quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Fellini sobre Rossellini


"Rossellini foi uma espécie de guarda que me ajudou a atravessar a rua. Não creio que tenha me influenciado de maneira profunda, no sentido geral que se dá a essa palavra. A ele reconheço, em meu interior, uma paternidade como a de Adão: uma espécie de progenitor do qual todos somos descendentes. Listar com exatidão o que herdei dele não é fácil. Rossillini auxiliou na passagem de um período nebuloso, abúlico, circular, para o estágio do cinema. Foi um encontro importante, foram importantes os filmes que fiz com ele, mas como as coisas do destino, sem que de minha parte houvesse vontade ou lucidez. Eu estava disponível para qualquer empreendimento, e ele estava ali.

Se depois tive dúvidas, problemas para aceitar a direção do primeiro filme, foi àquelas lembranças que agarrei para criar coragem"

(FELLINI, F. Fazer um filme. Tradução: Monica Braga. Ed.: Civilização Brasileira. p. 82)

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

O casamento de Carlitos de Mack Sennett (Tillie's Punctured Romance, 1914)


O casamento de Carlitos não é um filme de Chaplin, diferente do que o título pode evocar. É verdade que Chaplin é um dos atores principais da película, mas não é ele o autor deste filme, sendo mais um dos astros da Keystone postos neste primeiro longa-metragem de comédia baseado em uma peça teatral de sucesso na época. Mas a confusão é muito bem compreensível por dois motivos:

Primeiro, a direção fica a cargo de Mack Sennett, o primeiro mestre cinematográfico de Charles Chaplin. Foi por meio de Sennett que o mestre da comédia chegou ao cinema, com um belíssimo contrato. Com a possibilidade de fazer um curta por semana, Chaplin tentou de tudo um pouco, até começar a entender como funciona este dispositivo. As entradas em tela, os posicionamento em frente à câmera, os truques de montagem - a descoberta do movimento. Mas o caminho de Sennett pela comédia era muito limitado, o que faz desta uma obra frágil frente às outras que Chaplin viria a fazer - e isto trataremos mais a frente.

O segundo aspecto é um ponto posto por André Bazin em alguns artigos escritos sobre o cineasta inglês e organizados em livro chamado Charlie Chaplin que conta com prefácio de François Truffaut e posfácio de Eric Rohmer. De acordo com o crítico, Carlitos desenvolve e aperfeiçoa sua psicologia com o passar dos anos. Se conhecemos um Carlitos terno, bondoso, é porque os anos o fizeram ser mais paciente, menos afoito. Em seus primeiros tempos de cinema, Carlitos aparecia como o bêbado, o sujeito desagradável. O homem que flertava com todas as mulheres, tropeçava nas próprias pernas, brigava com todos. Alguns destes aspectos não ficaram para trás, mas amaciaram em seu trato.


Assim, este Carlitos que aparece em 1914 em muito é diferente daquele que conquistaria os corações de espectadores de todas as partes do mundo sete anos mais tarde em O garoto (The kid). Mesmo no bigode que faria sua semelhança com o terrível Hynkel, Carlitos não é o mesmo. Seu chapéu coco não se faz presente. Aqui, a persona cinematográfica de Chaplin é tão somente um trapaceiro, um aproveitador, vestido de acordo com a moda, mas com uma calça consideravelmente mais larga do que deveria ser.

Por ser adaptado de uma peça de teatro, Sennett primeiro apresenta sua protagonista, aquela que nomeia o filme, Tillie (Marie Dressler). Surgida de detrás de uma cortina que cobre toda a tela ela saúda a plateia e, aos poucos, por meio de sobreposições, passa a entrar no personagem, até que somos transpostos para o primeiro cenário do filme: a casa rural onde vive Tillie com seu pai. Como típico dos filmes de Sennett da época, Tillie brica de atirar um tijolo para seu cachorro pegar. Carlitos, que aqui é "o estranho", surge em cena de costas, com fumaça saindo de sua cabeça. Ele vira para se apresentar ao público, fumando, em posição de quem é pouco confiável. Caminhando por uma estrada de terra, o estranho é acertado por um tijolo vindo de fora do quadro, um cachorro aparece correndo para pegá-lo. Corta. Tillie leva as mãos ao rosto: ela acertou o tijolo num homem. Bem no nariz, indica ela.


