quarta-feira, 9 de junho de 2021

Mário de Andrade escreve sobre O Garoto, de Chaplin

 Trazemos ao leitor deste blog o texto de Mário de Andrade publicado na revista Klaxon como parte da celebração do centenário do filme clássico de Chaplin.


O garoto por Charlie Chaplin é bem uma das obras primas mais completas da modernidade para que sobre ele insista mais uma vez a irrequieta petulância de KLAXON. Celina Arnauld, pelo último número fora de série da Action, comentando o fim com bastante clarividência, denuncia-lhe dois senões: o sonho e a anedota da mulher abandonada que por sua vez abandona o filho. Talvez haja alguma razão no segundo defeito apontado. Efetivamente o caso cheira um pouco a sub-literatura. O que nos indignou foi a poetisa de Poit de Mire criticar o sonho de Carlito. Eis como o percebe: "Mas Carlito poeta sonha mal. O sonho objetivado no film choca como alguns versos de Casimiro Delavigne intercaladas às Illuminations de Rimbaud. Em vez de anjos alados e barrocos, deveria simplesmente mostrar-nos pierrots enfarinhados ou ainda outra cousa e seu fim conservar-se-ia puro. Mas quantos poemas ruins têm os maiores poetas!"

Felizmente não se trata d'um mau poema. O sonho é justo uma das páginas mais formidáveis de O garoto. Vejamos: Carlito é o maltrapilho e o ridículo. Mas tem pretensões ao amor e à elegância. Tem uma instrução (seria melhor dizer conhecimentos) superficial ou desordenada, feita de retalhos, colhidos aqui e além nas correrias de aventura.

É profundamente egoísta como geralmente o são os pobres, mas pelo convívio diurno da desgraça chega a amar o garoto como a filho. Além disso, já demonstrara suficientemente no correr da vida uma religiosidade inculta e ingênua. Num dado momento conseguem enfim roubar-lhe o menino. E a noite adormecida é perturbada pelo desespero de Carlito que procura o enjeitado. Com a madrugada, chupado pela dor. Carlito vai sentar-se à porta da antiga moradia. Cabe nesse estado de sonolência que não é o sono ainda. Então sonha. Que sonharia? O lugar que mais perlustrara na vida, mas enfeitado, ingenuamente enfeitado com flores de papel, que parecem tão lindas aos pobres. E os anjos aparecem. A pobreza inventiva de Carlitos empresta-lhes as caras, os corpos conhecidos de amigos, inimigos, policiais e até cães. E os incidentes passados misturam-se às felicidades presentes. Tem o filho ao lado. Mas a briga com o boxista se repete. E os policiais perseguem-no. Carlito foge num voo. Mas (e estais lembrados do sonho de Descartes) agita-se, perde o equilíbrio, cai na calçada. E o sonho repete o acidente: o polícia atira e Carlito alado tomba. O garoto sacode-o chamando. É que na realidade um polícia chegou. Encontra o vagabundo adormecido para acordá-lo. Este é o sonho que Celina Arnauld considera um mau poema. Como não conseguiu ela penetrar a admirável perfeição psicológica que Carlito realizou! Ser-lhe-ia possível com a mentalidade e os sentimentos que possuía, no estado psíquico em que estava, sonhar pierrots enfarinhados ou minuetos de aeroplanos! Estes aeroplanos imaginados pela adorável dadaísta é que viriam forçar a intenção da modernidade em detrimento da observação da realidade. Carlito sonhou o que teria de sonhar fatalmente, necessariamente: uma felicidade angelical perturbada por um subconsciente sábio em coisas de sofrer ou de ridículo. O sonho é o comentário mais perfeito que Carlito poderia construir da sua pessoa cinematográfica. Não choca. Comove imensamente, sorridentemente. E, considerado à parte, é um dos passos mais humanos da sua obra, é por certo o mais perfeito como psicologia e originalidade.



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segunda-feira, 3 de maio de 2021

10 filmes sobre cinefilia

 Em ocasião do lançamento de meu livro, A metafísica da cinefilia, onde busco compreender filosoficamente a cinefilia como uma emoção, trago aos leitores deste blog uma lista com 10 filmes sobre a cinefilia (para além de Cinema paradiso).

