo do Cinema Novo opõe-se à tendência do digestivo, preconizada pelo crítico-mor da Guanabara, Carlos Lacerda: filmes de gente rica, em casas bonitas, andando em automóveis de luxo: filmes alegres, cômicos, rápidos, sem mensagens, de objetivos puramente industriais. Estes são os filmes que se opõe à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo os próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na própria incivilização. Como se, sobretudo, neste aparato de paisagens tropicais, pudesse ser mascarada a indigência mental dos cineastas que fazem este tipo de filme. O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo que, antes escrito pela literatura de 1930, foi agora fotografado pelo cinema de 1960; e, se antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político. Os próprios estágios do miserabilismo em nosso cinema são internamente evolutivos. Assim, como observa Gustavo Dahl, vai desde o fenomenológico (Porto das Caixas), ao social (Vidas Secas), ao político (Deus e o diabo na terra do sol), ao poético (Ganga Zumba), ao demagógico (Cinco Vezes Favela), ao experimental (Sol sobre a lama), ao documental (Garrincha, Alegria do Povo), à comédia (Os Mendigos), experiências em vários sentidos, frustradas umas, realizadas outras, mas todas compondo, no final de três anos, um quadro histórico que, não por acaso, vai caracterizar o período Janio-Jango: o período das crises de consciência e de rebeldia, de agitação e revolução que culminou no Golpe de Abril. E foi a partir de Abril que a tese do cinema digestivo ganhou peso no Brasil, ameaçando, sistematicamente, o Cinema Novo.

Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entende. Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro é uma vergonha nacional. Ele não come mas tem vergonha de dizer isto; e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos nós - que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto - que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendo do tecnicolor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.


A mendicância, tradição que se implantou como redentora piedade colonialista, tem sido uma das causadoras de mistificação política e da ufanista mentira cultura: os relatórios oficiais da fome pedem dinheiro aos países colonialistas com o fito de construir escolas sem professores, de construir casas sem trabalho, de ensinar o ofício sem ensinar o analfabeto. A diplomacia pede, os economistas pedem, a política pede: o Cinema Novo, no campo internacional, nada pediu: impô-se a violência de suas imagens e sons em vinte e dois festivais internacionais.

Pelo Cinema Novo: o comportamento exato de um faminto é a violência, e a violência de um faminto não é primitivismo. Fabiano é primitivo? Antão é primitivo? Corisco é primitivo? A mulher de Porto de Caixas é primitiva?

Do Cinema Novo; uma estética da violência antes de ser primitiva e revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino.

De uma moral: essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também não diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação mas uma amor de ação e transformação.


O Cinema Novo, por isto, não fez melodramas: as mulheres do Cinema Novo sempre foram seres em busca de uma saída possível para o amor, dada a impossibilidade de amar com fome: a mulher protótipo, a de Porto das Caixas, mata o marido; a Dandara de Ganga Zumba foge de guerra para um amor romântico; Sinhá Vitória sonha com os novos tempos para os filhos; Rosa vai ao crime para salvar Manuel e amá-lo em outras circunstâncias; a moça do padre precisa romper a batina para ganhar um novo homem; a mulher de O Desafio rompe com o amante porque prefere ficar fiel ao seu mundo burguês; a mulher de São Paulo S.A. quer a segurança do amor pequeno-burguês e para isto tentará reduzir a vida do marido a um sistema medíocre.

Já passou o tempo em que o Cinema Novo precisava explicar-se para existir: o Cinema Novo necessita processar-se para que se explique à medida que nossa realidade seja mais discernível à luz de pensamentos que não estejam debilitados ou delirantes pela fome. O Cinema Novo não pode desenvolver-se efetivamente enquanto permanecer marginal ao processo econômico e cultural do continente latino-americano; além do mais, porque o Cinema Novo é um fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do Brasil: onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura, aí haverá um germe vivo do Cinema Novo. Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a por seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo. A definição é esta e por esta definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração. A integração econômica e industrial do Cinema Novo depende da liberdade da América Latina. Para esta liberdade, o Cinema Novo empenha-se, em nome de si próprio, de seus mais próximos e dispersos integrantes, dos mais burros aos mais talentosos, dos mais fracos aos mais fortes. É uma questão de moral que se refletirá nos filmes, no tempo de filmar um homem ou uma casa, no detalhe de observar, a Filosofia: não é um filme, mas um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público, a consciência de sua própria existência. 

Não temos por isto maiores pontos de contato com o cinema mundial.

