sexta-feira, 27 de março de 2015

Reds de Warren Beatty (1981)


Existe sempre um risco ao tratar do passado numa película cinematográfica. Porque a tendência do artista é a de fazer um espetáculo, o que por vezes pode fazê-lo deslizar em seu compromisso com o passado que procura retratar em tela. O cinema pede esta espetacularização e não são poucos os que atendem ao seu pedido. Em Reds existia um risco semelhante, em especial por ser de um país que tão mau viu e comentou a revolução que seria retratada na tela. Mas não é isso que seu autor faz. Ele veste a camisa do cinema e de seu protagonista real, Jack Reed, para que possa contar um pouco da história recente dos Estados Unidos, da antiga União Soviética, e por quê não?, do mundo. Porque como Reed anuncia em seu livro que o fez famoso em todo o mundo, a revolução dos sovietes abalou todo o mundo, e não só terras siberianas.

E nesta escolha por seu personagem é que Beatty já encontra seu primeiro diferencial no momento de retratar a revolução de 1917. Porque como o próprio ator e diretor da película, o protagonista Jack Reed é um jornalista estadunidense que vai até a Russia para poder testemunhar aquele momento que ele sabia ser histórico. Esta viagem possui um caráter mais que documental, ele possui aquela visão do estrangeiro, aquela perspectiva de quem gosta do que vê, mas não é diretamente envolvido. É a perspectiva de quem está de fora do jogo e compreendendo as suas regras. É nesse ponto que entra um caráter muito interessante do filme de Beatty. A revolução de 1917 já não era novidade na representação cinematográfica, cabendo até mesmo ao mundo dos grandes clássicos do cinema com aquele que talvez tenha sido o maior cineasta a filmar uma representação da revolução: Serguei Eisenstein. Outubro é exatamente uma destas obras feitas no calor das emoções de uma população empolgada com os feitos recentes. Mesmo que passados dez anos do seu sucesso, ainda havia motivos para comemorar. E as comemorações ficaram para nós no formato de filmes em que massas de pessoas surgem em cena no simples desejo de poder aparecer naquela reconstrução da história que eles muito orgulhosamente podem dizer que participaram.


Por que faço este passeio ao invés de tratar diretamente o filme de Warren Beatty? Porque os soviéticos no momento pós-1917 desenvolveram um cinema inovador em que encontraram as suas formas próprias de representação que diferem do cinema do resto do mundo. Era uma estética que lhes era própria e que passou a ser utilizada em diversos de seus filmes. A grande característica desta estética é uma busca pelo realismo, mas com contornos gigantescos. Difere radicalmente daquele realismo que ficou conhecido depois do neorrealismo, de uma câmera no ombro. O realismo soviético buscava a vida das pessoas, contava histórias nas ruas, mas sua estética, seus movimentos de câmera e sua montagem eram muito sofisticados e complexos. Eisenstein, Kalatozov, Dovzhenko são exemplos de grandes cineastas que construíram esta estética realista própria do cinema soviético.

O cinema hollywoodiano, apesar de grande favorável de fazer este embelezamento excessivo dos filmes, não tinha tanta relação com o cinema dos soviéticos. Enquanto na URSS o cinema se voltava ao povo, às massas, tinha que falar de modo que universalizasse o discurso, ainda que focado em um único personagem, em Hollywood os filmes se voltavam para a interioridade dos personagens. Busca-se o embate interior dos personagens, seus conflitos e contradições. Tudo aquilo que vá dar maior impressão de fazê-lo mais humano. Uma das críticas que Tarkovski mais recebia em sua terra natal era a de fazer filmes muito centrados em si, ao invés de possuírem este compromisso com o todo. Este embate surge em Reds no modo como poderia fazer a estética de seu filme ser bem sucedida.