Pegando o estranho e levando para casa, Tillie e o estranho iniciam um flerte embaraçoso. Ela, consideravelmente maior que ele, acerta-lhe com muita violência na tentativa de ser graciosa. Seu pai não gosta da presença daquele sujeito em sua casa, e manda a filha de volta ao trabalho, do lado de fora da casa. Tillie vai, revoltada. Nesse meio tempo surge um conhecido da família. Cheio de intimidade, ele chuta o traseiro de Tillie, que retribui a ação, de maneira inesperada pelo homem - e deve ter doído, porque ela é muito forte! O recém-chegado e o pai de Tillie realizam uma negociata juntos, na presença do estranho na sala. Ao ver a imensa quantia de dinheiro que o pai guarda na casa, o estranho inicia seus planos. Mas antes, precisa ver onde aquele dinheiro é guardado.

Uma das melhores cenas do filme é a que se segue. Necessitando de apenas um plano, Sennett filma Tillie e o estranho flertando sobre uma cerca de madeira. Ela tenta fazer uma pose graciosa, encostada numa árvore, com os braços levantados sobre a cabeça. Ele chega por trás e a cutuca no sovaco, recebendo um tapa que o leva ao chão - um reflexo desastrado da moça. O que se segue é um exemplo da genialidade dos envolvidos. Por alguns minutos fica a tentativa de manterem-se sobre aquela cerca sem caírem. Ela se desequilibra e se segura nele, ele cai, ela permanece em seu lugar de origem.


Conseguindo conquistar a moça, o estranho a convence a pegar o dinheiro do pai e fugirem para a cidade. Na primeira esquina, o estranho encontra uma mulher de seu passado: Mabel (Mabel Normand). Os dois se juntam naquele golpe, e conseguem ficar com o dinheiro da caipira ingênua. Muito mais acontece, numa sucessão impressionante de gags. Em sua autobiografia, Chaplin comenta este período em que trabalhou na Keystone: todo filme tinha que terminar com os personagens caindo na água. Com seu final previsível, Sennett leva seus personagens para o litoral, para um cais, para que sejam derrubados na água sua protagonista Tillie, os policiais que vão atrás do trio protagonista (que inclui o estranho e Mabel), e até mesmo um carro.

É verdade que se há algo em Sennett que não podemos negar é sua contribuição ao cinema: a permissão cômica do palhaço de fazer sua mímica. Os quadros são sempre abertos - como a descrita cena da cerca - permitindo aos atores trabalharem todo seu gestual. Sem dúvida, é uma contribuição que se mostrou valiosa em todos os filmes posteriores de Chaplin: o artista que tem seu espaço em tela para poder se movimentar. O cinema é aquilo que está dentro do quadro, não somente o dispositivo físico ao fundo da sala de projeção. O movimento surge por meio dos movimentos do mundo e não da trucagem. Mas Sennett possui este problema de enxergar as obras como possuidoras de uma forma que deveria ser seguida para alcançar o riso fácil. O problema delas é que o riso se esgota e envelhecem mal. Algumas cenas são muito engraçadas, mas o desfecho dos personagens caindo no mar parece forçado porque, de fato, o foi. A necessidade de terminar seus filmes com os personagens todos molhados, para que fossem todos ridicularizados, como se durante a trama já não houvesse momentos suficientes para tanto.