O Cinema Novo é um projeto que se realiza na política da fome, por isto mesmo, todas a fraquezas consequentes de sua existência.


(texto presente no livro: Revolução do cinema novo, páginas 28 - 33. 1981 - publicado aqui integralmente).

domingo, 21 de setembro de 2014

O Efeito Kulechov - por Ismail Xavier


Ninguém mais do que Kulechov vai acreditar na maleabilidade desta unidade mínima: o "efeito Kulechov" é um extremo exemplo disso. A experiência, esquematicamente, consistiu em intercalar o mesmo plano de um ator (portanto, a mesma expressão facial) com três imagens diferentes, de modo a "provar" que, induzido pela imagem acoplada, o espectador daria um significado diferente à mesma expressão facial, o que seria uma demonstração radical do predomínio absoluto da montagem sobre cada imagem singular. Esta experiência teve forte repercussão na Rússia e, em seguida, no Ocidente, sendo amplamente divulgada pelas conferências de Pudovkin, em sua viagem. Na época, era dotada de uma credibilidade que diminuiu com o tempo. O próprio Kulechov, em 1967, nos fornece um relato em que o seu próprio crédito no efeito permanece ambíguo: "eu alternei o mesmo plano de Mozhukin com vários outros planos (um prato de sopa, uma mulher, um caixão com uma criança morta), e os planos (de Mozhukin) adquiriram um sentido diferente. A descoberta me assombrou - tão convencido estava eu do enorme poder da montagem".

Ao conceber a leitura de cada imagem como algo imediato, atribuindo às imagens precedentes um forte poder de indução nesta leitura, o exagero de Kulechov indica o quanto sua teoria do cinema "em geral" aproxima-se das normas do cinema particular que ele defende. A leitura imediata e o privilégio absoluto do fluxo de imagem, são, sem dúvida, propriedades ajustáveis aos limites de um cinema narrativo, baseado nas regras de continuidade e de clara motivação pra a mudança de plano. E, neste aspecto, Kulechov é radical, exigindo que todo e qualquer episódio representado seja necessário para o desenvolvimento da ação, num ajuste perfeito.


(trecho de "O discurso cinematográfico - a opacidade e a transparência" de Ismail Xavier, p. 38)

Em português escreve-se Kulechov, enquanto em inglês Kuleshov.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

O travelling de Kapò - Serge Daney


Entre os filmes que eu nunca vi, não há somente Outubro, Trágico amanhecer e Bambi. Há também o obscuro Kapò. Filme sobre os campos de concentração, rodado em 1960 pelo cineasta italiano de esquerda Gillo Pontecorvo, Kapò não firmou seu nome da história do cinema. Serei eu o único, nunca o tendo visto, jamais tê-lo esquecido? Porque eu não vi Kapò mas, ao mesmo tempo, vi. Eu vi porque alguém - com palavras - me mostrou. Só conheço esse filme, cujo título, como uma senha, acompanhou minha vida através de um curto texto: a crítica que dele fez Jacques Rivette em junho de 1961 nos Cahiers du Cinéma. Era o número 120, e o seu artigo se chamava "Da abjeção". Rivette tinha trinta e três anos e eu tinha dezessete. Acho que nem tinha pronunciado a palavra "abjeção" em minha vida. Em seu artigo, Rivette não contava o filme. Ele se contentava, em uma frase, em descrever um plano. A frase, que ficou na minha memória, dizia assim: "Vejamos agora, em Kapò, o plano em que Riva se suicida, se jogando sobre o arame farpado eletrificado: o homem que decide, nesse momento, fazer um travelling para frente para reenquadrar o cadáver em contra-plongée, tomando cuidado para inscreve exatamente a mão levantada num ângulo do enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo desprezo." Dessa forma um simples movimento de câmera poderia ser um movimento a não se fazer. Aquele que era necessário - à evidência - ser abjeto para fazer. Bastava ler essas linhas para saber que seu autor tinha toda a razão.

Abrupto e luminoso, o texto de Rivette me permitiu colocar palavras sobre esse olhar da abjeção. Minha revolta tinha encontrado palavras para se manifestar. Mas tinha mais que isso. Tinha que a revolta estava acompanhada de um sentimento menos claro e sem dúvida menos puro: o reconhecimento consolador de ter adquirido a minha primeira certeza de futuro crítico. Ao passar dos anos, com efeito, o "travelling de Kapò" foi o meu dogma de carteirinha, o axioma que não se discutia, o ponto limite de todo debate. Com qualquer um que não sentisse imediatamente a abjeção do "travelling de Kapò", eu não teria, definitivamente, nada a ver, nada a partilhar. 