Beatty cede aos instintos que o guiaram dentro de Hollywood durante toda sua carreira e se centra em seus personagens. Fala de sua interioridade, de suas paixões e contradições. Busca este lado subjetivo que seria deixada de lado se filmada por um soviético. Mas ao tratar de um entusiasta da revolução e militante comunista, um filme que seguisse somente sobre estes trilhos terminaria por descarrilhar. Não é o que acontece. Isso porque Beatty encontra um meio muito eficaz de manter uma equidade entre o discurso que constrói e defende, com aquele que desenvolve para mostrar sua narrativa. Jack Reed é antes de qualquer coisa um escritor, um jornalista. É por este motivo que ele é bem visto pela direção do Partido em Moscou. E como fazer numa obra que transpira contornos de ficção possuir este caráter realista que possuíam as obras soviéticas que falaram da revolução e que o próprio personagem retratado pediria? É assim que durante a película Beatty insere entrevistas de quem viveu a época retratada e pode dar seu relato de que, "sim, aquilo de fato aconteceu". E é por meio destes relatos que ele guiará sua obra.

Esta escolha do diretor acerta em cheio o alvo. Porque Reed é jornalista e quando escreve sobre a revolução, não o faz somente se baseando naquilo que lhe diziam os enviados. Ele mesmo viu. E isso as entrevistas que surgem entre cada episódio consegue suprir. Mas na ausência de uma ilustração destas memórias surge o caráter fictício do cinema, o lado que pode parecer fantástico. Parece fantástico porque Beatty não filma como num filme realista nos moldes aos quais os espectadores se acostumaram depois do neorrealismo. O filme se guia pela memória, ainda que consiga seguir uma narrativa muito bem estruturada em linearidade.


Em determinado momento pode ser esperado do espectador que o filme vá fazer algum tipo de demonstração de cansaço com relação àquela utopia. Mas não acontece. Estes sinais que se apresentam nos personagens é o cansaço comum de quem está na frente de algo que dá muito trabalho de ser erguido. E é neste momento em que Beatty faz um de seus movimentos mais ousados: os argumentos pró e contra revolução são postos em equidade. Existe a estadunidense desestimulada com os rumos que tomava a revolução e que dá motivos muito bons pelos quais desacreditá-la, e por outro lado são postos os motivos pelos quais a revolução apresenta suas fragilidades. Se há aqui uma exaltação da revolução de 1917, isso se dá pela escolha de um protagonista que é seu grande entusiasta. E se o filme buscará decifrar seu subjetivo para compreender sua relação com sua esposa, Louise, ele não poderá negar sua igual paixão pela causa que luta.

Aos cinéfilos fica o confronto entre duas escolas de cinema que filmaram um mesmo episódio. O que parece equipará-las é exatamente este aspecto da perspectiva, dita acima. Reed é estadunidense que vai a Moscou e presencia a revolução. Beatty é o estadunidense que filma com o maquinário hollywoodiano a epopeia soviética. Os soviéticos filmavam partindo de sua própria perspectiva, dentro de sua cultura, com sua estética. Beatty filma com a estética de seu cinema, sobre um sujeito de sua terra, compartilhando com este a visão do estrangeiro sobre uma terra e sua aventura da busca da construção de um mundo melhor. Com isto, Reds torna-se uma obra tão curiosa de ser vista sobre este preciso momento da humanidade, quando a leitura da obra de seu protagonista, Dez dias que abalaram o mundo.

domingo, 22 de março de 2015

Acima das nuvens de Olivier Assayas (clouds of Sils Maria, 2014)


Como poder sentir a passagem do tempo? Esta questão complexa já foi pensada por filósofos e diversas vezes questionada pelo cinema. Este [o cinema] possui como uma de suas funções principais a de contar uma história com o suporte temporal. Em todos os filmes há tempo. Em alguns pode faltar o movimento - a exemplo de La jetée e Vinil verde - ou mesmo espaço. Mas nunca tempo. E esta questão da passagem do tempo, em especial, surge belissimamente em uma obra nacional recente, Sudoeste, obra que, mais cedo ou mais tarde, comentarei aqui no blog. Mas nesta postagem quero fazer um exercício de pensamento e questionamento de outro filme, sem que para isso encontre todas ou alguma resposta em definitivo. Trata-se da ultima obra lançada por Olivier Assayas, Acima das nuvens.