[nota: a cena em que o estranho e Mabel vão ao cinema é um sopro de inspiração muito agradável. Assistindo a um filme, que aparece para nós, a dupla se sente culpada por ter roubado o dinheiro de Tillie. E para coroar, há um policial ao seu lado, enquanto eles sussurram o que acabaram de fazer. Talvez um dos primeiros tributos ao cinema já feitos pelo próprio cinema]

domingo, 18 de outubro de 2015

Simão do deserto de Luis Buñuel (Simón del desierto, 1965)


Uma imagem marca os pouco mais de 40 minutos da projeção de Simão do deserto. É a presença de uma coluna, que evoca as construções gregas, no meio da vastidão do deserto. Há muita terra, tudo muito plano, muito horizontal, e de repente aquela presença estranha em meio ao resto da paisagem. Não admira que Gabriel Figueroa, em ultima parceira com Buñuel, repita tantas vezes a panorâmica. Esta ação da câmara parada que gira em seu próprio eixo para mostrar o que há ao redor é o melhor plano para se filmar a horizontalidade que é um cenário desértico como este.

A coluna é alta, estica-se como se tentasse tocar o céu. E talvez seja esta a ideia. A tentativa babélica do homem de tentar chegar ao céu por meio de sua própria força e, finalmente, encontrar o criador. Mas a coluna de Simão não chega ao céu, ele sabe muito bem que esta saga física não o levará ao encontro da divindade. O caminho que resta é espiritual. Simão passa dias, meses, anos, de pé naquela coluna rezando para que possa se aproximar um pouco mais da divindade e se distanciar da humanidade corrompida.


Ainda que esteja no alto desta coluna, Simão não consegue se distanciar da humanidade. A visão em perspectiva que têm os homens somente faz ver que aquele sujeito possui aura santificada. Os homens ajoelham-se em sua frente, beijam seus pés feridos, arrancam pedaços de suas vestes com o intuito de conseguir para si um pouco da graça que abençoa daquele sujeito. Para que não imaginemos o charlatanismo daquele ídolo, Buñuel nos mostra que Simão é capaz de promover milagres. Um homem, em meio a uma multidão de peregrinos, ajoelha-se em frente à coluna do santo. De braços para cima o homem mostra não ter mãos. Sua mulher é quem pede por ele que Simão interceda perante o divino para que o milagre seja promovido. E, assim, a vontade dos espectadores de dentro e fora da tela é respondida: Simão faz crescer duas mãos nos braços daquele homem que as tinha perdido por roubar. O que acontece na sequência desta cena é que nos mostra que esta não é uma obra para louvar aquele sujeito que permanece de pé sobre uma coluna ou uma divindade invisível e onipresente. Aquele ladrão que tinha se curvado em frente ao ídolo pedindo-lhe a restituição de seus braços mostra que não mudará seu comportamento somente porque fora fruto de um milagre. Ele não rouba (ainda), mas é grosso com as outras pessoas e rude com os filhos. O milagre passa a ser coisa do passado. O milagreiro, um papai Noel que aparece para nos dar presentes, mas que depois disso cai no esquecimento. (Seria Simão Deus?, a quem as pessoas recorrem quando necessitadas? As igrejas têm ganhado um caráter de utilidade: venha para conseguir o que quer, cura, conseguir emprego...)

Mas Simão não se preocupa com isso. Promove o milagre e conversa com as pessoas do alto de sua coluna numa clara ação de quem quer deixar a vida mundana dos desejos carnais, das necessidades. Uma das imagens mais comuns do cinema de Buñuel é mostrar os homens enquanto animais por meio de suas necessidades carnais, que se materializa no ato de comer. Se apresenta desde seus primeiros filmes surrealistas mudos até os mais famosos em sua fase francesa dos anos 1970. O homem se vê como a mais especial das criaturas, mas ainda necessita se alimentar, defecar, nesta ação animalesca natural. Animal que é tratado como objeto, o que pode muito bem se voltar contra o homem - Simão se torna objeto para os adoradores em busca de milagres.


Num embate entre o divino e o animalesco, o filme diferencia seu modo de apresentação por meio de ângulos bem simples: plongée e contra-plongée. O primeiro, filmando de cima para baixo, o segundo, de baixo para cima. Quando Simão conduz as orações com o grupo de romeiros o plongée pontua a sua proximidade com a humanidade. Simão é o sujeito que necessita trazer esta palavra do alto para os pobres e degenerados humanos. Mas eis que ele se funde ao céu quando passa a falar como se fosse, ele próprio, uma divindade. O diabo passa em forma de mulher e um dos padres não percebe. Simão, dotado desta percepção superior, é filmado em contra-plongée como possuidor da palavra divina e nota a presença transformada de seu suposto inimigo.

