segunda-feira, 25 de julho de 2016

A alma em câmera lenta


Negligenciei voluntariamente ao curso de A queda da casa de Usher todos os efeitos plásticos que poderiam permitir o ultra-cinematográfico. Não procurei – se ouso me exprimir assim tão pretensiosamente – o ultra-drama. Em algum momento do filme, o espectador poderá reconhecer: a câmera lenta. Mas penso que, como eu à primeira projeção, ele se surpreenderá com uma dramaturgia assim tão minuciosa. Porque é a dramaturgia a alma própria do filme, de onde provém seu interesse. Estamos, tão sutilmente como em literatura, próximos de reencontrar o tempo perdido.

Não conheço nada de mais comovente como o retardamento de um rosto fornecendo uma expressão. Toda uma preparação anterior, uma lenta febre, que não se sabe se se compara a uma incubação mórbida, a uma maturidade progressiva ou, mais grosseiramente, a uma gestação. Enfim, todo este esforço transborda, rompendo a rigidez de um músculo. Um contágio de movimentos anima a face. As asas dos cílios e o tufo do queixo batendo nele mesmo. E quando os lábios se separam, enfim, para indicar o grito, assistimos a toda sua longa e magnífica aurora. Um tal poder de separação do olho mecânico e ótico fez aparecer claramente a relatividade do tempo. E é verdade que os segundos duram horas! O drama está situado fora do tempo comum. Uma nova perspectiva, puramente psicológica, é obtida.

Creio nisso mais e mais. Um dia o cinematógrafo, o primeiro, fotografará o anjo humano.

(publicado em Écrits sur le cinéma, tomo I, p. 191)

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Ritmo e montagem


            É a este problema da inscrição cinematográfica do tempo a que se relacionam as questões relativas ao ritmo cinematográfico, ao que foi reconhecida hoje como fonte de força estética.
            Se chama passagens ritmadas de um filme, de passagens compostas num tablado onde as lonjuras são estritamente determinadas umas com relação às outras. Para que uma passagem ritmada produza um efeito agradável ao olho, é preciso, para além de suas qualidades dramáticas, que as distâncias das passagens tenham entre elas uma ligação simples. É sobretudo necessário para uma montagem rápida, onde as extremidades de 2 – 4 – 8 imagens criem um ritmo que seja forçadamente destruído pela introdução de um corte de 5 ou 7 imagens. Há aí uma analogia muito evidente com as leis dos acordes musicais.
            Este ritmo das imagens, é preciso dizer, não é mais que o aspecto mais exterior do ritmo cinematográfico. Pondo-o de lado, para além dela, mais importante ainda, é o ritmo psicológico que se traduz pelo ritmo da vida das personagens no écran e pelo ritmo do próprio roteiro.
            Creio que se obriguei meus atores em Auberge rouge a estes gestos lentos, a este olhar de vida sonhadora, foi justamente para buscar um ritmo psicológico condizente com o romance de Balzac. Este ritmo lento, mantido, forçado, que me foi naturalmente muito criticado, não foi, portanto, um erro porque ele contribui em muito, creio, para criar, e desde o princípio de Auberge rouge, uma atmosfera de espera, de mistério, de inquietude, na qual a maioria dos espectadores se deixou levar.
            Esta é a primeira chave da fotogenia: a mobilidade simultânea seguinte às quatro dimensões do espaço-tempo, não se aplica somente aos aspectos exteriores das coisas; está lá também a chave da mais profunda dramaturgia cinematográfica, da qual ainda resta muito a realizar. A pobreza lamentável dos roteiros vem em primeiro lugar da ignorância desta regra primordial: não existem sentimentos inativos, que não se movam no espaço, não existem sentimentos invariáveis, que não se movam no tempo.
         Um drama cinematográfico deveria sempre ser conhecido em vista unicamente desta perspectiva dramática: uma ação determinada por um sentimento que segue seu curso, tanto que o sentimento evoluído por sua vez, tende a se encontrar em contradição com a ação primitivamente determinada. É desta forma que se pode e deve utilizar, no plano mental dramático, a nova perspectiva dos quatro elementos do cinema.


(publicado em Écrits sur le cinéma, tomo I, p. 121)

segunda-feira, 4 de julho de 2016

A essência do cinema


Sendo, um dia, entrevistado por um jornalista, respondo a muitas questões destinadas, creio, ao espírito deste jornalista, para elucidar o mistério da identidade do cinema. E a primeira destas questões era: “Seria, para você, o cinema, sobretudo documentário?”. E eu respondo: “Não. O documentário não é mais que um lado acessório do cinema”.
            A segunda questão do jornalista foi: “Seria para você a grande direção um lado essencial do cinema?”, e respondi a esta segunda resposta do jornalista: “Não, a direção não é mais que um lado acessório do cinema, ao qual credito pouca importância”. O jornalista continua suas questões, porque um jornalista nunca deixa de ter questões, ele pergunta então o seguinte [p. 119]: “Seriam os filmes estilizados ao gosto cubista ou expressionista a essência do cinema para você?”.
            Nesta ocasião, minha resposta foi ainda mais categórica: “Não. Estes não são mais que acessórios do cinema e quase que uma doença deste acessório”. Creio que podemos considerar esta estilização extrema da decoração como capaz de destruir o equilíbrio de um filme para o lucro de um só elemento, de todo modo secundário de um filme: a decoração, para a qual toda atenção é atirada a despesa do cinema propriamente dito. Lembre-se desta palavra que fez parte do programa do teatro de arte livre, em seu princípio: “A palavra cria a decoração, como o resto”. Bem, creio que o cinema de arte, que está nascendo, possui o dever de inserir, em seu programa, esta fórmula: “O gesto cinematográfico cria a decoração como o resto”.
            O jornalista me pergunta ainda: “Seriam os filmes realistas a essência do cinema, para você?”. Nesta ocasião, nada respondi ao jornalista, porque não sei o que seja o realismo em matéria de arte. Me parece que se uma arte não é simbólica, não é uma arte...
            Disse, então, que nem o documentário, nem a grande direção, nem o expressionismo, nem o realismo são a essência do cinema. Não quero dizer com isso que certos filmes, classificados nestes diversos gêneros, não sejam realmente belos filmes. Quero dizer simplesmente que este lado documental, expressionista, realista não é mais que um lado acessório na estrutura cinematográfica destes filmes. Este lado, ainda que acessório, é, para os olhos pouco exercitados, mais aparente que a própria substância cinematográfica e pode enganar, assim, acerca de sua importância real. Quando um prato está muito apimentado, é a pimenta que você mais sente, mas não é a pimenta que o alimenta.
            Passamos em revista alguns condimentos cinematográficos, alguns condimentos da fotogenia. Voltamos ainda e sempre à questão: “quais são os aspectos das coisas, dos seres e das almas, que são fotogênicas, aspectos estes que a arte cinematográfica possui o dever de se limitar?”.
            O aspecto da fotogenia é um composto variante do espaço-tempo. Esta é uma fórmula importante. Se vocês querem uma tradição mais concreta, ei-la: um aspecto é fotogênico se ele se desloca e varia simultaneamente no espaço e no tempo. [p. 120]

1923.


(fragmento de conferência dada em 1923. Publicado em Écrits sur le cinéma, tomo I, p. 119-120.)