O tempo é aquele juiz imparcial que dita a permanência pela memória. Em determinados casos esta memória pode ser coletiva, como no caso do mundo das artes. Para que uma obra ou autor ou conjunto de obra sobreviva é necessária esta permanência de uma memória coletiva. Coletiva porque a apreciação de uma obra artística, mesmo que possua impacto subjetivo em cada espectador/ouvinte, é coletiva. As obras de arte são postas no mundo e é permitido a todos o seu acesso. E o tempo é este juiz imparcial porque ao passar ele julga quem ou o que merece a nossa atenção. Mostra quais obras melhor sobreviveram ao seu teste. Algumas obras muito elogiadas na época de seu lançamento são postas à margem da memória, merecendo alguns comentários ou seu completo esquecimento. E que dor não deve ser para uma obra/artista ser posta de lado e esquecida quando o objetivo da arte é exatamente esta externação, esta expressão exterior. O estético das artes é o que se vê ou se ouve que pode ser contemplado pelo outro.


Mas como perceber esta mudança de perspectiva do mundo das artes enquanto ele ainda permanece em sua mutabilidade em direção a este arrebatamento de quais serão as grandes obras e artistas a serem salvos para a posteridade? Como perceber a grandeza das obras ou artistas que hoje são brilhantes e que continuarão a ser considerados brilhantes no futuro? Questão complexa. Isso porque não poucos foram os que anunciaram obras para a posteridade que amargam num terrível esquecimento. Prever o futuro é sempre um negócio arriscadíssimo. Ainda assim sempre é possível ter ideia de quem ou o que possui tais qualidades. É o que um diretor de Hollywood que surge ao fim do filme de Assayas nomeia de "atemporal", ou nos termos próprios do roteiro: "out of time". É um estar fora do tempo que não envelhece, permanece eternamente com sua qualidade artístico-estética.

A trama de Acima das nuvens segue Maria, uma atriz que viaja para poder fazer uma homenagem a um teatrólogo que escreveu a peça que a alçou ao estrelato e pelo qual ela é verdadeiramente grata. Durante a viagem ela é avisada de que o escritor faleceu. Em sua homenagem, decidem fazer uma peça, a remontagem da obra que fora a estreia de Maria. Mas desta vez ela já não estará no papel da jovem que seduz uma mulher mais velha, mas no papel da mulher mais velha que é seduzida. Este trabalho consome Maria. Ela está acostumada a ver a peça a partir de uma perspectiva, da garota mais nova. Enquanto lê com sua assistente o texto, somente vê as falhas e fraquezas da personagem que está a interpretar. E quase não escuta as frases de suas assistente, voz da razão em muitos momentos. 


É sua assistente que diz que ela tem que encarar a passagem do tempo e mudar sua perspectiva de vista. Esta perspectiva de vista é o que faz com que o mundo das artes continue surpreendendo. Os mestres de hoje podem não o ser mais tarde. É necessário estar fora do tempo, como diz o diretor ao fim do filme. Estar fora do tempo para que possa enxergar o todo. É muito curioso este termo utilizado por Assayas em seu roteiro. Porque Santo Agostinho escreve que Deus está fora do tempo porque se nele estivesse, envelheceria. É necessário ao artista fazer trabalho semelhante ao dito pelo filósofo escolástico para poder sobreviver à eternidade artística. Se há a relutância de Maria em aceitar o entretenimento popular de Hollywood é porque ele é ditado por modas, e as modas são mutáveis e quando passam deixam num passado doloroso aqueles que fizeram-na surgir e brilhar por um determinado tempo, e que viram cinzas do tempo.

É necessário de Maria esta mudança de perspectiva com relação ao seu personagem porque ela mudou, envelheceu, e seu personagem na peça já não é mais aquele que fez outrora, exatamente devido a esta passagem do tempo. Para que ela permaneça sendo sempre a grande atriz que é, é necessário o trabalho de mudança de perspectiva e compreensão de seu trabalho, tal como ela compreendia a personagem da mesma peça que havia interpretado no passado. Mas esta é somente uma perspectiva de vista, não uma inserção de Maria no tempo. Ela permanece naquele "out of time" que lhe é dito. E por mais que uma sensação de Hollywood tente lhe tirar o brilho da peça em que atuam juntas, ela sempre será esta diva eterna.