            O critério do que seria um filme sobre a cinefilia é apresentar personagens apaixonados pelo cinema em uma relação espectatorial contínua, ou seja, não encerrando em apenas uma cena de ida ao cinema. Descartamos igualmente os filmes sobre produção e filmagem, nosso interesse é particularmente por filmes focando a experiência do espectador (o que nos leva a não incluir alguns dos filmes dos cinéfilos da Nouvelle Vague).

            A lista procura ser o mais democrática possível, trazendo indicações que levantem a curiosidade do leitor, quiçá atiçando a assistir as obras desta lista. Convidamos também a abertura de sugestões nos comentários.

1.      Sherlock Jr., 1924, dir. Buster Keaton


Neste clássico de Buster Keaton, um jovem projecionista altamente sugestionável pelos filmes que assiste, tenta solucionar o mistério de quem haveria roubado o relógio de bolso do pai de sua namorada. Caindo no sono durante a projeção de um filme, o jovem se vê transportado para dentro da tela, transformando-se em personagem. Esta é uma das cenas mais fantásticas do cinema, utilizando diversos recursos técnicos para criar gags cômicas que levam a personagem de um cenário a outro num piscar de olhos, sem qualquer aviso prévio de mudança.

Filme de 1924, Sherlock Jr. (disponível no Youtube) apresenta como subtexto uma juventude que forma seu caráter assistindo a filmes, imitando os gestos das personagens da tela.


2.      Eu, você, e a garota que vai morrer, 2015, dir. Alfonso Gomes-Rejon

A cinefilia dos adolescentes de Eu, você e a garota que vai morrer reflete a de muita gente que vive em cidades do interior, sem acesso às salas de cinema. Ela se passa na sala de casa, assistindo filmes em DVD (ou Blu-ray, ou streaming, ou download) e vivendo no choque posterior que cada um desses filmes causa. Greg e seu amigo Earl assistem clássicos do cinema mundial, mais tarde fazendo vídeos parodiando estes mesmos filmes partindo apenas de um trocadilho engraçadinho.

São muitas as referências aos clássicos que todos cinéfilo já devem ter assistido ao menos uma vez ao longo da vida. O bonito desta obra é como ela demonstra o papel algo terapêutico do cinema em acomodar nossas crises pessoais, em mostrar também o papel agregador da cinefilia ao unir pessoas de inaptidão social.


3.      As poltronas do cine Alcazar, 1989, Luc Moullet

Feito por um cinéfilo profissional, ou seja, um crítico de cinema da mítica revista francesa Cahiers du cinema, este filme acompanha um crítico de cinema da mesma publicação assistindo sessões de filmes do cineasta italiano Vittorio Cottafavi. Um dia, ele nota a presença de uma mulher nas cadeiras do cinema, uma crítica para uma revista rival, a Positif.

Esta obra é como uma grande piada interna para um grupo seleto de cinéfilos conhecedores dos anos de ouro da cinefilia francesa dos anos 1950-60, quando autores como François Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, André Bazin, Éric Rohmer, escreviam para os Cahiers tendo como preferidos autores que eram menosprezados pelos críticos da Positif. Para além disso, ainda são dados alguns detalhes de como estes cinéfilos acompanhavam os filmes, buscando as cadeiras da primeira fila do cinema (reservada para as crianças) para ser o primeiro a receber as imagens.


4.      A rosa púrpura do Cairo, 1985, dir. Woody Allen

Sem dúvida uma das maiores obras de Woody Allen, A rosa púrpura do Cairo apresenta uma dona de casa que sofre com os abusos de seu marido, buscando refúgio nas fantasias da sala de cinema. Inspirado em peça de Luigi Pirandello, o filme apresenta Cecilia, que de tanto assistir ao mesmo filme já chegou a decorar as falas, o que desperta a curiosidade... dos personagens do filme! Então Tom Baxter, personagem da obra, transpõe os limites entre os dois mundos e salta para o outro lado da tela, passando a fazer parte do mundo de Cecilia.

Muito próximo do tema de Sherlock Jr., A rosa púrpura do Cairo imagina o aspecto escapista da fantasia, quando a espectadora imerge a tal ponto no mundo da ficção que já não consegue distinguir o real do não real. O processo de reconhecimento do real por parte de Cecilia é um dos momentos mais tocantes da filmografia de Woody Allen.