O diabo aparece em diversos momentos. Posta em forma de mulher para tentar o homem em seus desejos carnais, o diabo constantemente aparece no mesmo nível que os homens: no chão. Tenta diferentes facetas, diferentes figuras, para tentar ludibriar Simão no alto de sua coluna de pedras. Os homens tentados pela carne lhe ofertam comida. Ele, que já começava a esquecer de suas necessidades enquanto homem, passa a se lembrar, mas tenta não atendê-las. E é assim que o diabo aparece e lhe engana por mais tempo. Fingindo ser a divindade que Simão tanto busca, o diabo o ludibria. Não por muito tempo. Uma vez a mascara cai, Simão se dá conta de que aquele não é o ser que ele tanto busca.


Quando o diabo se apossa de um dos padres que tentam jogar os pregadores contra Simão, sua mãe, sempre ali presente, ajoelha-se numa reza. À sua frente, dois formigueiros abertos e várias formigas correndo para fora. Ela passa a mão e tapa com areia. É a tentativa de contenção do mal que aflige os homens naquele momento. Será que é permanente? Buñuel mostra que não. O diabo e Simão embarcam num avião que sobrevoa o deserto e chega a Nova York. Num bar jovem, vestidos como a intelectualidade beat, o diabo apresenta a Simão a dança carne radioativa, a ultima dança. Simão diz querer voltar para casa, mas o diabo diz que já há outro em seu lugar. Agora, ele terá que aguentar até o fim naquele baile.

Aquela dança dos corpos que se remexem como em agonia, num grito para expulsar certos sentimentos que pouco compreendem, mostra-se o ultimo refúgio da humanidade. O diabo sai a bailar, também ele condenado com o fim da humanidade - uma vez expurgada a raça humana, vão-se embora todos os seus ideais e ideias. Os ídolos são repostos, Simão é pouco necessário nesta luta de salvação da humanidade - já lhe dizia um dos padres. Ele é mais um em meio à multidão dançante, alucinada, jogada em meio ao caos desordenado da pista de dança. Que poderia ele fazer, agora que já não tem mais lugar no mundo? Quem sabe juntar-se àquela multidão de jovens que dançam despreocupadamente, simplesmente querendo desfrutar aquilo que de agradável e palpável tem ás mãos. Porque, morrendo a humanidade, morrem deus e o diabo.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Depois da Chuva de Cláudio Marques e Marília Hughes (2013)


Existem alguns planos muito curiosos em Depois da chuva, que parecem se repetir ao longo do filme. A câmera permanece estática e no interior da imagem quase não há movimento. Os personagens ficam sentados ou de pé, fazendo ou esperando alguma coisa acontecer, o que não necessariamente pede a eles a sua mobilidade. A duração dos planos é razoavelmente longa, permanecem em tela quase que o mesmo tempo que as discussões dos adolescentes na escola. Mas nelas há algo de diferente. Um sentimento que se escoa por entre cada frame projetado na tela. Ao longo da cena soa uma música, um punk, gênero facilmente associado aos anarquistas oitentistas que se tornou hino graças a algumas bandas bem lembradas no filme - os álbuns dos Sex Pistols aparece com certa constância nos diálogos e nas paredes.

O típico a se fazer quando há na trilha sonora de um filme uma canção punk ou heavy metal é acelerar o ritmo do filme. Colocar as imagens numa agilidade semelhante àquela da canção. Isso se faz pelo movimento de câmera, pelo movimento no interior das imagens ou mesmo pela montagem acelerada em que os planos duram segundos ou menos que um segundo em tela. Com algumas exceções (como as cenas dos encontros de Caio com sua namorada), Depois da chuva não segue este padrão de construção fílmica. As imagens são estáticas - em algo que me lembrou especialmente o cinema de fluxo oriental de Tsai Ming-liang, apesar de serem propostas radicalmente diferentes - enquanto a música é posta demandando a agilidade, a velocidade. A música é explosão enquanto a imagem é calma.