E no desenvolvimento desta história, Assayas põe alguns episódios pontuados por longos fades entre os quais a tela mergulha numa escuridão. São episódios pontuais da vida da protagonista para que possa demonstrar sua percepção do tempo. Ela vive e faz seu trabalho numa percepção do tempo semelhante aos dos outros e em nenhum momento perceberá que sua obra a fez eterna. Ela pode envelhecer, desempenhar outros personagens, mas permanecerá no imaginário artístico como a qualidade perene. É o sentido do "out of time". Ela pode envelhecer e por isso ser obrigada a mudar de perspectiva no palco, mas a qualidade de sua obra não é medida por números. A qualidade é sentida por seus espectadores que acharão sempre seu trabalho extraordinário. E mesmo que as revistas busquem a estrela de Hollywood que interpretara o papel que lhe coube quando tinha 18 anos, será por causa de Maria no palco que a peça será lembrada.

terça-feira, 17 de março de 2015

Fazendo "Encouraçado Potemkin" - por Eisenstein

Os doze apóstolos


"Para fazer o filme de um encouraçado, é preciso, antes de mais nada, um encouraçado.

E, para reconstituir a história de um encouraçado de 1905, é preciso de um tipo existente em 1905.

Em vinte anos - estávamos no verão de 1925 - o desenho das construções de guerra tinham mudado fundamentalmente.

Nem na enseada sobre o golfo da Finlândia, ancoradouro da esquadra do Báltico, nem na esquadra do mar negro, encontravam-se naquele verão encouraçados do antigo modelo.

Um cruzador vagueia jovialmente na baía de Sebastopol. Não possui a saliência nem o tombadilho indispensável ao drama famoso do castelo de popa que devíamos  recriar...

O verdadeiro Potemkin já tinha sido demolido há muitos anos. Inútil mesmo procurar onde o outono da história dispersou as folhas da blindagem que recobriu um dias seus vastos flancos.

Um 'reconhecimento' revela, contudo, que se o velho Príncipe Potemkin de Táurida não mais faz parte deste mundo, um gêmeo e amigo seu vive ainda, um encouraçado que conheceu horas de glória: Os doze apóstolos.

Amarrado aos rochedos da costa, encalhado por suas âncoras às areias do fundo, essa carcaça que foi heroica se esconde ao fim de um das mais distantes reentrâncias da baía. Subterrâneos que prolongam as sinuosidades até o coração da montanha servem de abrigo a centenas e milhares de minas. À entrada, vigilante cérebro acorrentado, Os Doze Apóstolos estende seu vulto cinzento, oblongo, corroído pela ferrugem.

Mas o casco dessa sonolenta baleia em sentinela não tem mais torres, nem pontes nem mastros.

O tempo levou-os embora.

Seu bojo de ferro, em andares, não ressoa mais que de longe em longe, com o choque dos vagonetes conduzindo o pesado e mortal conteúdo de suas criptas: minas, mais minas, sempre minas.

Porque o interior de Os Doze Apóstolos se tornou também o se depósito. Por isso é que ficou tão cuidadosamente amarrado, preso, encalhado à terra firme: a mina não gosta de choques e por isso evitam-lhe as batidas; ela exige repouso e paz.

Mergulhado até as cinturas nas águas tranquilas da baía de Sebastopol, Os Doze Condenados parecia imobilizado para sempre.

Mas estava escrito que a baleia de aço despertaria uma vez ainda.

Uma vez ainda, ela agitaria os seus flancos.

Uma vez ainda, ela voltaria para o largo a sua proa que aprecia ter adquirido raízes nos rochedos. 

O encouraçado estava encravado neles, paralelamente à costa.

Ora, o 'drama do tombadilho' é passado ao largo.

Nem do estibordo nem da proa poderia a câmera apanhar o encouraçado sem que os altos penhascos negros entrassem no campo visual.

Mas Liocha Krukov, meu assistente, tem olhos de lince. Ele já desalojou o ancestral blindado do labirinto da baía. E vai resolver esta dificuldade, também.

