O cinema mudo conseguiu se mostrar como o período mais fértil da história do cinema até aqui. Isso não somente pela proliferação de escolas artísticas - surrealismo, impressionismo, expressionismo -, mas também por um princípio básico que o guiava: a imagem. Esta está sempre presente numa narrativa, seja no teatro, no cinema, numa pintura ou num livro. A imagem pode ser tanto descrita - no caso de um livro - como pode ser apresentada em sua concretude - no caso do cinema. A pintura é capaz de fazer um recorte e mostrar aquela imagem por si só: dela será expelida uma aura que levará o observador mais atento a imaginar os pormenores, a chegada dos personagens até ali, seu desenvolvimento e até seus sentimentos. Isso tudo também é feito pelo cinema que possui o um adendo muito importante: o tempo. A trama evolui e envolve o espectador em seu desenrolar temporal.
O homem que ri de Paul Leni é uma daquelas obras que já entraram para o mundo dos clássicos há muito tempo. Isso porque ela foi capaz de assumir para si este papel central da narrativa cinematográfica: a imagem. Baseado num romance do célebre escritor francês Victor Hugo, Leni soube captar na obra literária aquilo que de maior valor teria para uma adaptação cinematográfica: novamente, a imagem. É no valor dado a esta imagem que se registra a beleza, competência e perenidade de uma obra de arte na história do cinema. A adaptação de uma obra literária poderia facilmente levar Leni a fazer de sua obra um conjunto de textos, mas o que temos neste filme é o contrário - e aquela narrativa que um dia fora literatura (a arte das palavras) se tornou a arte das imagens em movimento. A imagem do sorriso de Gwynplaine é a marca central da obra, aquilo que leva o espectador a lembrar-se dela por muito tempo após de sua exibição.
Esta imagem que salta à tela poderia ser muito bem reproduzida numa pintura, e disso não resta dúvidas. E não somente o sorriso abertamente macabro posto à força naquele rosto melancólico, como também esta aura de melancolia. Este desnudamento é próprio à pintura e muito já se foi dito a este respeito - para quem tiver curiosidade, indico a leitura de A origem da obra de arte de Martin Heidegger. Mas uma coisa pode escapar às mãos do pintor e aos olhos do observador: a história do retratado. E neste caso a melancolia do homem que carrega eternamente um sorriso em seu rosto se deverá muito à sua vivência cotidiana: coisa que a literatura deixaria muito bem exposta.
O cinema, por fim, seria capaz de fazer este duplo encontro da imagem solidificada com a historicidade do personagem retratado. E assim fará Paul Leni em seu filme: acompanharemos a trajetória de Gwynplaine desde a decisão do rei de pôr-lhe no rosto o sorriso até o seu momento de aceitação própria. Mas neste primeiro momento, sendo o protagonista uma criança, as decisões não são tomadas por ele, e sim por aqueles maiores: e devido a uma postura política de seu pai frente ao rei da Inglaterra, ele é entregado a um grupo de bandidos que deformam pessoas e animais para fim de entretenimento em circos de horrores.
Durante sua infância, episódio que será muito caro ao desenrolar geral do filme, surge ao espectador uma marca que será mantida pelo resto do filme: a vergonha de Gwynplaine de seu sorriso. Ele sempre procura cobri-lo com um pano para que evite as gargalhadas das pessoas que sempre o tratam como um palhaço. Poucos são aqueles capazes de enxergar o que há por trás daquele sorriso, ainda que de seus olhos desçam lágrimas: afinal de contas quando muito rimos, tendemos a lacrimejar. Cresce, desta forma, o poder da imagem cinematográfica em sua capacidade de mostrar ao espectador o além daquela figura. Sim, o que temos em tela é um rosto de um palhaço, mas seu riso parece sempre mórbido e em momento nenhum rimos dele. Isso porque a inscrição melancólica do palhaço infeliz está sempre presente na figura de Gwynplaine.
Se aqui no Brasil temos o ditado "quem vê cara não vê coração", O homem que ri certamente vale como uma referência. Isso porque aquela imagem de um sorriso eterno, em raros momentos será capaz de mostrar algo além daquele sorriso, de mostrar os reais sentimentos do personagem. E uma das pessoas que serão capazes de compreender além desta expressão permanente é Dea, amiga e companheira de Gwynplaine que o acompanha desde sua infância. Sendo ela cega, o sorriso de seu amante será o ultimo fator que a levará a interpretar o estado de espírito de Gwynplaine. Ela e, claro, a câmera de Paul Leni. Esta, que tal como as pinceladas de um bom pintor, deixarão marcadas na tela o além-sorriso (a imagem-ambiguidade). Gwynplaine sofre por não ser compreendido em sua real figura, e fazendo eco aos diversos filmes que retratam, com a permissão do termo, "aberrações" a exemplo de O homem elefante, ele grita: Deus me fez homem! Não importa se o rei fez dele palhaço ainda criança ou que a rainha o queira como Lorde, ele é um homem e quer ser entendido como tal. O sorriso é um mero detalhe.
Neste ponto, Paul Leni nos escancara que a imagem é sempre pertencente de algo a mais, algo que fica velado e que somente pode ser desvelado por uma mente sensível capaz de compreender este além-imagem (o artista). Quando Gwynplaine cobre seu sorriso, este ato de velar o seu exterior por vezes deixa exposto seu interior (imagem acima). E nestes momentos o sorriso será uma existência fora do plano, ainda que ele esteja no centro do quadro, coberto. Os reais sentimento de Gwynplaine são velados por seu sorriso perene que, quando coberto, desvela suas reais emoções - aquelas que somente a câmera é capaz de captar, mesmo quando seu sorriso surge estampado no rosto. Mas esta imagem escancarada que Gwynplaine mostra sempre pode ser motivo de comoção também. É o que resultará no apoio da população quando o Estado, a mando da rainha, sai em sua captura por desrespeito à sua comandante. Independentemente de enxergar sempre um sorriso no rosto de Gwynplaine e nada mais que isso, a população ainda gosta muito dele e quer seu bem - tal como quer o bem de Carlitos nos filmes de Chaplin. A imagem de Gwynplaine faz com que as pessoas o amem, e se ele pode ser amado mesmo com aquele sorriso, que dirá Dea, que nunca o vê?
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