quinta-feira, 29 de maio de 2014

O Grande Golpe de Stanley Kubrick (the killing, 1956)


direção: Stanley Kubrick;
roteiro: Stanley Kubrick, Jim Thompson, Lionel White (baseado em seu livro);
fotografia: Lucien Ballard;
edição: Betty Steinberg;
estrelando: Sterling Hayden, Coleen Gray, Vince Edwards, Jay C. Flippen, Marie Windsor.

Depois que A morte passou perto ficou pronto, Stanley Kubrick conseguiu uma reunião com a United Artists para conseguir um acordo de distribuição de seu filme. O contrato fora feito e Kubrick ainda conseguiu um acordo: o estúdio pagaria cem mil dólares para financiar seu próximo filme. A quantia era mais que o dobro daquela que o jovem diretor havia utilizado em seu filme anterior. Enquanto buscava uma história para transformar em seu próximo longa-metragem, o cineasta - que então contava com 26 anos - conhece James Harris, um jovem e ambicioso produtor de cinema. Ambos se interessam por um romance sobre o roubo de um hipódromo. Sua competição pelos direitos da obra são grandes: Frank Sinatra também estava interessado em transformar o livro em filme. Quando Sinatra declinou da ideia de filmá-lo, Kubrick e Harris partiram para ação, e conquistaram o filme que selaria sua primeira colaboração e o nascimento da produtora que fundaram juntos.

O grande golpe foi o segundo filme de Kubrick distribuído pela United Artists. Foi o filme que lhe mostrou para o mundo. A revista Times, quando do lançamento do filme, comparou esta obra a Cidadão Kane e Kubrick a Welles. Não é para tanto quanto comparar O grande golpe a Cidadão Kane, exagero que foi repetido a exaustão nas décadas seguintes nos EUA enquanto os críticos e entendidos de cinema buscavam uma obra tão inovadora quanto a obra de estreia de Orson Welles. Mas da perspectiva inovadora, O grande golpe se apresenta como um filme que nos trás uma construção incomum para a época em que fora feito. O filme não se centra em uma narrativa que obedeça uma sequência temporal dos fatos. São muitos os personagens envolvidos no já citado roubo ao hipódromo e a narrativa não se furta de voltar no tempo para mostrar o que o personagem fazia horas antes.


É um filme que obedece a diversas regras do cinema noir incluindo-se aí a sua femme fatale loira. Trata-se de um filme que segue um grupo de pessoas que se juntam para roubar o dinheiro de um hipódromo em um dia em que as apostas serão altas. São muitos os membros do grupo e a narrativa tem que dar atenção a todos. Mas atenção especial é dada ao caixa do hipódromo cuja esposa (a loira femme fatale) infiel será o ponto principal do motivo pelo qual o plano poderá não dar certo e para o idealizador do plano Johnny Clay (Sterling Hayden). Um narrador que não participa da história nos conta o desenrolar da ação, dando-nos detalhes e sempre começando seus relatos com o horário das ações dos envolvidos do roubo. É importante prestar atenção no horário dado pelo narrador porque será ele por meio dele que veremos o ponto inovador do filme.

Em Cidadão Kane a inovação estava por conta do uso da profundidade de campo permitida pelas lentes utilizadas no filme. Com a profundidade de campo é permitido ao cineasta poder filmar sem pausas, fazer seus personagens passearem pelos cenários sem necessidade de corte porque o foco não seria perdido. Embora esta técnica já tivesse sido utilizada por Jean Renoir, por exemplo, em A regra do jogo, foi com Welles que ela alcançou seu maior sucesso, sendo mostrado pelo cineasta estadunidense tudo aquilo que poderia ser feito com o uso de tal técnica. Embora Stanley Kubrick se valha de uma construção narrativa não tão comum quanto a narrativa não linear, ela não fora utilizada em sua forma mais brilhante. Aqui já se apresentava um cineasta que começava a esboçar um trabalho com o tempo cinematográfico que mais tarde chegaria ao seu ápice com 2001: uma odisseia no espaço.


