quinta-feira, 3 de abril de 2014

Charles Chaplin (sobre a relação entre comédia e tragédia em Em Busca do Ouro)


"Agora que eu estava livre [de seu contrato com a First National], podia fazer minha primeira comédia para a United Artists. Ansiava obter sucesso igual ao de O garoto. Semanas a fio, fiquei pensando, matutando, a puxar pelos miolos, para ver se me vinha uma ideia. Dizia com meus botões: "Este novo filme deve ser um épico. O maior!" Mas, nada me ocorria. Até que, num domingo de manhã, quando passava o fim de semana com os Fairbanks, Douglas e eu, após o pequeno almoço, ficamos a nos distrair com vistas estereoscópicas. Algumas eram do Alasca e do Klondike; outra mostrava o desfiladeiro de Chilkoot, com uma longa fila de garimpeiros galgando suas escarpas geladas; a legenda impressa no verso descrevia as agruras e provações daquela subida. E logo pensei: eis aí um assunto maravilhoso, capaz de me inspirar... Imediatamente foram brotando em minha cabeça ideias e situações cômicas; ainda me faltava uma história, mas um esboço de enredo começou a aparecer.
Na criação de comédia, por mais paradoxal que isso pareça, o senso do ridículo é estimulado pela tragédia; pois o ridículo, creio eu, contém um desafio: devemos rir do nosso desamparo na luta contra as forças da natureza... para não enlouquecer. Havia um livro sobre o comboio de Donner que, rumando para a Califórnia, se perdeu no caminho e foi bloqueado pelo gelo nos montes da Sierra Nevada. Dos cento e sessenta pioneiros, só dezoito conseguiram sobreviver à fome e ao frio. Alguns tornaram-se canibais, comendo os cadáveres dos companheiros; outros assaram mocassins para enganar a fome. Dessa tragédia cruciante foi que me veio a ideia de uma das cenas mais engraçadas. No auge da fome, cozinho meu sapato e como-o, lambiscando os pregos como se fossem ossos de um delicioso capão e saboreando os cordões como se fossem espaguete. Num delírio de esfaimado, meu companheiro convence-se de que sou um frango e que quer devorar-me."


(Charles Chaplin em "Minha Vida")

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