5.      Adeus, Dragon Inn, 2003, dir. Tsai Ming-Liang

Um gigantesco cinema de Taiwan está para fechar as portas. Como última sessão, exibem um filme de artes marciais antigo. São muitas as cadeiras vazias, preenchidas por personagens que parecem pouco se importar com o filme e mais uns com os outros. Adeus, Dragon Inn é um filme sobre a decadência do ir ao cinema, quando as salas fora de shoppings ou museus passam a ser frequentadas por figuras em busca de encontros sexuais.

Um filme silencioso, onde o olhar das personagens é o que mais fala, Dragon Inn tem apenas quatro falas ao final, quando o filme já encerrou, no devido respeito cinéfilo ao filme sendo exibido. Não surpreende que as falas sejam feitas por dois senhores acompanhando o filme com seus netos. Ao que parece, fizeram parte da produção daquele filme que vemos em partes quando a câmera se volta para a tela. É um filme de adeus, mas que pode também ser um novo começo – os avôs levando seus netos é a formação de novo público, renovando interesse pela arte do cinema.


6.      Close-up, 1990 / Shirin, 2008, dir. Abbas Kiarostami

Temos aqui dois filmes do mestre iraniano Abbas Kiarostami. O primeiro, Close-up, é um misto de documentário e ficção. Atraído pela história de um cinéfilo, Hossain Sabzian, que fingiu ser o cineasta Mohsen Makhmalbaf para convencer uma família de que eles iriam atuar em seu novo filme, Kiarostami vai até a prisão onde está o homem para entrevistá-lo e propor que façam um filme recontando a própria história. Para quem tem curiosidade de conhecer um cinema profundamente humanista, o primeiro passo é conhecer os filmes de Kiarostami e como ele filma suas personagens.

O segundo filme aqui apresentado é Shirin, uma obra bem diferente do tradicional. Kiarostami convida algumas das atrizes mais famosas do Irã para a sala de cinema que tem em sua casa. Elas assistirão a um filme contando uma antiga história persa a respeito de Shirin. Enquanto escutamos a história, tudo que Kiarostami nos oferece são as feições das atrizes, ou seja, das espectadoras assistindo a história daquela mulher numa tela que não vemos. O interesse volta-se da ação na tela para as emoções que surgem nos espectadores. Porque também nós construímos o nosso próprio filme a medida em que assistimos.


7.      Rebobine, por favor, 2008, dir. Michel Gondry

Filme de Michel Gondry (diretor de Brilho eterno de uma mente sem lembranças), guarda algumas semelhanças com Eu, você e a garota que vai morrer, ainda que não seja tão comovente quanto. Aqui, a cinefilia envolve o aluguel de filmes em VHS, e a sua eventual queda. De fato, o tempo de glória do VHS não foi duradouro. Quando a personagem de Jack Black inadvertidamente apaga todo o conteúdo dos filmes, ele e o atendente da locadora se veem obrigados a preencher o conteúdo das fitas. O que fazem é filmar ao seu próprio estilo, com os recursos disponíveis à mão, alguns dos filmes mais famosos dos anos 1980 – Robocop, Os Caça-fantasmas...


8.      Os sonhadores, 2003, dir. Bernardo Bertolucci

Bernardo Bertolucci relembra a cinefilia formada em torno da Cinemateca Francesa, responsável pela criação de muitos intelectuais. Iniciando com as manifestações contra a deposição de Henri Langlois de seu cargo de presidente da Cinemateca pelo governo De Gaulle, o filme mostra o papel do cinema no desenvolvimento intelectual da juventude, e a fomentação do sentimento de mudar os rumos da história. A obra acompanha não somente as manifestações em apoio a Langlois, como também o maior de 1968 na capital francesa.


9.      Pornográphico, 2008, dir. Paula Gomes, Haroldo Borges

Estava dividido entre Lisbela e o prisioneiro e Cine Holiúdi, quando a memória me trouxe esta pérola do curta-metragem brasileiro. Acompanhando um projecionista de cinema pornográfico, que noite após noite acompanha a chegada de homens em busca de sexo fácil e de prostitutas. Numa noite chuvosa, a única espectadora do cinema é uma deslumbrante prostituta num vestido vermelho, algo como uma aparição de algum filme que o projecionista teria assistido anos antes. Aproveitando a solidão da moça, ele aproveita e saca outra película que tem guardada em seu estoque: Cantando na chuva. A moça, surpresa, rasga um sorriso com a poesia do momento.