Aqui se encontra outra grande qualidade de Kubrick, que já havia sido notada em seu filme anterior, que é o seu trabalho com a luz. Em especial o jogo entre luz e sombras. Este jogo entre luz e sombras tão caro a um filme noir - o mal que se esconde na escuridão dos quadros e que contamina os personagens da trama - se apresenta com maestria neste O grande golpe. Desta vez Kubrick já não assinou a direção de fotografia, mas desde este momento já se percebia sua exigência técnica referente aos enquadramentos, movimentos e câmera, e como iluminar as cenas partindo destes posicionamentos (é conhecida a história de que em seu filme anterior o cineasta desistira de gravar o som direto nas gravações porque o microfone atrapalhava a iluminação).

domingo, 25 de maio de 2014

Os Esquecidos de Luis Buñuel (los olvidados, 1950)


direção: Luis Buñuel;
roteiro: Luis Alcoriza, Luis Buñuel;
fotografia: Gabriel Figueroa;
montagem: Carlos Savage;
estrelando: Alfonso Mejía, Roberto Cobo, Alma Delia Fuentes, Mario Ramírez.

O cinema mexicano se destaca no cenário cinematográfico latino pelo número de filmes que produzem anualmente. Desde a década de 1940 o número de longas-metragens que são lançados em salas de cinema no país chega a cem. Em meio a este mercado ativo chega um Luis Buñuel que há muito tempo não conseguia fazer um filme próprio. Trabalhou durante algum tempo em Hollywood, mas não poderia se dar muito bem por lá. Chega no México e consegue dirigir alguns filmes, de início comédias comerciais. O sucesso de uma destas comédias lhe possibilita fazer filmes próprios, a exemplo deste Os esquecidos. Trata-se novamente de uma película em que o diretor poderia colocar o dedo na ferida que a sociedade ignorava, tal como fizera no início de sua carreira com os filmes surrealistas.

Para quem conhece somente o trabalho de Buñuel da fase surrealista quando o diretor filmava na França - seus filmes que ficaram mais famosos: A bela da tarde, Esse obscuro objeto do desejo, O discreto charme da burguesia..., já na década de 1960-70 - terá uma surpresa ao descobrir que os filmes do cineasta em sua fase mexicana eram filmes com uma sequência narrativa tradicional, diferente das suas construções surrealistas que aboliam a narrativa. Aqui a opção do cinema narrativo é feita para que a denúncia social realizada pelo diretor possa ser compreendida em sua plenitude pelos espectadores. 


O filme abre com um texto que quase faz do filme uma propaganda política. O texto dito por um narrador ausente da trama que será construída a seguir apresenta o problema que será mostrado no filme e que o mesmo não tem qualquer pretensão de apresentar uma solução. O filme é sobre as crianças pobres que vivem desamparadas, sem qualquer auxílio de quem quer que seja. Uma película que apresenta um fato, não uma teoria político-social. A rua aparenta ser um lugar mais acolhedor do que os lares - para aqueles que têm um lar. Na rua estão seus amigos, os parceiros de todos os momentos. São com estes parceiros que estas crianças buscam conforto, são elas que dão uns aos outros comida, dinheiro e cigarros. Eles não tem futuro, mas sonham que um dia serão ricos, mesmo que nenhum deles saiba ler. 

Buñuel é muito cuidadoso no trato com estas crianças. Não são elas as culpadas de seus atos odiosos - que chegam a culminar na morte de um adolescente -, mas os adultos. As crianças são pessoas em formação e não possuem qualquer auxílio de seus familiares sendo que o caso maior é de Jaibo, o delinquente mor do grupo que fugiu do reformatório e busca vingança contra quem o mandou para lá. Jaibo não é descrito por Buñuel como sendo um completo delinquente, ele é assim porque nunca conheceu seus pais, não tem uma imagem em quem se espelhar, ninguém para lhe dizer o que é certo e o que é errado. Neste grupo temos ainda Pedro que em diversos momentos tenta retornar para casa, tenta entrar na linha, mas em nenhum deste momentos recebe o apoio da mãe que o trata como um caso perdido preferindo que o filho fique na rua. Ele procura ajuda para melhorar seu comportamento, mas quem deveria lhe servir de guia prefere não desempenhar tal trabalho.