Este dualismo é muito sensível ao trabalho realizado pela dupla de diretores em seu debute em longa-metragem. O que demonstra que os cineastas pensaram muito bem em como compor seu filme antes de transformá-lo em realidade. Isto porque estas cenas em que se dá o dualismo desenvolvem uma emoção no espectador que pode não ter seu significado bem compreendido, mas que será sentida. A proposta do filme é de realizar um registro em primeira pessoa de um momento histórico. Mais do que falar do Brasil em seu momento de abertura política, o filme busca o impacto da história sobre o indivíduo. Ao tratar do indivíduo ele encontra os indivíduos que flutuam ao seu redor: os colegas de escola, os professores, a mãe, os amigos anarquistas.

Os personagens em geral parecem atirados numa inércia que os planos fixos captam bem. Porque, apesar de "inércia" evocar a movimentação - necessária à feitura de um filme -, aqui ele surge como um descontrole (continuo me movimentando mesmo depois de ter tentado parar). A câmera é fixa como se esperasse a ação dos personagens (os anarquistas dizem que tem que agir por conta própria, mas por que não agem?), mas eles em poucos momentos fazem alguma coisa. Quando a câmera se põe em cena como provocadora é porque encontra no mundo quem esteja disposto à ação. E a ação somente surge quando seus personagens resolvem tomar as rédeas de suas próprias vidas. A ação surge no relacionamento de Caio com a colega de escola, que vira sua namorada. E na performance de sua banda num festival na escola.


O papel da câmera aqui passa a ser mais que observar os jovens, mas buscar o sentimento que os guia. Quando o anarquista amigo de Caio descobre-se sozinho em meio à sua batalha política, perde as forças para fazer um pronunciamento em sua rádio de frequência roubada, como ele orgulhosamente pontua. Microfone em mão, sozinho do prédio onde fica o equipamento, ele pergunta se há alguém o ouvindo. Enquanto isso a câmera recua como se sentisse a necessidade de libertá-lo. Mais que isso, registra a sua solidão.

Depois da chuva é um daqueles filmes em que os significados não serão dados ao espectador, que terá que procurá-los em cada quadro. Comecei este texto falando das imagens de pouco movimento ao som de canções punk. Ao ser posta estática, a câmera não somente filma o fato, mas espera que algo se desvele de debaixo daquele envoltório que são as coisas que ela capta. Tal como o Cézanne de Ponty pinta o que há no interior das coisas, a câmera da dupla Marília Hughes e Cláudio Marques capta o que há por trás daquele envoltório chamado corpo. Há uma raiva em Caio contra todo o mundo, mas o que pode ele fazer para apaziguá-la? Entrar para o grêmio estudantil ou pular para a morte de um prédio abandonado?


O filme busca este desvelar do sentimento do jovem que se descobre enquanto ser social. Cria uma trama com tudo aquilo que uma narrativa normalmente pede: um conflito, um romance, uma moral. Mas esta moral de Depois da chuva está muito mais próxima de uma ética política do que a moral de conto de fadas. É uma moral de esquerda desiludida, de uma juventude que já cresceu vendo (e entendendo) as coisas perdendo seu rumo. Depois da chuva se resolve muito melhor no que diz respeito ao desenvolvimento do subjetivo do jovem do que enquanto narrativa para solucionar um conflito originalmente posto. O que poderia surgir como defeito, aparece enquanto provocação. O filme salta para fora da tela para questionar o espectador sobre seu próprio momento político numa análise histórica - e os dados históricos do momento narrado nos são dados pelo filme. Cabe a nós, espectadores, fazermos nosso dever de casa.

Originalmente publicado em Revista Sísifo

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Dois homens em Manhattan de Jean-Pierre Melville (deux hommes dans Manhattan, 1959)


Uma das características que mais chamaram a atenção da nova leva de cineastas e críticos franceses dos anos 1950 com relação a Jean-Pierre Melville foi sua independência. Fazia filmes com orçamentos curtos e sempre saía com algum truque de dentro da manga. Nem sempre fazia sucesso, é verdade. Mas nem sempre a falta de público significa a má qualidade de um filme - mesmo que ele busque esta popularidade. E certamente no cinema de Melville tal característica fora logo notada. O diretor queria fazer cinema a todo custo. Começou as filmagens de O silêncio do mar, por exemplo, sem os direitos do livro - jogada arriscada para quem filmava com orçamento apertadíssimo.