10.  Splendor, 1989, dir. Ettore Scola

Marcelo Mastroiani é dono de um cinema numa cidadezinha italiana, o Splendor. Como há muito tempo os espectadores dos filmes que traz para assistir não são suficientes para pagar as dívidas, ele se vê obrigado a vender o prédio para construção de uma loja de departamentos. Nesta obra, Ettore Scola passeia pela história do cinema na Itália, desde os tempos do cinema itinerante, montando uma tela em praça pública para exibir filmes silenciosos para comunidades de moradores em vilarejos, contando com a ajuda local para apagar os candeeiros das praças para diminuir a luz e ajudar na projeção. Vale ainda apontar para a presença da personagem Luigi, o ajudante do Splendor, cinéfilo que conhece tudo de cinema e tem nomes de filmes, estrelas e diretores na ponta da língua.


segunda-feira, 19 de abril de 2021

Sol sobre a lama, um filme de Alex Viany e João Palma Neto (1963)


 Sol sobre a lama é uma peça interessante de ser encontrada na cinematografia brasileira. Para além daquilo que encontramos no filmes, existem algumas interpretações que podem ser feitas do próprio cenário político brasileiro - o filme se apresenta como rico documento para um estudo sociológico da formação do pensamento político de esquerda. Isto porque o filme antecede dois golpes, um de impacto nacional e outro de impacto local. O primeiro deles foi a instituição do poder militar dando fim à democracia no ano seguinte à gravação do filme. O segundo deles compreende à personagem principal do filme, a feira de Água de Meninos, em Salvador, incendiada após o golpe de 64 e, portanto, obrigada a mudar de sítio, dando espaço às venturas dos grandes capitalistas da capital baiana que há alguns anos (o filme retrata) tentavam construir no local da feira um porto.

    Com estas informações em mãos é fácil enxergar o romantismo do relato de Sol sobre a lama, que toma como ponto de partida um argumento escrito por João Palma Neto, assinando a produção de um filme bancado com dinheiro do próprio bolso. Palma Neto era um dos comerciantes de Água de Meninos, levando alguns críticos a enxergar no filme a personagem de Valente (Geraldo del Rey) como inspirada nele próprio. Uma das falas que melhor caracterizam esta personagem é o "depois venha me dizer que eu tinha razão", dito a um bicheiro. A narrativa apresenta dois caminhos de ação política para preservação da feira, e o curso dos eventos eventualmente dará a Valente a razão.

    Num destes dois lados temos um açougueiro (!) que propõe a ação violenta. Desde a apresentação da personagem de Vadu sabe-se que seu destino não será bem sucedido. Tosse bastante (costumeiramente um mal sinal dentro de narrativas deterministas) a ponto de ver paralisado em meio de uma ação. Quando dizem para procurar tratamento ele responde dizendo que tomará umas e outras que passa. Vadu é uma personagem eficaz dentro da comunidade de feirantes, sendo capaz de silenciar Valente nas reuniões do sindicato. Valente é a favor do diálogo, quer colocar matérias nos jornais e ir a Brasília conversar com o presidente (!). Para Vadu o tempo de conversa acabou quando colocaram uma draga aterrando o mar e fechando o porto onde atracavam os saveiros.

    Uma das figuras míticas da cinematografia baiana é Lídio Silva, seja em sua personificação do santo em Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, ou em sua personificação do professor em Grito da terra, de Olney São Paulo. Aqui, Lídio Silva é um dos saveiristas, uma figura filmada de baixo para cima acentuando o grau de importância e sabedoria (dada pelo mar) de uma personagem a quem a feira deixa fazer justiça com as próprias mãos, erguendo-se tão alto e belo quanto os mastros dos saveiros por ele capitaneados.

