Existe sempre um risco ao tratar do passado numa película cinematográfica. Porque a tendência do artista é a de fazer um espetáculo, o que por vezes pode fazê-lo deslizar em seu compromisso com o passado que procura retratar em tela. O cinema pede esta espetacularização e não são poucos os que atendem ao seu pedido. Em Reds existia um risco semelhante, em especial por ser de um país que tão mau viu e comentou a revolução que seria retratada na tela. Mas não é isso que seu autor faz. Ele veste a camisa do cinema e de seu protagonista real, Jack Reed, para que possa contar um pouco da história recente dos Estados Unidos, da antiga União Soviética, e por quê não?, do mundo. Porque como Reed anuncia em seu livro que o fez famoso em todo o mundo, a revolução dos sovietes abalou todo o mundo, e não só terras siberianas.
E nesta escolha por seu personagem é que Beatty já encontra seu primeiro diferencial no momento de retratar a revolução de 1917. Porque como o próprio ator e diretor da película, o protagonista Jack Reed é um jornalista estadunidense que vai até a Russia para poder testemunhar aquele momento que ele sabia ser histórico. Esta viagem possui um caráter mais que documental, ele possui aquela visão do estrangeiro, aquela perspectiva de quem gosta do que vê, mas não é diretamente envolvido. É a perspectiva de quem está de fora do jogo e compreendendo as suas regras. É nesse ponto que entra um caráter muito interessante do filme de Beatty. A revolução de 1917 já não era novidade na representação cinematográfica, cabendo até mesmo ao mundo dos grandes clássicos do cinema com aquele que talvez tenha sido o maior cineasta a filmar uma representação da revolução: Serguei Eisenstein. Outubro é exatamente uma destas obras feitas no calor das emoções de uma população empolgada com os feitos recentes. Mesmo que passados dez anos do seu sucesso, ainda havia motivos para comemorar. E as comemorações ficaram para nós no formato de filmes em que massas de pessoas surgem em cena no simples desejo de poder aparecer naquela reconstrução da história que eles muito orgulhosamente podem dizer que participaram.
Por que faço este passeio ao invés de tratar diretamente o filme de Warren Beatty? Porque os soviéticos no momento pós-1917 desenvolveram um cinema inovador em que encontraram as suas formas próprias de representação que diferem do cinema do resto do mundo. Era uma estética que lhes era própria e que passou a ser utilizada em diversos de seus filmes. A grande característica desta estética é uma busca pelo realismo, mas com contornos gigantescos. Difere radicalmente daquele realismo que ficou conhecido depois do neorrealismo, de uma câmera no ombro. O realismo soviético buscava a vida das pessoas, contava histórias nas ruas, mas sua estética, seus movimentos de câmera e sua montagem eram muito sofisticados e complexos. Eisenstein, Kalatozov, Dovzhenko são exemplos de grandes cineastas que construíram esta estética realista própria do cinema soviético.
O cinema hollywoodiano, apesar de grande favorável de fazer este embelezamento excessivo dos filmes, não tinha tanta relação com o cinema dos soviéticos. Enquanto na URSS o cinema se voltava ao povo, às massas, tinha que falar de modo que universalizasse o discurso, ainda que focado em um único personagem, em Hollywood os filmes se voltavam para a interioridade dos personagens. Busca-se o embate interior dos personagens, seus conflitos e contradições. Tudo aquilo que vá dar maior impressão de fazê-lo mais humano. Uma das críticas que Tarkovski mais recebia em sua terra natal era a de fazer filmes muito centrados em si, ao invés de possuírem este compromisso com o todo. Este embate surge em Reds no modo como poderia fazer a estética de seu filme ser bem sucedida.
Beatty cede aos instintos que o guiaram dentro de Hollywood durante toda sua carreira e se centra em seus personagens. Fala de sua interioridade, de suas paixões e contradições. Busca este lado subjetivo que seria deixada de lado se filmada por um soviético. Mas ao tratar de um entusiasta da revolução e militante comunista, um filme que seguisse somente sobre estes trilhos terminaria por descarrilhar. Não é o que acontece. Isso porque Beatty encontra um meio muito eficaz de manter uma equidade entre o discurso que constrói e defende, com aquele que desenvolve para mostrar sua narrativa. Jack Reed é antes de qualquer coisa um escritor, um jornalista. É por este motivo que ele é bem visto pela direção do Partido em Moscou. E como fazer numa obra que transpira contornos de ficção possuir este caráter realista que possuíam as obras soviéticas que falaram da revolução e que o próprio personagem retratado pediria? É assim que durante a película Beatty insere entrevistas de quem viveu a época retratada e pode dar seu relato de que, "sim, aquilo de fato aconteceu". E é por meio destes relatos que ele guiará sua obra.
Esta escolha do diretor acerta em cheio o alvo. Porque Reed é jornalista e quando escreve sobre a revolução, não o faz somente se baseando naquilo que lhe diziam os enviados. Ele mesmo viu. E isso as entrevistas que surgem entre cada episódio consegue suprir. Mas na ausência de uma ilustração destas memórias surge o caráter fictício do cinema, o lado que pode parecer fantástico. Parece fantástico porque Beatty não filma como num filme realista nos moldes aos quais os espectadores se acostumaram depois do neorrealismo. O filme se guia pela memória, ainda que consiga seguir uma narrativa muito bem estruturada em linearidade.
Em determinado momento pode ser esperado do espectador que o filme vá fazer algum tipo de demonstração de cansaço com relação àquela utopia. Mas não acontece. Estes sinais que se apresentam nos personagens é o cansaço comum de quem está na frente de algo que dá muito trabalho de ser erguido. E é neste momento em que Beatty faz um de seus movimentos mais ousados: os argumentos pró e contra revolução são postos em equidade. Existe a estadunidense desestimulada com os rumos que tomava a revolução e que dá motivos muito bons pelos quais desacreditá-la, e por outro lado são postos os motivos pelos quais a revolução apresenta suas fragilidades. Se há aqui uma exaltação da revolução de 1917, isso se dá pela escolha de um protagonista que é seu grande entusiasta. E se o filme buscará decifrar seu subjetivo para compreender sua relação com sua esposa, Louise, ele não poderá negar sua igual paixão pela causa que luta.
Aos cinéfilos fica o confronto entre duas escolas de cinema que filmaram um mesmo episódio. O que parece equipará-las é exatamente este aspecto da perspectiva, dita acima. Reed é estadunidense que vai a Moscou e presencia a revolução. Beatty é o estadunidense que filma com o maquinário hollywoodiano a epopeia soviética. Os soviéticos filmavam partindo de sua própria perspectiva, dentro de sua cultura, com sua estética. Beatty filma com a estética de seu cinema, sobre um sujeito de sua terra, compartilhando com este a visão do estrangeiro sobre uma terra e sua aventura da busca da construção de um mundo melhor. Com isto, Reds torna-se uma obra tão curiosa de ser vista sobre este preciso momento da humanidade, quando a leitura da obra de seu protagonista, Dez dias que abalaram o mundo.