Se essa massa enorme girar em noventa graus para colocar-se de costas à margem, a silhueta do navio, fotografada da proa, aparece exatamente numa brecha entre rochedos, e toda a extensão de seus flancos recorta-se sobre o fundo de céu.

O encouraçado aparecerá como se estivesse em pleno mar.

Habituadas a tomá-lo por um promontório, as gaivotas espantadas, que sobrevoam as cercanias, completarão a ilusão.

Sob um silêncio angustiante, a baleia de aço descreve seu arco de círculo.

Por ordem do estado-maior da esquadra o monstro blindado apresenta-se, uma vez mais, o nariz voltado ao largo.

E dir-se-ia que, cansado de ter durante tanto tempo aspirado o lodo costeiro, ele agora aspira plenamente os odores do mar."


(EISENSTEIN. Reflexões de um cineasta, p. 21 - 23.)

domingo, 15 de março de 2015

Viagem a Darjeeling de Wes Anderson (the Darjeeling limited, 2007)


Se o cinema de Wes Anderson parecia uma expedição a um universo adolescente, com sua cota especial para a exteriorização daquela imaginação fértil de um mundo perfeito que somente existe dentro da mente de seus personagens, desta vez em Viagem a Darjeenling Anderson se desfaz deste passado para poder ficar seus pés num mundo bem mais complexo. Enquanto Bottle Rocket Rushmore possuem personagens que parecem relutantes em deixar para trás seu imaginário juvenil, A vida marinha de Steve Zissou apresenta aquele personagem que busca o retorno de uma figura muito importante e que permanecera ausente durante sua juventude, seu pai que dá título ao filme. Já em Darjeeling existem três protagonistas em busca da mãe que deixou a família e perguntar o motivo pelo qual ela não tinha ido ao enterro do pai deles.

Wes Anderson dá assim a partida para um filme que já não mergulhará num acerto de contas com a juventude de nenhum dos personagens em tela, mas com seu momento de amadurecimento, o momento em que enxergam sua solidão. Os três irmãos encontram-se num trem na Índia e logo descobrimos que eles não se falavam há pouco mais de um ano. Não sabem exatamente o motivo do distanciamento. Mas este conflito logo será encerrado com esta viagem por um país exótico que os fará juntarem-se. União esta que é construída aos poucos durante o filme.


Para construir esta obra Anderson não se desfaz de seu arsenal estético-estilístico de narrar. Lá estão muitas das características de sua filmografia, e em especial os falsos raccords, que em Godard anunciam a urgência do registro (o filme artesanal, não industrial), certa dinamicidade que é aqui mantida, mas de um modo bem diferente por serem cuidadosamente calculados em que momento devem ser inseridos, ao contrário do que acontece na obra do francês. Este estilo de Anderson é tomado por muitos como sendo cansativo, de que ele se repetiria em todos os filmes. Mas trata-se de uma questão de perspectiva da obra. Vê-la como sendo igual certamente nos levará a tal conclusão. Mas outro modo de observá-la é ver como cada filme adiciona a seu catálogo novas temáticas, novas visões de mundo - o enriquecimento de um arsenal artístico. Se os primeiros filmes de Wes Anderson eram em certo sentido um acerto de contas com a infância/adolescência, Viajem a Darjeeling e também O grande Budapeste hotel são filmes que já escapam desta visão.

A ausência dos pais nas vidas desses três irmãos os faz acreditarem que estão sós, coisa que se acentua com o distanciamento que pautam entre eles. Com a viagem que decidem fazer, este distanciamento diminui, e eles podem enfim se reencontrar. Confiar uns nos outros e ver que, afinal, não estão sós. É muito curioso como a relação entre as músicas e esta narrativa se constrói. Em especial com a escolha de diversas músicas de um mesmo álbum do The Kinks, Lola vs. the powerman. Elas parecem se encaixar como uma luva na obra de Wes Anderson, com todos os significados que elas sugerem para colocar-nos a par do que acontece. "Estranhos nesta rua em que estamos/ nós não somos dois, somos um", diz uma das canções exatamente no funeral de um garoto indiano. O funeral é simbólico aos três personagens que ainda sentem e frequentemente falam de seu pai falecido. E é só neste segundo funeral que eles finalmente compreendem que necessitam um do outro. Esta compreensão não nos é posta por nenhuma fala dos personagens, mas pela música muito bem colocada no momento certo: o personagem de Owen Wilson ganha a confiança de seus irmãos para poder guardar seus passaportes todos juntos, lembrando a música citada.