Quanto a estética do filme. Trata-se de um filme que talvez tenha sido influenciado pelo neorrealismo italiano, mas pode ser também da formação de Buñuel enquanto documentarista em seus últimos anos na Espanha. No filme surge este lado de tentar passar através das imagens o mais real possível, e para isso o filme se vale desde os cenários destruídos e sujos da periferia da Cidade do México como dos rostos de seus personagens - crianças sem dentes, rostos enrugados... É a autenticidade que buscam os filmes deste período sendo este um dos motivos que os fazem tão especiais, filmes que colocam como atores personagens daquele mundo que está a ser representado em tela. Os garotos apresentados no filme poderiam estar vivendo aquelas histórias se não fosse pelo set de filmagem.

A realidade cruel retratada pela câmera de Buñuel segue de perto estas crianças a ponto de até mesmo mostrar um pesadelo de um deles. Pedro volta para casa na calada da noite para dormir. Está atormentado com o assassinato que presenciara e a imagem continua a perturbá-lo. Sua mãe não o quer por perto e nega-lhe até mesmo um sanduíche. Neste pesadelo juntam-se todas estas características que perturbam o personagem fazendo desta uma cena peculiar dentro do filme, mas que ajuda a criar o emocional do garoto para nós espectadores. O pesadelo apresenta-se também de forma narrativa, diferente do que poderia parecer para aqueles que estão acostumados com o Buñuel de Um cão andaluz. Mas nele o tempo apresenta-se de forma diferente, a câmera lenta mostra que o tempo do sonho difere do tempo dos fenômenos. O cinema, como possui uma temporalidade própria - tal como o sonho - é o melhor meio de fazer uma representação do sonho. Ambos criam temporalidades próprias e ambos se constituem de discursos visuais.

É um filme forte que tem bem definido para quem dirige seu discurso. A câmera dura que mostra a realidade dos garotos que vivem na rua também mostra compaixão por seus personagens e não procura dar as respostas muito definidas para o espectador. Tal como no mundo real, somos nós quem devemos dissecar o que acabamos de ver e tirar desta visão um veredicto. 

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Era Uma Vez na América de Sergio Leone (once upon a time in america, 1984)


direção: Sergio Leone;
roteiro: Harry Grey (baseado em seu livro), Leonardo Benvenuti, Pierro De Bernardi, Enrico Medioli, Franco Arcalli, Franco Ferrini, Sergio Leone;
direção de fotografia: Tonino Delli Colli;
estrelando: Robert De Niro, James Woods, Elizabeth McGovern, Joe Pesci, Tuesday Weld.

Nestes tempos corridos, em que a pressa faz com que até mesmo pretensas obras de arte se percam devido à pressa, um filme que se apresenta com quase quatro horas de duração torna-se um desafio a muitos cinéfilos. Esta duração prejudica o visionamento de muitos filmes porque o espectador não acostumado a assistir películas com tal metragem, pausa-o e parte para fazer outra atividade. Este é um crime contra a arte presente em uma obra cinematográfica - especialmente em um filme como Era uma vez na América

Sergio Leone, cineasta mítico que remodelou um gênero (o faroeste), desenvolveu para consigo uma trilogia sobre "a América". Começou com o clássico Era uma vez no oeste, filme de 1968, mas a trilogia dos sonhos do diretor nunca chegou a ser concluída. Leone passaria mais de uma década batalhando para tirar dos papeis este projeto, sem ter muito sucesso. Ainda no início da década de 1970 lhe fora oferecida a direção de O poderoso chefão, à qual ele recusou. Queria filmar a sua própria história sobre gangsteres, sobre a "evolução da América". Foram muitos anos de tentativas e negociações, até que finalmente, no início da década de 1980, o filme viria a ser realizado.


Trata-se de um projeto ambicioso. Transita por três décadas diferentes, com cenários grandiosos para que o período que está a ser retratado pudesse ser bem representado nas telas e soar crível ao espectador. O roteiro demorou um longo tempo para ser concluído, necessitando-se de sete roteiristas diferentes - incluindo-se aqui o próprio Leone - para que ele finalmente chegasse ao ponto certo. Mas ainda assim estava ali um grandioso épico de proporções colossais. Eram mais de trezentas páginas, o que daria mais de quatro horas de projeção. Depois de filmado, os primeiros cortes contavam com algo em torno de oito a dez horas.