Este Dois homens em Manhattan já põe logo de cara o estilo favorito do cinema de Melville. Ouvimos um jazz que insere os créditos iniciais numa aura de perigo típica do gênero noir. Antes que os protagonistas sejam apresentados, uma narração para abrir o filme. Três crianças de diferentes grupos culturais brincam em frente a um prédio, que logo nos é mostrado de cima a baixo como sendo a sede da ONU, em Nova York. Entramos na assembléia para encontrarmos o auditório cheio. A câmera documental varre o local para encontrar alguns dos representantes dos países chave deste tipo de encontro: União Soviética, EUA... Mas o filme francês não nos mostra o representante de seu país. O que se passa?


Em seguida, somos colocados em um escritório. Uma notícia chega: o representante francês não compareceu à assembleia porque está desaparecido. Um jornalista surge. O editor o manda descobrir o que aconteceu e onde está o homem. Na sala, uma moça aparece e ouve a conversa, mas passa despercebida. Sua participação é tão grande quanto a das secretárias que trabalham no escritório. O jornalista deixa o prédio. Logo atrás surge um carro. A música cresce. O automóvel segue o jornalista, mas não acompanhamos a perseguição. No momento seguinte Melville nos apresenta Delmas, fotógrafo que acompanhará o jornalista Moreau.

Delmas é pessoa difícil, como seu apartamento demonstra. Gosta muito de beber e copos e garrafas encontram-se em todos os lugares. Moreau entra em sua casa e ele não percebe. A vitrola toca uma música alta, no meio do chão do quarto-sala. Abrindo os olhos devagar, Delmas saúda o amigo. Nada nos é dito sobre aquela relação, e descobrimos que se trata do fotógrafo de quem Moreau falava com o editor do jornal pelos filmes pendurados na cozinha-laboratório. Uma mulher dorme ao lado de Delmas, mas esta nunca vira para se revelar. Passa o tempo inteiro dormindo. Somente faz menção aos dois homens quando pede uma bebida. Delmas joga uma garrafa na cama, mas ela parece ter voltado a dormir.


A presença destas mulheres será uma constante no filme. O homem a quem procuram já foi fotografado por Delmas em algumas ocasiões. Sempre com mulheres diferentes. Qual delas é a esposa dele? Difícil saber. Mas Delmas sabe quem é cada uma delas, só sabe que nenhuma é sua esposa. Embarcam juntos nesta busca pelo homem desaparecido, e novamente são acompanhados de perto por um carro negro que surge do meio das trevas noturnas de Nova York. O curioso é que, por mais estardalhaço que Melville faça ao mostrá-lo, não sentimos a sensação de perigo com relação àquele veículo. Ele surge, mas somos indiferentes. O que fazemos é imaginar o que poderia ser ele. Poderia ser um grupo que sequestrou o homem e agora está no encalço dos jornalistas? Ou um grupo de bandidos que quer chegar até o homem?

As mulheres das fotografias tiradas por Delmas são facilmente encontradas. Uma é atriz, outra é cantora e outra é dançarina. Nenhuma das três parece ter qualquer informação relevante, embora cada uma delas se sinta perturbada em falar do assunto. A dançarina, por sinal, é a que mais suspeitas nos levanta por sua postura arrogante. Ela se recusa a falar. Mas, de acordo com a fala de suas companheiras de camarim, ela é assim no cotidiano. É numa lanchonete que algo parece estar errado. A atriz, a primeira das mulheres que eles visitaram, tentou suicídio antes mesmo de terminar a peça que apresentava naquela noite. Os jornalistas conseguem chegar ao hospital. Escondidos, entram no quarto da atriz e lhes fazem perguntas. Ela, abalada, revela que o homem que procuram está morto em seu apartamento. Tivera um ataque cardíaco.