É necessário que os três irmãos passem seu tempo juntos porque nunca se sabe quando o tigre surgirá e os levará. E é sintomático que aquele trem que os carregava nesta viagem de encontro espiritual os deixe exatamente no meio de um deserto onde encontrarão um rio em que três crianças sofrerão um acidente e uma delas se aforará. Sua viagem não poderia ser feita por completo dentro do conforto do trem, ela devia encontrar seus percalços, muito maiores do que o roubo de um dos sapatos dos irmãos numa feira. É necessário este novo embate com a morte, desta vez vendo-a de perto, para que possam compreender suas vidas e a relações que devem manter. Porque não devem se distanciar dos outros. A morte é algo natural que está em todos os lugares, e para que quando ela venha não fique o gosto amargo do ressentimento como ficou com a morte de seu pai, os três irmãos terão que se unir e permanecer juntos, dando suporte um ao outro, mesmo que fisicamente distantes. E com isto Wes Anderson fez aquele que talvez venha a ser o filme mais adulto de sua carreira, porque fala nele das perdas que o tempo nos impõe.

quarta-feira, 11 de março de 2015

A morte todos os dias - André Bazin

Texto escrito para os Cahiers du cinéma na ocasião do lançamento de A corrida de toros de Pierre Braunberger.

"A experiência do teatro filmado - e o seu fracasso quase total, até aos êxitos recentes que renovam o problema - fez com que tomássemos consciência do papel da presença real. Sabemos que a filmagem do espetáculo não faz mais do que restituí-lo esvaziado de sua realidade psicológica: um corpo sem alma. A presença recíproca, o confronto em carne e osso de espectador e ator, não é uma mera circunstância física, mas um tato ontológico constitutivo do espetáculo como tal. Partindo desse dado teórico bem como da experiência, poder-se-ia inferir que a tourada é ainda menos cinematográfica do que o teatro. Se a realidade teatral não se imprime à película, o que dizer então da tragédia tauromáquica, da sua liturgia e do sentimento quase religioso que a acompanha? Sua filmagem pode possuir valor documental ou didático, mas poderia ela restituir-nos o essencial do espetáculo: o triângulo místico homem-animal-multidão?"

Bazin, In: Morte todas as tardes, publicado em português na coletânea A experiência do cinema, organizada por Ismail Xavier.

domingo, 1 de março de 2015

Anjo perverso de Henri-Georges Clouzot (Manon, 1949)


O filme abre com um navio. A tripulação parece esperar alguma coisa. Não tarda muito para que surja no horizonte algumas lanchas que se movem rapidamente em sua direção. São três. Uma breve olhada dentro de uma das lanchas nos mostra que elas estão cheias - basta olhar dentro de uma. Retornamos ao navio onde os preparativos são feitos. Uma escada logo é encontrada e posta ao lado da embarcação para fazer as pessoas das lanchas subirem a bordo do navio. Elas vão subindo e a tripulação os levando até o porão do navio para ficar junto dos produtos que são carregados. Não demora muito para que alguém nos conceda alguma explicação acerca de tudo aquilo: são judeus que não são quistos em nenhum lugar e que fogem em busca de um lugar em que sejam aceitos. Curiosa proposta. O filme é de 1949, poucos anos após a segunda gerra mundial e de alguns julgamentos dos derrotados na guerra. Os judeus são considerados por muitos as grandes vítimas do confronto internacional. Mas parece que não só os nazistas não gostavam deles, afinal de contas.

Contrariando as expectativas não será neste ponto em que se focará a obra de Henri-Georges Clouzot. Nem será no navio em que a história se passará (uma pena). Ao alocar os judeus no porão do navio um dos tripulantes encontrará um casal jovem que se escondia com o intuito de também fugir da Europa. Será neste casal pouco improvável que Clouzot buscará a história de seu filme. Quando postos em frente ao capitão do navio, ambos narram a ele sua história e a motivação que os leva a fugir. Neste momento se dá aquele que talvez seja o ponto alto do filme: o filme será contado por dois personagens o que justificará as cenas em que um ou outro personagem não aparece, justificando a apresentação mais completa do passado do casal.