Mas a longa duração do corte final é justificável. A construção daquela fábula sobre os EUA necessitava de um filme com uma longa duração. Esta fábula nos é narrada através dos olhos de Noodles (Robert De Niro), que passa pelos mais diversos períodos da história recente daquele que viria a ser o país mais poderosos do planeta. É uma fábula sobre como um país que age sem piedade sobre os demais se ergueu, tendo sua base nos criminosos mais simples que favorecem os criminosos mais poderosos - e os criminosos menores podem chegar a se tornarem criminosos maiores. Este argumento está presente também em Era uma vez no oeste e que, como já coloquei, constituiriam juntos a trilogia sobre a América (a ascensão da "América" por meio da violência, portanto).


Deixemos de lado o tocante político do trabalho que nos é apresentado e foquemos no lado cinematográfico: no filme enquanto filme. Leone possui um estilo muito interessante de filmar e me pergunto sempre que assisto a um filme seu se seria ele um devedor do Dreyer de O martírio de Joana D'Arc. Seus close-ups e super-close-ups que buscam sugar dos personagens a verdade, o que sentem, o que desejam, ou o desnudar dos sentimentos dos outros personagens presentes em cena. Neste Era uma vez na América, o personagem de De Niro se vê de volta à um cenário de sua juventude e começa aquele involuntário processo de reminiscência dos tempos idos. Aqui, Noodles retira um bloquinho do banheiro, espaço este em que ele outrora via a jovem Deborah - sua grande paixão da juventude - dançar. Sergio Leone filma Noodles em um de seus típicos super-close-ups em que vemos apenas os olhos do personagem em uma tela em scope, arrancando dele suas lembranças e expondo-as na grande tela.

Estes close-ups constantes desnudam os personagens a todo momento, fazendo de Sergio Leone um cineasta atípico - e ciente de suas capacidades enquanto diretor. Ele filma seus personagens tentando retirar deles algo mais do que aquilo que o simples roteiro poderia proporcionar. Esta é uma das capacidades que o tornaram um diretor tão querido. Trata-se aqui da derradeira obra do cineasta italiano - um testamento de sua capacidade artística para a humanidade.

sábado, 17 de maio de 2014

Um Condenado À Morte Escapou de Robert Bresson (un condamné à mort s'est échappé ou Le vent souffle où il veut, 1956)


direção: Robert Bresson;
roteiro: Robert Bresson, André Devgny (memórias);
fotografia: Léonce-Henri Burel;
edição: Raymond Lamy;
estrelando: François Leterrier, Charles Le Chainche, Roland Monod.

O cinema de arte sempre nos apresenta algo de extraordinário. São artistas nos apresentando novas formas de ver o mundo ou de enxergar o espetáculo cinematográfico. Os chamados filmes de arte não costumam atrair atenção do grande público nem de encher as salas de cinema quando são lançados. Passam despercebidos pela maioria que não sabe creditar o real valor de tais obras. Mas mesmo assim são grandes obras, sendo elas as responsáveis por podermos utilizar um termo como "espetáculo cinematográfico" como já utilizado neste mesmo parágrafo. São filmes conscientes de ser filmes, mas que possuem uma ambição maior: a de ser cinema. Ou neste caso de ser cinematógrafo.

Robert Bresson é um grande nome do cinema mundial porque fez filmes conscientes de sua condição de filmes, mas que tinham a vontade de ser obras cinematográficas (e que alcançavam seu objetivo). Os grandes nomes não surgem sem motivo. Como diria Jacques Aumont: "todo cineasta francês um pouco interessante deve algo a Bresson". E não só os cineastas franceses possuem este débito, também Michael Haneke já algumas vezes, ao enumerar seus filmes preferidos, coloca uma obra de Bresson. O cineasta francês nem sempre pode se orgulhar desta visão favorável de seu cinema - muitos eram os críticos que não enxergavam com bons olhos os filmes que ele fazia. Mas isto estava prestes a chegar ao fim. François Truffaut foi um dos principais membros daquilo que poderíamos intitular "partido pró-Bresson" e que enxergava e provava em suas análises a arte do cinema de Bresson.


