Como poder sentir a passagem do tempo? Esta questão complexa já foi pensada por filósofos e diversas vezes questionada pelo cinema. Este [o cinema] possui como uma de suas funções principais a de contar uma história com o suporte temporal. Em todos os filmes há tempo. Em alguns pode faltar o movimento - a exemplo de La jetée e Vinil verde - ou mesmo espaço. Mas nunca tempo. E esta questão da passagem do tempo, em especial, surge belissimamente em uma obra nacional recente, Sudoeste, obra que, mais cedo ou mais tarde, comentarei aqui no blog. Mas nesta postagem quero fazer um exercício de pensamento e questionamento de outro filme, sem que para isso encontre todas ou alguma resposta em definitivo. Trata-se da ultima obra lançada por Olivier Assayas, Acima das nuvens.
O tempo é aquele juiz imparcial que dita a permanência pela memória. Em determinados casos esta memória pode ser coletiva, como no caso do mundo das artes. Para que uma obra ou autor ou conjunto de obra sobreviva é necessária esta permanência de uma memória coletiva. Coletiva porque a apreciação de uma obra artística, mesmo que possua impacto subjetivo em cada espectador/ouvinte, é coletiva. As obras de arte são postas no mundo e é permitido a todos o seu acesso. E o tempo é este juiz imparcial porque ao passar ele julga quem ou o que merece a nossa atenção. Mostra quais obras melhor sobreviveram ao seu teste. Algumas obras muito elogiadas na época de seu lançamento são postas à margem da memória, merecendo alguns comentários ou seu completo esquecimento. E que dor não deve ser para uma obra/artista ser posta de lado e esquecida quando o objetivo da arte é exatamente esta externação, esta expressão exterior. O estético das artes é o que se vê ou se ouve que pode ser contemplado pelo outro.
Mas como perceber esta mudança de perspectiva do mundo das artes enquanto ele ainda permanece em sua mutabilidade em direção a este arrebatamento de quais serão as grandes obras e artistas a serem salvos para a posteridade? Como perceber a grandeza das obras ou artistas que hoje são brilhantes e que continuarão a ser considerados brilhantes no futuro? Questão complexa. Isso porque não poucos foram os que anunciaram obras para a posteridade que amargam num terrível esquecimento. Prever o futuro é sempre um negócio arriscadíssimo. Ainda assim sempre é possível ter ideia de quem ou o que possui tais qualidades. É o que um diretor de Hollywood que surge ao fim do filme de Assayas nomeia de "atemporal", ou nos termos próprios do roteiro: "out of time". É um estar fora do tempo que não envelhece, permanece eternamente com sua qualidade artístico-estética.
A trama de Acima das nuvens segue Maria, uma atriz que viaja para poder fazer uma homenagem a um teatrólogo que escreveu a peça que a alçou ao estrelato e pelo qual ela é verdadeiramente grata. Durante a viagem ela é avisada de que o escritor faleceu. Em sua homenagem, decidem fazer uma peça, a remontagem da obra que fora a estreia de Maria. Mas desta vez ela já não estará no papel da jovem que seduz uma mulher mais velha, mas no papel da mulher mais velha que é seduzida. Este trabalho consome Maria. Ela está acostumada a ver a peça a partir de uma perspectiva, da garota mais nova. Enquanto lê com sua assistente o texto, somente vê as falhas e fraquezas da personagem que está a interpretar. E quase não escuta as frases de suas assistente, voz da razão em muitos momentos.
É sua assistente que diz que ela tem que encarar a passagem do tempo e mudar sua perspectiva de vista. Esta perspectiva de vista é o que faz com que o mundo das artes continue surpreendendo. Os mestres de hoje podem não o ser mais tarde. É necessário estar fora do tempo, como diz o diretor ao fim do filme. Estar fora do tempo para que possa enxergar o todo. É muito curioso este termo utilizado por Assayas em seu roteiro. Porque Santo Agostinho escreve que Deus está fora do tempo porque se nele estivesse, envelheceria. É necessário ao artista fazer trabalho semelhante ao dito pelo filósofo escolástico para poder sobreviver à eternidade artística. Se há a relutância de Maria em aceitar o entretenimento popular de Hollywood é porque ele é ditado por modas, e as modas são mutáveis e quando passam deixam num passado doloroso aqueles que fizeram-na surgir e brilhar por um determinado tempo, e que viram cinzas do tempo.
É necessário de Maria esta mudança de perspectiva com relação ao seu personagem porque ela mudou, envelheceu, e seu personagem na peça já não é mais aquele que fez outrora, exatamente devido a esta passagem do tempo. Para que ela permaneça sendo sempre a grande atriz que é, é necessário o trabalho de mudança de perspectiva e compreensão de seu trabalho, tal como ela compreendia a personagem da mesma peça que havia interpretado no passado. Mas esta é somente uma perspectiva de vista, não uma inserção de Maria no tempo. Ela permanece naquele "out of time" que lhe é dito. E por mais que uma sensação de Hollywood tente lhe tirar o brilho da peça em que atuam juntas, ela sempre será esta diva eterna.
E no desenvolvimento desta história, Assayas põe alguns episódios pontuados por longos fades entre os quais a tela mergulha numa escuridão. São episódios pontuais da vida da protagonista para que possa demonstrar sua percepção do tempo. Ela vive e faz seu trabalho numa percepção do tempo semelhante aos dos outros e em nenhum momento perceberá que sua obra a fez eterna. Ela pode envelhecer, desempenhar outros personagens, mas permanecerá no imaginário artístico como a qualidade perene. É o sentido do "out of time". Ela pode envelhecer e por isso ser obrigada a mudar de perspectiva no palco, mas a qualidade de sua obra não é medida por números. A qualidade é sentida por seus espectadores que acharão sempre seu trabalho extraordinário. E mesmo que as revistas busquem a estrela de Hollywood que interpretara o papel que lhe coube quando tinha 18 anos, será por causa de Maria no palco que a peça será lembrada.
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