No começo desta rememoração eles lembram logo de seu primeiro encontro ao final da guerra. Manon é arrastada por uma população enfurecida que quer cortar seu cabelo como sinal de repulsa por ter ela cooperado com o exército inimigo. Surge então seu futuro parceiro junto com um de seus colegas do exército de libertação francesa, Robert. São estes dois que impedem a população de ter seu momento de vingança. Robert e Manon são colocados dentro das ruínas de uma igreja. Ele supostamente deveria vigiá-la, mas num ato que demonstra a ingenuidade juvenil dos dois personagens ele se apaixonam, e por isso ele abandona a guerra e juntos fogem a Paris. Lá todo eco do passado recente da França e da Europa como um todo é deixado de lado. A trama foca-se na relação de Manon e Robert buscando alimento nos conflitos que surgem em meio à sua relação.

Mas o que faria Clouzot começar o filme com um posicionamento político - a situação dos judeus na Europa - para focar-se somente numa paixão juvenil? É uma pergunta que ele parece resistir em responder. Isso porque a relação de Manon e Robert cresce enquanto a história é narrada e algo sempre parece perturbar o espectador, um assassinato cometido por Robert e assumido por ele antes de começar a contar sua história ao capitão do navio. Isso se une ao ato de Clouzot de evitar filmar nas ruas o máximo possível, evitando mostrar os verdadeiros problemas que a guerra poderia ter trazido. Mas não, o interesse do diretor se centra na subjetividade destes dois jovens que muito pouco parecem se importar com o mundo que os cerca.


Terminando a narração de Manon e Robert ao capitão do navio - que toma a maior parte do filme - eles são liberados para poder se juntar ao grupo de judeus e poder fugir para a Palestina (veja só!). Assim que as lanchas chegam à praia algo nos deixa com a pulga atrás da orelha: porque precisam os homens que farão o transporte dos judeus pelo deserto estarem armados? Esta pergunta pode passar despercebida por ser simplesmente o caso de se tratar de um grupo que trabalha na ilegalidade, mas este é o primeiro aviso de que algo não dará certo. Em seguida terá não somente o pé torcido de Manon, como a carcaça de um animal morto no meio do deserto. E então surge um grupo de beduínos. Ao fim do filme eles trazem as más notícias: os judeus não são queridos nem na Europa nem na África. O grupo é atacado e todos morrem. Manon é a primeira a ser atingida e Robert a enterra no deserto em uma cena forte que demonstra o poder real da capacidade criadora do Clouzot cineasta.

Fica assim a questão: por quê Clouzot fez esta volta tão grande para poder falar sobre a situação dos judeus? Entrar como um mero acaso no filme não é um fato. E certamente foi por este motivo que ele foi premiado no Festival de Veneza. O cineasta demonstra certa vontade de contar uma história fictícia, ao mesmo tempo que surge a necessidade de fazer uma proposição política. Mas a política salta para um segundo plano em que ela surge como uma periferia da vida de todos. O mundo é político e não há para onde escapar, sempre com ela (a política) nos depararemos. Só que esta proposição se apresenta radicalmente diversa do que seria feita por obras que procuram maior sutileza no trato da sócio-política no cinema para demonstrar como estes casos afetam a vida de todos os indivíduos na sociedade - e escrevo tendo em mente A primeira noite de um homem. As comparações são sempre preocupantes e devem ser feitas com cuidado, mas certas obra trilham um padrã de qualidade que nos leva a julgar partindo deste padrão. Mesmo sendo anterior ao filme de Mike Nichols, Anjo perverso consegue nos demonstrar sua mensagem, mas já não tão bem quanto se é esperada de um cineasta tão criativo quanto Clouzot, sendo esta uma motivação de tratar uma obra de arte como "ultrapassada". Ainda assim o trato visual de Clouzot para as cenas do navio e do deserto fazem por merecer que assistamos a esta obra.