Como constantemente acontece ao cinema de arte, os primeiros filmes de Bresson não foram bem sucedidos. Os distribuidores não acreditam nos filmes de arte, nem o público - que em grande parte enxerga no espetáculo cinematográfico somente um meio de entretenimento (e a arte nem sempre é para ser divertida). A distribuição de seus filmes não são bem feitas o que interfere no sucesso das mesmas. Logo após o lançamento de Diário de um pároco de aldeia, Bresson desenvolve alguns projetos, mas nenhum deles é financiado. Passa, assim, cinco anos sem lançar nenhum filme nos cinemas. Neste meio tempo, o Centro Nacional de Cinematografia (CNC) desenvolve algumas formas de financiamento, além de prêmios para obras de pretensões mais artísticas e empresas em nascimento. É graças a um destes prêmios que Bresson consegue viabilizar a produção de seu próximo filme: Um condenado à morte escapou

O filme é produzido e distribuído graças a um prêmio que recebe da CNC. O prêmio lhe permite um lançamento digno o que lhe possibilita alcançar o sucesso de público. Foi um grande choque para o cinema francês o sucesso do filme de Bresson. O público poderia se interessar por um filme que não visasse somente a agradá-lo, que tivesse algo a dizer, e que rompesse com a estrutura tradicional da forma do filme. O que realmente é necessário é uma distribuição que apresentasse (e não o mantivesse nas trevas como costuma ser feito até hoje) o filme, que possibilitasse a sua exibição em diversas salas. Esta será uma lição importantíssima para a geração nouvelle vague que acompanhava o desdobramento do cenário cinematográfico francês com olhos atentos.


Quanto ao filme: Bresson parte de um ponto que já era trabalhado com sucesso pelo cinema italiano, a exemplo de Umberto D., que era o uso de atores não-profissionais nos filmes (incluindo protagonistas). Os atores costumam criar uma realidade própria, que se assemelha à realidade que vivemos, mas que não é ela. A proposta de Bresson ao utilizar estes não-atores era o de fugir deste mundo de "realidade ficcional" tão comum de ser encontrada no cinema. Ele forçava seus atores a perderem qualquer maneirismo e que agissem com maior simplicidade possível, sem caretas ou alteração exagerada no tom de voz. É assim que Bresson guia seu elenco liderado por François Leterrier, que aqui é Fontaine, o preso que escapou e agora nos conta sua história.

Outra característica da teoria de Bresson que se apresenta neste filme é a separação entre som e imagem. O cineasta, um dos poucos a teorizar o som no cinema, propõe que a trilha de sons e imagens não devem nada uma à outra, sendo que a construção de cada uma deve ser feita à parte. Assim, Um condenado à morte escapou surge como um filme narrado por inteiro pelo protagonista que nos conta a história de sua fuga enquanto as imagens nos mostram o que suas palavras expressam. Mas em determinados momentos a palavra não é o suficiente para dizer o que o personagem está a fazer, e as imagens dominam o filme. Em outros momentos a palavra já apresenta o que as imagens já dizem, dando muito mais informações ao espectador. 


Devido ao processo de desdramatização utilizado por Bresson, suas imagens tornam-se incapazes de mostrar o subjetivo de seus personagens de maneira tão simples como acontece para a maioria dos cineastas - que por vezes abusam do close-up para desnudar as emoções de seus personagens - e por isso a trilha sonora com a narração do protagonista vem tão bem a calhar, dizendo-nos o que sentia ele em determinados momentos durante o processo de planejamento e execução de fuga. 

terça-feira, 13 de maio de 2014

Dr. Fantástico de Stanley Kubrick (dr. Strangelove or: how I learned to stpo worrying and love the bomb, 1964)



direção: Stanley Kubrick;
roteiro: Stanley Kubrick, Terry Southern, Peter George (roteirista e baseado em seu livro);
direção de fotografia: Gilbert Taylor;
estrelando: Peter Sellers, George C. Scott, Sterling Hayden, Slim Pickens.

É lugar-comum afirmar que Stanley Kubrick é um gênio. Mas a cada vez em que assisto a um filme seu, sinto a necessidade de fazer esta afirmação. Kubrick não tem qualquer formação cinematográfica (acadêmica). Na verdade sua formação vem da fotografia, já que quando jovem ele foi fotógrafo da revista Look, e andava por Nova York, Chicago e algumas outras cidades dos EUA fotografando para a revista. Esta sua formação como fotógrafo em muito influenciou a sua carreira como cineasta, a sua preocupação com o espaço, como ocupá-lo, como preencher a tela, como iluminar os locais. Esta preocupação já era latente em A morte passou por perto, segundo longa-metragem de Kubrick filmado de forma amadora, embora quem assista acredite que se trate de um filme profissional, feito por pessoas da área, (e no caso de ser uma película estadunidense) sindicalizadas.