Gostaríamos de acreditar que há mais nesta história, muito mais, mas termina nisso. Chegam ao apartamento da atriz e encontram o homem sentado no sofá com a mão no peito, morto. Em sua frente, um copo de whisky ainda por terminar. É curiosa como as coisas se dão. Mas Delmas, que conseguira uma fotografia da atriz no hospital e depois organiza uma cena no apartamento para fotografar o homem em posições comprometedoras, vê seu parceiro e o dono de uma publicação tentando não fazer muito barulho com toda aquela situação. O homem tinha, sim, uma vida cheia de fatos comprometedores, mas um passado de batalha por seu país. Melville, como o personagem do moribundo, lutou na resistência francesa durante a segunda guerra e sua tendência será a de respeitar o companheiro de luta.

Mas e o carro que os seguia? Os três homens retiram o corpo do apartamento da atriz para colocá-lo em seu próprio carro, como se ele tivesse morrido enquanto dirigia. O automóvel que seguia está parado um pouco atrás. Com a partida do trio, uma mulher deixa o automóvel. É a mulher do escritório. Sua mão acaricia o ombro do morto com tristeza. Ela queria encontrá-lo, afinal. Esta revelação tardia nos mostra que a intenção de Melville, apesar de criar certa aura de thriller envolvendo o carro perseguidor, em momento algum nos passa a impressão de perigo. E a revelação ao final certamente resolve certo impasse: não fora incompetência do cineasta de criar uma situação de suspense.


O suspense encontrava-se em outro lugar, na procura pelo desaparecido. Mas há por trás de toda esta história um discurso político. Sim, porque na recusa de transformar o moribundo num degenerado, e manter sua imagem de heroísmo, Melville nos mostra que o herói real é falho e também morre. E que são estes homens que estão à frente das decisões, de parte, dos países. A manutenção desta imagem heroica é necessária para que a visão do passado não seja deturpada. Afinal de contas, de que valeria uma luta de libertação se houvessem depravados de ambos os lados? O caso é que de nenhum dos lados existem homens perfeitos, mas discursos diferentes. É a imagem que permanece por mais tempo, como diz o dono da publicação que encontra a dupla de jornalistas no apartamento da atriz: a matéria no jornal é esquecida, a fotografia permanece. A fotografia possui um discurso mais direto e efetivo. O artigo não. Na luta pela libertação da França da garra dos nazistas, o que permanece em meio ao imaginário popular é, exatamente, a imagem. Torna-se um ato de responsabilidade do produtor das imagens de saber o que fazer com elas. Ao final do filme fica a dúvida posta sobre Delmas: deveria ele vender as fotografias e ganhar muito dinheiro ou defender a moral do criador de imagens?

sábado, 3 de outubro de 2015

Corrida contra o destino de Richard C. Sarafian (vanishing point, 1971)


Após das primeiras publicações na década de 1940, a corrente existencialista do pensamento ganha o mundo nos anos 1950 com a popularização de O ser e o nada de Sartre e os escritos literários de Camus (que sempre disse não ser existencialista, apesar de constantemente vinculado à corrente). Em boa parte, este movimento ganha força por uma aura de pessimismo que o cerca (o que nem sempre é verossímil). Da incapacidade humana de agir. Do esvaziamento do ser promovido por Sartre. Dentre os frutos deste pensamento está a noção de absurdo. Esta se dá quando algo acontece sem explicação. Como a peste que surge e desaparece subitamente no romance de Camus, A peste. Ou o assassinato do árabe em O estrangeiro.

O sucesso do existencialismo somente encontrará o cinema hollywoodiano nos anos 1970. Momento de uma grande ressaca para a juventude que nutriu, por toda a década de 1960, muitas esperanças com relação a um futuro próximo. A década da desilusão marca Hollywood com seu obscurantismo - bem refletido pelas imagens com pouca iluminação de O poderoso chefão de Coppola. Os filmes de anti-heróis surgem. O protagonista é o mafioso ou o racista. E nenhum deles tem para onde ir com suas vidas. Estão entregues à própria sorte.