Esse tipo de recusa estava, aliás, no ar da época. Pelo estilo irritado e excedido de Rivette, eu sentia que furiosos debates já haviam acontecido e me parecia lógico que o cinema fosse a caixa de ressonância privilegiada de toda polêmica. A guerra da Argélia, por não ter sido filmada, fazia suspeitar de toda representação da História. Qualquer um parecia compreender que pudesse haver - mesmo e sobretudo no cinema - figuras tabus, facilidades criminais e montagens proibidas. A fórmula célebre de Godard vendo nos travellings "uma questão de moral" era aos meus olhos um desses truísmos  sobre os quais não se questionava. Não eu, ao menos.


trecho de "o travelling de Kapò" de Serge Daney.

sábado, 13 de setembro de 2014

Charles Chaplin - Em Busca do Ouro (the gold rush, 1925)

Charles Chaplin entre a comédia e a tragédia

Se o personagem do vagabundo nos filmes de Charles Chaplin sofreu bastante, foi porque seu criador também sofreu. Mas todo este sofrimento não era visto da forma como poderia ser enxergada por grande parte das pessoas que por eles passam. Chaplin reverteu este sofrimento em um poço de criatividade de onde poderia retirar um sorriso. A tristeza das situações impressas na película de um filme do comediante não vai além do riso em frente à condição miserável de nossas vidas. Porque para sobreviver nós temos que comer, para que possamos comer na sociedade atual temos que ter dinheiro, então os ricos se fartam enquanto os mais pobres passam fome. Temos que trabalhar para poder sobreviver. Neste quesito, em Vida de cachorro (a dog's life, 1918) Chaplin leva este sonho para um extremo. O vagabundo e sua paixão vão morar em uma fazendo própria em que podem comer do fruto de seu próprio trabalho, não precisam comprar a comida.

Chaplin, que durante sua infância turbulenta passou fome, sabe como poucos transportar este sentimento para tela. É a falta de algo essencial para a vida e do qual de repente ele se vê privado. Mas em mente tenho Em busca do ouro, um filme que está no limite entre as experiências reais do seu autor e das histórias que ele escutara. A cena em que o Vagabundo está numa cabana no meio de uma tempestade de neve, preso com outro minerador, e ambos estão com fome é um exemplo desta frágil separação entre a comédia e a tragédia com a qual Chaplin tão bem sabia trabalhar. Eles estão com fome e podem vir a morrer se não comer. Então o Big Jim começa a enxergar seu companheiro como uma galinha. E irá comê-lo. O que ninguém poderia imaginar que renderia uma situação cômica, se transforma em uma comédia que até hoje faz plateias gargalharem. O mais interessante é saber que o diretor tomou esta ideia de uma tragédia que ocorreu com mineradores que ficaram presos em uma montanha. Ele conseguiu ver o riso nas lágrimas. - Retomo aqui, para título de comparação, a sequência do sonho em Os esquecidos (los olvidados, 1950) de Luis Buñuel. É uma cena que, assim como a citada, trata a fome de forma onírica. Durante um sonho, um dos garotos retratados no filme se vê de volta a sua casa com sua mãe recebendo-o de braços abertos e dando-lhe comida. Ele está com fome e esta fome o atormenta até mesmo em seus sonhos.

Para continuarmos esta separação entre a comédia a tragédia nos filmes de Chaplin nos lembremos da cena da tempestade que assola a cabana em que o Vagabundo se encontra. O vento e o gelo efetuam diversas agressões a cabana a ponto de vermos as madeiras que servem de parede se curvarem com a força do vento. É um exagero que leva à comicidade. Mas um mesmo exagero é empregado em outro filme, mas que desta vez serve como ponto decisivo para a criação do drama da personagem. O filme é Vento e areia de Victor Sjostrom com Lilian Gish (the wind, 1928) que se passa em uma localidade no meio do deserto em que o vento está sempre a soprar de forma agressiva, como se quisesse expulsar os homens daquele lugar. Neste aspecto se assemelha à composição chapliniana, mas o tom dado a esta tempestade constante não é o de comicidade, mas o de desespero. Ficamos desesperados e atordoados junto com a protagonista devido a todo aquele vento que levanta a areia do deserto. O vento está sempre batendo nas paredes de seu casebre, quebrando janelas, desenterrando corpos do chão...