Digo que a preocupação de Kubrick em preencher os espaços do quadro é nítida porque é por meio deste trabalho em que podemos, enquanto espectadores, sentir o que está a ser feito pela cabeça por trás do filme. No caso deste "Dr. Fantástico", filme satírico acerca do exército estadunidense e a política referente ao armamento, as imagens não poderiam senão caminhar junto com este tom de sátira dado por Kubrick à discussão de uma guerra nuclear. Quando filma o general Jack Ripper (Sterling Hayden), lhe é dada a ideia de um sujeito superior, já que, mesmo estando sentado na cadeira de seu escritório, a câmera o filma de baixo para cima, dando-lhe um ar poderoso, de superioridade (imagem abaixo). Ele é filmado como Hitler era filmado nos filmes de propaganda nazista naquele que foi um dos maiores (se não for o) legados deixados por tais filmes para o cinema: quando filmamos alguém de baixo para cima lhe damos mais poder, impomos a sua presença, o transformamos em alguém que é superior: alguém em quem devermos prestar atenção. No caso do filme de Kubrick, mesmo sendo o general Jack Ripper um louco com acesso à armas muito poderosas, ele não é filmado desta forma - da mesma forma que Hitler propunha uma guerra e uma limpeza social e também era filmado como um ser superior - e é aí em que está a ironia satírica da filmagem deste personagem: ele é filmado como um líder, quando na verdade ele é um maluco que está o tempo inteiro a falar sobre um ataque aos fluidos corporais.


Quando tropas do exército estadunidense invadem o quartel general de Jack Ripper inicia-se um confronto com os militares da base na qual estavam tentando entrar (Ripper anteriormente havia dito que os soviéticos poderiam tentar entrar na base, até mesmo vestidos de militares norte-americanos, e que seus soldados deveriam atirar em quem se aproximasse para defender a base). A forma como Kubrick filma esta cena a transforma em uma das cenas de guerra mais realistas da história do cinema (sendo mais realista do que qualquer cena de "Nascido para matar" do próprio Kubrick). A câmera é posta rente ao solo, como se um cinegrafista de guerra estivesse ali presente, tentando se proteger dos tiros, se escondendo por trás de barreiras para não ser alvejado. Em muitos momentos vemos o mato na frente da câmera, como se indicasse que o câmera está deitado no chão com sua máquina.

Quanto à reunião em que estão generais, o presidente e seus secretários de estado na sala de guerra é uma das filmagens mais clássicas do cinema. A primeira vez em que chegamos àquela sala estamos no teto, vendo a grande mesa redonda por cima da iluminação, em que temos uma lâmpada sobre cada um dos membros sentados. Um grande painel está ao fundo indicando o posicionamento dos aviões que promoverão o bombardeio contra a União Soviética. Estão todos sentados lado a lado, sem discriminação de superioridade de cargos (imagem abaixo). Mas nesta cena vale o destaque para a iluminação. Já que o filme foi fotografado em preto e branco, nada melhor para diferenciar as pessoas do que com a cor de suas roupas variando daquelas que são mais próximas do branco e aquelas que se aproximam do preto. Todos os estadunidenses vestem esta roupa mais próxima do branco, mas os dois estrangeiros (o cientista com tendência ao nazismo e o embaixador da URSS) são os únicos a vestirem preto, fazendo com que se camuflem naquela sala em que o chão também é escuro. Peter Sellers aqui interpreta dois personagens distintos, o presidente (calvo) dos EUA e o Dr. Fantástico, na versão brasileira, ou Dr. Strangelove, nome que ele adota quando se torna cidadão americano, já que o filme dá a entender que ele fora outrora um cientista a serviço do nazismo (mais uma brincadeira de Kubrick em referência à política armamentista).