Corrida contra o destino surge neste cenário e flerta com todas estas temáticas. A narrativa sente a necessidade de construir o psicológico daquele personagem. Mostra-nos suas desilusões. Forma-se não somente a sua figura como também uma imagem daquela revolução de costumes realizada na década anterior. Primeiro, vem a guerra. Kowalsky lutou na guerra. Ferido, foi logo retirado. Tornou-se policial, mas viu que os homens da lei não a cumprem tão bem quanto deveriam. Vai ser pilotos de corridas que, apesar de eletrizante, é extremamente convencional para ele. Por fim, tem um relacionamento com uma garota. Seu amor é engolido por uma onda do mar.

É o filme retrato de uma geração, ao que tudo consta. Uma geração que nasce com uma guerra e que percebe que o amor se perdeu já neste principio. Por isso o filme começa com Kowalski indo até a oficina em que trabalha. Pega um carro para entregá-lo ao dono em São Francisco. Precisa cruzar alguns estados e um de seus amigos diz ser impossível. Fazem uma aposta, naturalmente. Em dois dias, Kowalski diz, estará na Califórnia. Aposta feita, o carro sai em disparada. Cruza não só as ruas como também a noite. Quando percebemos já é dia e o carro não parou de girar em momento algum.


No retrovisor surgem as motocicletas policiais. Um deles faz gesto para Kowalski parar e ele se recusa. É verdade que neste momento ele está sob o efeito de drogas para não dormir. Deve chegar a seu destino o quanto antes. Mas é muito estranha esta corrida dele. Diz levar o carro para o dono, e se arrisca tanto com o automóvel. Empurra o carro para cima dos motociclistas e, mais tarde, contra um carro que lhe chama para um racha. Se o carro não é dele, por que agir desta forma? Por que arranhar a pintura, amaçar a lataria? Tudo o que ele diz é que tem que chegar em São Francisco segunda-feira. Uma garota a quem ele dá carona pergunta: o que tem em São Francisco? Lar, diz ele. Será verdade?

O caso é que Corrida contra o destino soa muito existencialista ao se defrontar com esta aventura de Kowalski. A corrida não tem motivo. É feita para passar o tempo. Um radialista - um cego, que como um profeta, parece enxergar além dos demais - diz que ele é a imagem da liberdade perdida. A figura que mantém viva esta esperança, correndo pelas estradas estadunidenses. Talvez ele realmente fosse, e estivesse em busca desta libertação. Mas talvez ele esteja muito mais tendente a este lado absurdo, como na literatura de Camus. Ele corre porque está vivo e tem que fazer alguma coisa. Precisa preencher sua existência praticando algo. Ele não pensa assim, simplesmente age. Os outros buscam sentido em suas ações. Projetam significados. Nem sempre parecem certos.


Kowalski é triste. Parece ter perdido muito mais que o amor, como as imagens de seu passado nos mostram. Parece ter percebido que se tornou coisa, como o carro. Avança em direção aos outros veículos nas pistas, sempre conseguindo se desviar no ultimo segundo. Mas sua corrida, como o título brasileiro diz, não tem destino. E a cena do deserto é muito significativa. Ele corre de um lado para outro, passa por cima das linha que seus pneus haviam deixado para trás, sem encontrar a saída. Sem encontrar um destino. No fim das contas, talvez ele simplesmente não tenha um. Está fadado a viver dentro de suas limitações, fazendo-se. Desenvolvendo quem ele realmente é.

O motorista encontra uma brecha entre dois tratores. Acredita que por eles pode passar, mas se choca. Explode. O carro que rasgava as estradas e o deserto agora é uma bola de chamas. Richard Sarafian parece mandá-lo para um plano espiritual, ao que indica pela música de encerramento. Se no mundo material não há muita saída, apesar de parecer que tem como a brecha indicava, quem sabe apostando na vida pós-morte? Esta é uma aposta para quem firmemente acredita que este é um caminho. Enquanto isso, melhor nós, vivos, tratarmos de colocar algum conteúdo no vazio que é nossa existência.