terça-feira, 17 de março de 2015

Fazendo "Encouraçado Potemkin" - por Eisenstein

Os doze apóstolos


"Para fazer o filme de um encouraçado, é preciso, antes de mais nada, um encouraçado.

E, para reconstituir a história de um encouraçado de 1905, é preciso de um tipo existente em 1905.

Em vinte anos - estávamos no verão de 1925 - o desenho das construções de guerra tinham mudado fundamentalmente.

Nem na enseada sobre o golfo da Finlândia, ancoradouro da esquadra do Báltico, nem na esquadra do mar negro, encontravam-se naquele verão encouraçados do antigo modelo.

Um cruzador vagueia jovialmente na baía de Sebastopol. Não possui a saliência nem o tombadilho indispensável ao drama famoso do castelo de popa que devíamos  recriar...

O verdadeiro Potemkin já tinha sido demolido há muitos anos. Inútil mesmo procurar onde o outono da história dispersou as folhas da blindagem que recobriu um dias seus vastos flancos.

Um 'reconhecimento' revela, contudo, que se o velho Príncipe Potemkin de Táurida não mais faz parte deste mundo, um gêmeo e amigo seu vive ainda, um encouraçado que conheceu horas de glória: Os doze apóstolos.

Amarrado aos rochedos da costa, encalhado por suas âncoras às areias do fundo, essa carcaça que foi heroica se esconde ao fim de um das mais distantes reentrâncias da baía. Subterrâneos que prolongam as sinuosidades até o coração da montanha servem de abrigo a centenas e milhares de minas. À entrada, vigilante cérebro acorrentado, Os Doze Apóstolos estende seu vulto cinzento, oblongo, corroído pela ferrugem.

Mas o casco dessa sonolenta baleia em sentinela não tem mais torres, nem pontes nem mastros.

O tempo levou-os embora.

Seu bojo de ferro, em andares, não ressoa mais que de longe em longe, com o choque dos vagonetes conduzindo o pesado e mortal conteúdo de suas criptas: minas, mais minas, sempre minas.

Porque o interior de Os Doze Apóstolos se tornou também o se depósito. Por isso é que ficou tão cuidadosamente amarrado, preso, encalhado à terra firme: a mina não gosta de choques e por isso evitam-lhe as batidas; ela exige repouso e paz.

Mergulhado até as cinturas nas águas tranquilas da baía de Sebastopol, Os Doze Condenados parecia imobilizado para sempre.

Mas estava escrito que a baleia de aço despertaria uma vez ainda.

Uma vez ainda, ela agitaria os seus flancos.

Uma vez ainda, ela voltaria para o largo a sua proa que aprecia ter adquirido raízes nos rochedos. 

O encouraçado estava encravado neles, paralelamente à costa.

Ora, o 'drama do tombadilho' é passado ao largo.

Nem do estibordo nem da proa poderia a câmera apanhar o encouraçado sem que os altos penhascos negros entrassem no campo visual.

Mas Liocha Krukov, meu assistente, tem olhos de lince. Ele já desalojou o ancestral blindado do labirinto da baía. E vai resolver esta dificuldade, também.

Se essa massa enorme girar em noventa graus para colocar-se de costas à margem, a silhueta do navio, fotografada da proa, aparece exatamente numa brecha entre rochedos, e toda a extensão de seus flancos recorta-se sobre o fundo de céu.

O encouraçado aparecerá como se estivesse em pleno mar.

Habituadas a tomá-lo por um promontório, as gaivotas espantadas, que sobrevoam as cercanias, completarão a ilusão.

Sob um silêncio angustiante, a baleia de aço descreve seu arco de círculo.

Por ordem do estado-maior da esquadra o monstro blindado apresenta-se, uma vez mais, o nariz voltado ao largo.

E dir-se-ia que, cansado de ter durante tanto tempo aspirado o lodo costeiro, ele agora aspira plenamente os odores do mar."


(EISENSTEIN. Reflexões de um cineasta, p. 21 - 23.)

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