Por fim temos um dos aviões que recebe as ordens para bombardear a URSS. Mais uma vez a filmagem de Kubrick impressiona. Dentro do avião não há muito espaço para locomoção, para movimentar a câmera. São muitos soldados e muitas máquinas. Estamos sempre perto deles sentindo este aperto pelo qual passam dentro do avião. E quando eles mexem no equipamento do avião, o diretor não tem medo de mostrar os detalhes para seu espectador, que vê os botões em que estão mexendo, vê as luzes se acenderem, lê os documentos que eles têm em mãos. A câmera passa a fazer uma investigação aqui para depois mostrar que todas as ações tomadas darão errado, os botões deixarão de funcionar, as luzes deixarão de acender, e alguns painéis irão derreter devido a uma tentativa de derrubar o avião.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Umberto D. de Vittorio De Sica (1952)


direção: Vittorio De Sica;
roteiro: Cesare Zavattini;
fotografia: G. R. Aldo;
edição: Eraldo da Roma;
estrelando: Carlo Battisti, Maria Pia Casilio, Lina Gennari.

O neorrealismo italiano se destaca no mundo do cinema como um dos movimentos mais influêntes da história da sétima arte. Foi um dos principais motivos catalizadores do surgimento do chamado "cinema moderno" (se é que existe um). Caracteriza-se pela liberdade dada à câmera para contar histórias e juntamente com estas histórias apresentar críticas políticas e sociais, mostrando para o público as mazelas a que passava o povo italiano na fase durante e do pós-guerra. Faziam parte deste movimento alguns dos cineastas mais conhecidos do cinema italiano e que figuram entre as principais personagens do cinema mundial. São eles Roberto Rossellini, que inaugurou o movimento com seu filme Roma, cidade aberta, Luchino Visconti, Federico Fellini e Vittorio De Sica. Dentre todos estes, De Sica surge como um cineasta mais voltado para o drama pessoal, procurando olhar os problemas que os indivíduos possuem em um país tentando se reconstruir.

Assim surge Umberto D., tido por alguns como o ultimo filme neorrealista, que apresenta-nos Umberto (Carlo Battisti), aposentado tentando viver no mesmo lugar em que vive há mais de vinte anos. O problema: seu lar é alugado. Umberto não possui casa própria, necessita pagar aluguel todos os meses. Sua aposentadoria não é suficiente para que ele possa pagar o aluguel e comer. O filme inicia com um protesto com vários aposentados caminhando em direção à casa do primeiro ministro italiano, exigindo falar diretamente com o primeiro ministro. Mas o protesto é dispersado pelas forçar militares que atiram carros sobre a multidão de senhores que já não são tão fortes para fazer qualquer coisa a respeito a não ser fugir. - A cena é belíssima, a orquestração de De Sica apresenta uma confusão, um protesto bagunçado, são diversas as vozes e não conseguimos ouvir ninguém direito, nem mesmo o protagonista. De repente a voz de um representante do governo se faz ouvir, mas para dizer que os aposentados não tinham autorização para fazer a manifestação. Em seguida à fala do representante do governo surgem na tela os carros dos militares dirigindo-se para os manifestantes com o intuito de dispersá-los. Num primeiro plano temos os carros vistos por trás encaminhando-se para a praça, no segundo plano os carros entram na praça organizados, o terceiro plano, com a câmera posicionada do alto, mostra os carros movimentando-se em direção à multidão dispersando-a.


Mas o drama é de Umberto, e a câmera, embora mostre as pessoas, nutre um interesse em especial por este senhor que vive só com seu cachorro, cachorro este que está sempre ao seu lado e que lhe faz companhia até mesmo no protesto. Durante a fuga, Umberto se esconde em um prédio junto a outros aposentados. Inicia-se uma conversa entre eles de onde nosso protagonista descobre que, mesmo estando todos pedindo aumento da aposentadoria, apenas ele (Umberto) possui dívidas e realmente necessita deste aumento. Terminada esta conversa, Umberto sai do prédio conversando com um senhor aposentado que lhe parece amigável até que o protagonista tenta lhe vender um relógio para pagar suas dívidas. Por fim lá está Umberto só, acompanhado de Flike, seu cachorro. E será assim pelo resto do filme. Ninguém lhe faz companhia além de seu cachorro e de Maria, uma menina que lhe confidencia estar grávida e não saber quem é o pai de seu filho. A trama se desenvolve em meio a estas pessoas, tendo foco principal no personagem título do filme. É para elas que a câmera de De Sica se volta e carinhosamente as retrata. Este é o termo certo para comentar sobre a visão que é desenvolvida pelo diretor neste filme: é um retrato carinhosos de pessoas que sofrem, mas que tentam manter-se dignas frente aos seus problemas.