Um terceiro ponto que poderíamos fazer entre a comédia chapliniana e o suspense hithcockiano. Logo no início do filme temos o Vagabundo caminhando pela beirada de um precipício e seguido de perto por um urso que está à espreita. É o exemplo típico do que seria uma cena de suspense em um filme de Alfred Hitchcock. O espectador sabe o que vem, o perigo pelo qual está passando seu querido herói, e quer preveni-lo, mas não pode. No caso do filme de Chaplin, ninguém terá esta reação de prevenir o Vagabundo do risco que ele corre porque todos nós queremos ver o que poderá acontecer caso o urso o pegue, qual seria sua reação. Mas no caso de um filme de Hitchcock, este urso representaria um real risco para a vida de seu personagem e por isso nós, espectadores, teríamos uma reação completamente diferente.

O que podemos tirar de tudo isso? Que Chaplin é um sujeito sem coração que ri do que não deveria ser engraçado? Muito pelo contrário! É a habilidade de um artista de poder enxergar o mundo e ver nele beleza, mesmo naquelas situações em que ninguém poderia imaginar que existiria qualquer sinal de beleza. Este é um dos aspectos mais encantadores da filmografia de Charles Chaplin, esta oscilação entre o riso e as lágrimas, entre a alegria e a tristeza. Porque, mesmo fazendo da tragédia uma comédia, Chaplin ainda sabia fazer seus espectadores chorarem, o que mostra que ele sabia muito bem até onde poderia ir para provocar o riso e até onde ir para provocar o choro. Um verdadeiro artista, portanto.

Publicado originalmente no Jornal Fuxico - UEFS.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Distante, de Nuri Bilge Ceylan (Uzak, 2002)


direção: Nuri Bilge Ceylan;
roteiro: Nuri Bilge Ceylan, Cemil Kavukçu;
estrelando: Muzaffer Ozdemir, Emin Tropak.

Nuri Bilge Ceylan deixa bem clara a influência que Andrei Tarkovski possui sobre seu cinema. Principalmente neste Distante. Um grupo de amigos conversam sobre o cineasta soviético durante um almoço. Mahmut - o fotografo que parece ser o auterego de Ceylan - assiste a um dos filmes de Tarkovski na televisão. Para além destas informações que nos são passadas pelo roteiro, está a forma pela qual Ceylan trata a estória que conta. E antes mesmo de ser uma estória, Distante nos apresenta a relação entre dois homens, ou a distância entre eles.

Os longos plano-sequência efetuados pela câmera de Ceylan buscam sempre estes dois personagens saídos do interior falido da Turquia em busca de uma vida nova na capital Istambul. Mahmut conseguiu tornar-se um fotografo famoso, mas pagou um preço. A solidão logo lhe encontra. O encontramos nesta obra quando sua ex-mulher está para se mudar para o Canadá. Seu enclausuramento dentro de seu apartamento torna-se mais profunda e seu contato com outras pessoas cada vez mais raro. Trabalhar como fotógrafo parece ajudar o aprofundamento desta solidão. É quando chega Yusuf. Vindo da mesma cidade que Mahmut, Yusuf busca emprego após a usina em que trabalhava em sua cidade natal ter entrado em falência e demitido seus mil empregados. Se esta presença no apartamento de Mahmut poderia parecer um encontro, o fim de sua solidão, Ceylan mostra que duas pessoas podem morar juntas e mesmo assim permanecerem distantes.


Não raro são os momentos em que Ceylan procura fazer uma conciliação entre dois personagens tão diferentes. Ele os pões juntos na sala de estar da casa de Mahmut enquanto assistem tevê, mas nada parece ajudar. Seus gostos são diferentes. Não assistem aos mesmos programas de tevê Nenhuma conversa consegue vingar. E nenhum dos dois personagens tenta fazer tal aproximação. Yusuf sai sempre do apartamento em busca de emprego, ou mesmo para ver outras pessoas. E mesmo que deseje aproximar-se dos outros, os outros parecem não querer se aproximar dele. E nem ele sabe como se aproximar dos outros. A câmera o filma sentado ao lado de uma garota no ônibus, mas ela se levanta e o deixa só. O que sobra é um primeiro plano - este enquadramento tão adorado pelos cineastas dos primeiros tempos do cinema - que o isola do mundo e que traduz a sua solidão interior.