    O filme abre com uma mulher aos gritos correndo de um homem com uma faca na mão. O tom de toda esta sequência é estranhamente cômico (como a abertura animada do filme), com a perseguida atuando com trejeitos dignos do Auto da compadecida. Muitos na feira testemunham a perseguição, mas ninguém impede o subsequente assassínio de acontecer. Apesar de aos primeiros minutos, devido à adição desta sequência, parecer que o filme será um relato policial para buscar o assassino misterioso (nunca vemos sua face), esta sequência de abertura apenas serve para justificar a presença da polícia nos arredores da feira e suas batidas ocasionais. Toda esta trama é esquecida no resto do filme.

    Aos cinéfilos de plantão não será difícil traçar paralelos entre esta crônica da feira da Água de Meninos e a obra do primeiro ciclo de Eisenstein. Não somente em decorrência do uso da montagem, tanto de atrações (na corrida dos feirantes para assaltar a draga), quanto da montagem dialética/ideológica (o corte do estupro de Jurami para o menino ladrão se refugiando na Igreja de São Francisco em sua exuberância ourives). Eisenstein também se encontra na descentralização da trama, permitindo o reconhecimento de várias personagens e suas importâncias individuais para a feira, mas sem fazer nenhuma figura protagonista de uma história sobre a feira, que em último e mais alto lugar é uma história sobre a força construtora do povo. Como o bicheiro diz, deus fez o mundo em seis dias, mas a feira fomos nós que fizemos, palmo a palmo.

    Os ensinamentos de Eisenstein guiam a câmera de Alex Viany por dentro da feira, numa montagem rápida e dinâmica onde cada qual diz para que lado vai, se fica com Valente e o diálogo, ou se com Vadu e a ação direta. O assalto da draga pelos feirantes é uma sequência belíssima, quando eles saem detrás dos barracos, tomando paus no chão e subindo nos saveiros. Próximos da draga, a revelação: foram traídos. A polícia já estava na embarcação aguardando a chegada do povo em revolta, e com a aproximação se posicionam apontando seus fuzis contra homens e mulheres armados com pedaços de pau. O traveling da câmera pelos rostos decepcionados e ainda revoltados, não acreditando que depois de chegado tão perto terão de dar meia volta derrotados, é uma grande imagem. Maior ainda é a imagem da praia acolhendo os paus de uma batalha nunca ocorrida - influência do cinema japonês que embebia Viany à época dessa gravação, a imagem da ausência, do que poderia ser sido. O sufocamento da ação violenta na realização de que o adversário possui o poder vem na imagem de um Vadu sentado aos destroços de uma batalha que se perdeu no devir, procurando por ar.

    Mesmo depois deste confronto, o romantismo de Sol sobre a lama aponta para Valente. Suas ideias de buscar diálogo e iluminação do público da capital sobre a situação da feira culminam no encerramento das atividades da draga aterrando a praia. Curioso para um espectador de 2021 enxergar a ingenuidade do relato. Quem impediu o ataque à draga foram as forças do estado. Quando pressionadas pela opinião pública, as forças do estado e do capital privado dão um passo atrás. A vitória de Valente e dos feirantes da Água de Meninos não poderia ser menos curta. Não se apresenta em filme - assim como a culminação do levante grevista em Odessa, em 1905, não culmina no final de Encouraçado Potemkin. Por isso iniciamos esta crítica mostrando a riqueza deste filme para a compreensão da intelectualidade de esquerda do Brasil.


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sábado, 6 de março de 2021

High Sierra, 1941, Raoul Walsh



[atenção, este texto contém revelações da trama do filme]

Roy Earle (Humphrey Bogart) recebe um perdão não explicado vindo diretamente do governador. Qual poderia ser a motivação do governador em conceder tal indulto a um ladrão de bancos convicto, que assim que sair da prisão será levado até seus comparsas para planejar mais um roubo, desta vez de cofre num hotel na costa leste dos EUA?

O roteiro do lendário John Huston, em parceria com o autor do romance que gerou High Sierra não responde a estas questões. O que fica estabelecido desde o princípio é que Roy Earle é um bandido de cara muito bem conhecida por aquelas bandas, e precisa de novos ares para poder atuar.