Para contar-nos esta história, De Sica não necessita de atores profissionais, qualquer italiano sensível poderia fazer aquele personagem. Daí constrói-se a poética do filme, nenhum dos atores do filme, incluindo o protagonista, eram profissionais. Eles foram escolhidos por terem o perfil certo de quem estariam representando e não um rosto fabricado para mostrar a realidade. É nesta busca pelo real em que se apresenta a poesia do cinema de De Sica, ao menos nesta obra. Ele extrai de seus não-atores os seus personagens e de seus personagens os seus sentimentos mais profundos. Isto se traduz em algumas cenas mais óbvias, como quando acompanhamos uma ida de Umberto ao centro financeiro de Roma para - como muitos outros - pedir esmola. Ele fica parado com a mão estendida em uma luta moral consigo mesmo que se transfere para a mão. A câmera de De Sica não sente a necessidade de estar muito perto do personagem para mostrar esta batalha interior, mesmo de longe conseguimos ver e talvez seja devido a esta distância que enxergamos todo o desdobrar da ação. - Um homem passa por Umberto, vê sua mão estendida e volta para lhe dar dinheiro. Umberto ainda em conflito moral vira a mão, não aceitando o dinheiro que lhe seria dado pelo homem que estava de passagem. Em outro momento é a vez de Maria (Maria Pia Casilio), a primeira a acordar na casa em que trabalha - a mesma de Umberto -, dirige-se para a cozinha para preparar o café. Enquanto faz suas ações rotineiras De Sica extrai dela a sua emoção, sua tristeza perante sua situação, e ela chora enquanto mói o café.

Um filme belíssimo, portanto. Trata-se de um filme sobre um país em crise, sim, mas antes de tudo um filme sobre pessoas. Um filme humano sobre humanidade.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Charles Chaplin (sobre o advento do cinema falado)


Quando estava em Nova York, contou-me um amigo que assistira a experiências de sincronização do som nos filmes e preconizou que em breve isso revolucionaria toda a indústria do cinema.
Só voltei a pensar no assunto quando, meses depois, a Warner Brothers produziu sua primeira sequência falada. Era um filme de época, mostrando uma atriz sedutora - deixemo-la no anonimato - que expressava em silêncio a mais profunda tristeza, os grandes olhos doridos revelando uma angústia que ia além da eloquência shakeaspiriana. Então, de súbito, introduziu-se no filme um novo elemento - a zoeira de um buzio que se encosta ao ouvido. E a adorável criatura, uma princesa, falou como se tivesse areia na garganta: "Desposarei Gregory, mesmo que tenha de renunciar ao trono!" Foi um choque medonho, pois até aí a princesa nos elevara. À medida em que a projeção avançava, o diálogo foi-se tornando cada vez mais cômico, porém não tão engraçado quanto os efeitos sonoros. Quando girou a maçaneta da porta de um boudoir, tive a impressão de que alguém pusera em funcionamento um trator agrícola; a porta fechou-se com um barulho igual ao da colisão de dois caminhões carregados de toros. É que de início nada se sabia sobre controle de som: um cavaleiro andante em sua armadura era mais estridente que um aciaria, um simples jantar de família tornava-se tão rumoroso como um restaurante barato na hora de maior movimento, a água despejada num copo toava esquisitamente como uma escala que subisse até o dó sustenido. Deixei a sala de projeção na crença de que os dias do cinema sonoro estavam contados.
Mas, um mês depois, a M.G.M. produziu Melodia da Broadway, um musical de longa-metragem, coisa reles e enfadonha, mas que foi enorme sucesso de bilheteria. Era a largada... De um dia para o outro, todos os cinemas começaram a equipar-se para o cinema sonoro. Foi o crepúsculo das fitas silenciosas. Dava pena, porque elas começavam a melhorar. Murnau, o diretor alemão, soubera usar na maneira mais eficiente esse meio de expressão e alguns dos nossos diretores americanos iam pelo mesmo caminho. Um bom filme silencioso constituía atração para qualquer plateia, da mais intelectualizada à mais simples. E isso tudo estava agora para se perder.

(Charles Chaplin em "Minha Vida")