Por meio de telefonemas aos seus familiares, Yusuf é claramente o personagem que busca contato com outras pessoas. Ele tenta em alguns casos aproximar-se de Mahmut, mas este recusa. Trava-se o distanciamento entre os dois personagens ao qual o título nacional se refere. Tal como já estava presente na cena de abertura do filme. Yusuf, caminhando em direção à câmera em uma paisagem gelada, desaparece por um momento por trás da câmera que precisa efetuar uma panorâmica para encontrá-lo numa estrada. Ele ergue o braço para pedir carona a um carro que se aproxima. Antes que o carro pare ou ignore o pedido de Yusuf, Ceylan corta a cena para apresentar-nos o título do filme. A distância está impressa em filme e não será mostrada a tão desejada aproximação até a ultima cena. 

A cena de encerramento do filme é preparada por todo filme. Em determinado momento, Yusuf oferece a Mahmut um cigarro barato, que este recusa. Quando, sem aviso prévio, Yusuf vai embora, Mahmut encontra no quarto de seu antigo inquilino o maço de cigarro que outrora lhe fora oferecido. Sentado à beira do mar, Mahmut ascende o cigarro de Yusuf selando o fim da distância. A câmera, por sua vez, sela esta aproximação com um zoom-in. Com esta cena fecha o primeiro filme de Nuri Bilge Ceylan que assisti, e que certamente me dará espaço para as demais obras deste interessante cineasta.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Você não viu nada em Hiroshima

[este texto é um acréscimo ao texto sobre Hiroshima, meu amor]

Já nos alertava o texto escrito por Margueritte Duras em Hiroshima, meu amor: você não viu nada em Hiroshima. Esta sentença, mais do que se referir á personagem de Emanuelle Riva, volta-se a nós, espectadores. Porque nós, também, não vimos nada em Hiroshima. Mas tal como a enfermeira vivida por Riva no filme, nós vimos as imagens nos museus e nos filmes sobre aquela grande tragédia. De certa forma, estas imagens estão presentes em nossa memória. É a memória, este artifício da mente humana mais próprio para as especulações filosóficas do que para as telas de cinema, que tanto Alain Resnais quis tratar sob as formas da arte.

Já disse aqui que as imagens vistas da tragédia de Hiroshima constituem se unem em nossa mente e formam uma memória própria. Mas será que estas imagens nos são suficientes para entendermos aquela tragédia? Noite e neblina já fazia um evocamento das imagens do holocausto mostrando o que não deveria ser esquecido. A nossa memória, quando em contato com tais imagens, delas se apropriam criando uma espécie de registro. As imagens de uma tragédia que não fora por nós vivida faz agora parte de nossa memória. Mas é uma memória que não podemos dizer ser nossa, mesmo estando em nossa mente.


As imagens dos feridos pela bomba de Hiroshima, ou dos corpos desfalecidos nos campos de concentração, nos são apresentadas como um meio de manter aquelas imagens vivas. Esta é uma memória que nos é criada para que não possamos esquecer o passado. O esquecimento do passado é o meio mais rápido para que possamos repeti-lo. Assim, nos apropriamos destas imagens, constituindo-as como parte de um passado que não fora por nós vivido, mas que ainda assim é necessário que mantenhamos sempre em mente. Somente por meio deste reconhecimento que as imagens passadas nos proporcionam que podemos enxergar a repetição destes atos.

Entra, assim, outra questão: as formas da representação. Resnais se nega a fazer uma representação dramática daquelas cenas. Em Noite e neblina é muito clara a proposta de constituição de um documentário. Mas em Hiroshima, meu amor, o que temos é um filme de ficção. É em meio a esta ficção que surgem as imagens reais, no sentido de documentação. Porque aquelas imagens não podem ser envoltas em uma dramaticidade. O filme que se põe a fazer um drama, reconstituindo a tragédia passada (o holocausto, ou a bomba de Hiroshima) está fazendo um desserviço á memória. Fazer do holocausto um espetáculo é o mesmo que tentar voltar ao passado, e até mesmo, tentar modificar este passado. As imagens de Resnais são reais e não estão preocupadas em voltar para um passado que não pode mudar. Este passado existe e é dever do cinema mostrá-lo para que ele não se repita.

Decerto, nada vimos em Hiroshima, mas as imagens que nos são apresentadas devem nos manter conscientes do que aconteceu e de que não queremos ver esta história. As imagens que por vezes se assemelham com a vida real, são um lembrete de que a vida real existe e de que coisas horríveis podem acontecer nela.


Leia também:
O esquecimento começa pelo olho
Hiroshima, meu amor