Passando por uma fazendinha, onde aparentemente cresceu, Roy encosta o carro para sentir o ar e conversar com um homem encostado numa cerca: é a idílica vida no campo. Um menino passa por ali com uma vara de pescar no ombro. Roy pergunta se pegou algum peixe, o menino nega. Algo nessa conversa desperta a memória do homem simples a descansar sob a sombra: sua expressão transtornada indica que Roy tem que partir rapidamente. Não é mais uma cidade onde ele encontraria a paz para repouso, nem sequer para uma conversa rápida sobre qualquer banalidade.

A banalidade é um sonho que Roy busca para sua vida, o típico bandido de coração mole, mas pulso firme na hora de seus trabalhos fora da lei. Assegurado pelo roteiro de Huston, a fuga de Roy em direção à vida do homem comum traduz-se por meio do encontro com uma família de roceiros a mudar de vida. Estão indo junto com a neta para Los Angeles. Percebendo que aquelas pessoas desconhecem por completo seu passado, Roy se aproveita, apresenta-se ao trio apenas como “Collins”. Mais tarde o filme cometerá mais um erro de roteiro ao fazer com que o segundo encontro de Roy com o patriarca da família seja marcado pelo avô chamando-o de “Roy”, o que até então não lhe havia sido dito.

High Sierra se apresenta assim como um filme de fuga, marcante pela cena de perseguição e tentativa de fuga na porção final do filme, mas especialmente por fuga das personagens de suas próprias personas. Mas tal como o cachorro Pard está lá para mostrar, a história de todas elas já estão destinadas a um caminho do qual não podem fugir.

Roy tenta escapar de seu inevitável destino de bandido. Enquanto planeja o roubo e espera para que receba o sinal verde para atacar o hotel, visita a família de Velma apenas para vê-la. Cria para a jovem uma imagem de sonho. Ela seria a moça decente, inocente, que o levaria a uma vida tranquila em algum lugar retirado da realidade atribulada em que vive.

Maria (Ida Lupino) acompanha os bandidos que trabalharão no golpe junto com Roy. Foi encontrada por um deles num salão de danças. Ela não quer voltar para aquela vida, e também não quer permanecer com os homens que a tiraram de Los Angeles. Em Roy ela enxerga essa possibilidade de fuga. Passa a dormir em sua cabana, acompanha-o para o assalto, e fica com ele na fuga. Alimenta o sonho de Roy de finalmente poderem viver uma vida tranquila com o dinheiro do assalto. O último assalto de que tanto falam os bandidos de coração mole dos filmes de roubo.

Velma (Joan Leslie) aparenta ser a boa moça, o sonho da vida tranquila numa casa afastada, de Roy. Desde a primeira vista ela flerta com ele. Raoul Walsh não se furta a mostrar os pequenos movimentos da moça aproximando-se de seu anti-herói. Sem sair do carro em seu primeiro encontro, Velma penteia o cabelo para parecer mais bonita a Roy. No segundo encontro, salta do carro mostrando seu pé (em plano detalhe) manco para que Roy se apiede de sua situação.

Aparências que desmoronam as concepções que as personagens fazem deles mesmos. O durão Roy logo acolhe Marie e o cachorro Pard em sua cabana, nas montanhas, onde seu bando se refugia antes do assalto. Ele paga pela cirurgia de Velma, que tão logo vê o sucesso da operação revela que sua vida não será com Roy: ela quer viver a juventude.

Não há um verdadeiro julgamento do filme quanto à mudança de Velma. Ela recusa Roy, diz que quer viver a vida, dançar toda noite como não pode fazer antes, viajar por aí. Seu avô a abraça, compreendendo-a. Quem não a compreenderia?

Enfim, chega o dia do assalto. Um policial entra no hotel na hora errada. Saca um revólver, atira em Roy, que atira de volta. O policial é morto, os comparsas de Roy morrem quando o carro vira durante a fuga com um sobrevivente: o atendente do hotel, comparsa dos bandidos. Será ele o responsável por entregar a identidade do assassino aos policiais. Não tarda para que a foto de Roy esteja estampada nos jornais da costa leste também, fazendo de seu rosto reconhecível por qualquer um.

Roy recebe a chamada para pegar o dinheiro pela sua parte das joias roubadas. No mesmo momento descobre que seu rosto está estampado nos jornais. Sua cautela é tamanha que faz com que Marie e Pard peguem um ônibus: a matéria do jornal descreve o trio viajando junto. Perante tamanho cuidado, soa implausível a parada de Roy numa tabacaria para comprar cigarros, a caminho de pegar seu dinheiro. Obviamente, seu rosto é prontamente reconhecido, iniciando a perseguição final.

Esta é uma das cenas mais memoráveis dos filmes de assalto. O carro de Roy corre por estradas de terra, levantando poeira, sendo acompanhado por motocicletas e carros da polícia. Os veículos sobem perigosamente ligeiros por pistas de colinas. A câmera é posta em pontos chave para mostrar o perigo de toda operação. Errar o cálculo por pouco e o carro pode escapulir da estrada, sendo engolido pelo precipício.

A rapidez da ação não dá tempo para tanta preocupação com carros perdendo seu caminho. Não estamos a ver um daqueles filmes em que o bandido possui todos os recursos enquanto carros policiais batem em tudo, explodem, caem de ribanceiras.

A história de Roy Earle está toda desenhada para que seu final seja tão cerrado quanto o topo da montanha onde ele se refugia. Tentando escapar da polícia pelo único caminho que lhe parecia possível, a personagem de Bogart também se encurrala num caminho sem volta.

A estrada termina e ele não tem para onde correr senão subir a montanha com armas em punho. Consegue um bom lugar onde ficar entrincheirado, de onde pode atingir os policiais em sua perseguição, mas não pode ser atingido. Lá ele fica por uma noite inteira, sendo procurado por holofotes que asseguram sua manutenção no mesmo lugar (esta sequência certamente teve alguma influência na perseguição da montanha, em Contatos imediatos do terceiro grau).

Ouvindo a história do bandido cercado na montanha, Marie desce do ônibus e vai até o sítio do confronto com Pard. Um jornalista identifica-a, é a mulher que acompanhava Roy Earle. A polícia a mantém sob custódia, para que ela convença Roy a se entregar, mas ela recusa. Serão os latidos do cachorro que farão a identificação da presença de Marie na montanha, desguarnecendo Roy de seu lugar de segurança.

Desarmado, Roy é alvejado por um atirador de elite. Encontra sua liberdade uma vez que reconhece a incapacidade de experimentá-la a fundo enquanto estiver debaixo desta persona. Seu rosto é conhecido por todos, sua figura de durão, de bandido nunca o abandonarão. Marie e o cachorro são a desculpa para que a vida idílica buscada por ele finalmente se concretize de modo radical através da morte – num sentido cristão, seria sua verdadeira libertação, por meio do amor encontrado em Marie e Pard.

A imagem final de Roy é velada por Walsh. Seu corpo desceu rolando pelas pedras até parar junto a um arbusto seco. Não vemos seu corpo da cintura para cima, apenas suas pernas. Este é o princípio do processo de liberdade definitiva de Roy Earle, o abandono da imagem batida do bandido, da identidade de fora da lei que o perseguiu de costa a costa do país.

Tal como a pergunta esdrúxula de Patricia Franchini perante o corpo de seu amante morto ao final de Acossado (qu’est ce que c’est déguéulasse), Marie pergunta ao jornalista “what does it mean when a men crashes out?”, desta vez recebendo uma resposta: significa que ele está livre, responde o jornalista.

Curioso encontrar nos cabelos de Marie o laço que em Velma eram sinal de sua inocência. Marie, chorando o amante morto, é inocentada pelo liberto. As máscaras finalmente caem, revelando a candura da maldade.


segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

A metafísica da cinefilia - lançamento do livro

 


Apresento aos leitores deste blog meu livro de estreia, sobre cinema.

Nele, procuro desenvolver uma teoria abrangente acerca do espectador de cinema, fundamentando na metafísica de Henri Bergson. Desta fundamentação surge a busca pela compreensão da cinefilia como uma emoção.

Espero que seja do agrado dos cinéfilos que acompanham as postagens, cada vez mais raras, deste sítio.

O livro pode ser baixado gratuitamente no site da editora. Deixo aqui o link para acesso. Também pode ser encomendado impresso.

A Metafísica da Cinefilia

Compre a versão física aqui

Na imprensa:

Jornal Grande Bahia

Livr'andante

Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia

Acorda Cidade

Canal Agenciamentos Contemporâneos

Laboratório de Ensino de Filosofia da UEFS

Rebeca - Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual