por Hanna Cláudia Freitas Rodrigues
Parece
lugar-comum afirmar que a cinefilia é uma paixão, sendo portanto uma emoção.
Apesar desta obviedade para a sapiência popular, impressiona ao acadêmico
descobrir que o espaço dado à cinefilia nos estudos teóricos pouco se aproxima desta
concepção, mantendo-a como um aspecto marginal, pouco procurando desenvolver de
fato seria uma emoção tão particular quanto a cinefilia, nascida a partir da
invenção de um dispositivo tecnológico. Os estudos mais famosos envolvendo a
cinefilia – como o de Antoine de Baecque – compreendem o fenômeno sociocultural
da ida às salas de cinema, e à crítica surgida da assiduidade destas visitas.
Uma perspectiva que lança a cinefilia como uma paixão restrita, permitida
apenas aos habitantes de grandes metrópoles onde a grande variedade de salas de
cinema também significa grande variedade em títulos de filmes sendo exibidos.
Indo de encontro a esta narrativa, Yves São Paulo retoma o lugar-comum da
concepção de cinefilia para desenvolver um livro por vezes difícil em seu
vocabulário academicista, de linguagem sofisticada, explorando filosoficamente
a cinefilia como emoção.
Em A
metafísica da cinefilia, Yves São Paulo parte do pressuposto de que o
espectador aborda o filme munido com um arsenal de experiências e ideias que o
fazem colocar a obra em perspectiva. Para além disso, uma parte desta base de
relação com o filme compreende a algo de ainda mais elementar, apresentado
desde o princípio pelo título enigmático da obra, a metafísica. Aqui entra em
ação também o subtítulo do livro, uma leitura bergsoniana do cinema,
apontando o caminho do sentido de metafísica que será tratado ao longo do
livro.
O intuito
de Yves São Paulo nesta obra é buscar o que há de fundamental tanto no
espectador quanto no filme que permita a comunhão entre ambos. Esta
fundamentação encontra-se a um campo metafísico, mas como a argumentação nos
mostrará isso não significa um fora, ou uma anterioridade, à experiência. Trata-se
de algo que se encontra enraizado em toda experiência. Eis a opção pela
filosofia de Henri Bergson para guiar este estudo, a metafísica não compreende
a algo anterior à experiência nem algo de externo à experiência porque nem um
nem outro poderiam ser de fato conhecidos, apenas especulados.
O livro
acompanha a divisão metodológica feita pelo próprio Bergson no ensaio Introdução
à metafísica. A Parte Um do livro se ocupa com o que São Paulo chama
de análise, um modelo que no cinema se traduz por meio do corte acelerado,
sintético e significante – em conjunto com o conteúdo das imagens, igualmente
direto – de modo que a ação do espectador analítico seja recortar o filme
criando símbolos externos a partir daquilo que lhe é oferecido. A Parte Dois
aborda o método encontrado pelo filósofo francês para ter uma experiência imediata
com a duração. Diferente do que acontece com a abordagem analítica, a abordagem
intuitiva compreende a filmes que não oferecem dados para síntese
significativa, levando o espectador a mergulhar na experiência do filme, não
tentando posicionar-se de fora, mas dentro dele, fazendo com que cada parte da
obra se inscreva em seu tecido de memória.
Assim surge
a Parte Três do livro, realizando o casamento entre as duas partes
anteriores que se poderia pensar serem irreconciliáveis. Contudo, São Paulo
aponta para o fato de que dificilmente o espectador consegue encarar um filme
com apenas uma das abordagens descritas – assim como não deliberadamente
escolhe uma das abordagens. Uma mistura entre as duas desenvolve o que o autor
chama de criação por arte do espectador, quando criamos um filme que é todo
próprio, nosso, moldado pela nossa experiência. Deste ato criativo, surge a
cinefilia.
Algumas das
passagens mais bonitas do livro estão guardadas nesta Parte Três, quando
Yves São Paulo começa a descrever a cinefilia enquanto paixão e o seu impacto
sobre a vida de quem vem a sentir esta emoção. Escreve ele:
Aqui nasce a cinefilia enquanto
emoção, quando a ação do espectador em sua relação com o filme faz com que a
obra se inscreva profundamente em sua consciência, em seu espírito, levando a
manter guardado aquele filme, com suas ideias, seus sentimentos, seus detalhes,
toda a riqueza que uma película é capaz de despertar em quem assiste. (p. 205)
Muitas
vezes a descrição da cinefilia se aproximará da descrição da abordagem
intuitiva, igualmente carreada por um sentimento poético de enxergar a
realidade sem mediação. Não estranha que São Paulo relembre que Bergson trata a
intuição como sendo o método dos artistas, eles mesmo experimentando a
realidade em sua imediatez. A experiência da cinefilia faz com que o filme
arrebate o Todo de nosso ser, aqui chamado pelo autor de Absoluto, numa reunião
do passado do espectador com o presente e o porvir durante a exibição de um
filme. Assim, lê-se:
O Absoluto enraíza a duração do
filme em nosso espírito, penetrando em nossas lembranças e fixando da forma
mais consistente que encontra esta experiência em nosso fluxo de vida; o filme
começa a dialogar não somente com o eu presente, nem somente com a memória
imediata ou mais à superfície, o Absoluto passa a fazer relação com toda a
nossa vida e transforma a experiência do filme em mais do que um certo momento
de lazer: assistir filme se transforma numa espécie de necessidade vital. O
filme não faz parte apenas do momento presente, é toda nossa vida, é
experiência que nos leva a viver uma vida maior que a própria vida. (p.
224-225)
Auxiliando
a noção de fazer parte da experiência cotidiana, não deixando o vocabulário
filosófico utilizado parecer demasiado abstrato ao leitor, Yves São Paulo
insere alguns debates a respeito da influência social sobre o arsenal prévio
que caracteriza a experiência do espectador, mostrando também a influência de
noções da metafísica sobre tais procedimentos. Surge particularmente
interessante o desenvolvimento acerca da metafísica do tempo espacializado e
sua influência sobre a indústria, o que eventualmente marcará a abordagem do
espectador analítico. Raras foras as vezes em que pudemos ter em mãos uma
interpretação crítica do Taylorismo à luz da metafísica da duração de Bergson,
lançando frutos para uma teoria do espectador de cinema. Esta aproximação é
feita levando em conta que os três fenômenos mencionados – Taylorismo, o
surgimento da filosofia de Bergson, o nascimento do cinema – acontecem em concomitância
num período muito particular da história.
Parece que
estamos a ler a respeito de Benjamin – uma lembrança feita pelo professor
Claudio Novaes no prefácio ao livro – pensando a modernidade via Baudelaire, e
de certa maneira esta influência se apresenta de modo sutil por meio da leitura
de Mary Ann Doane, uma das principais referências trabalhadas por São Paulo,
especialmente no contexto da Parte Um. A modernidade que acelera o movimento
dos transeuntes da urbe é a mesma que acelera o movimento dentro dos filmes,
acelera os cortes, faz com que o tempo de cada plano fique mais curto, exigindo
uma mudança de abordagem por parte do espectador, também ele cada vez mais
impaciente.
Os exemplos
de filmes dados na parte sobre a analítica diferem daqueles da parte sobre a
intuição especialmente ao levar o ritmo da montagem em consideração. A ideia
lançada aqui é de que a analítica abraça um ritmo acelerado da montagem,
enquanto a intuição abriga o ritmo mais cauteloso. Contudo, o que acontece é
que estes dois polos são parte de uma dialética, não existindo um sem a
participação do outro. Não existe arte sem técnica, não existe conceito sem que
antes venha inspiração.
A dialética
entre análise e intuição abre espaço para que se quebre uma velha e comum associação
feita quando considerando o espectador: a sua passividade. Esta dialética abre
caminho para uma releitura da famosa teria da liberdade bergsoniana – que
influenciou, entre outras, a sartreana – para apresentar um espectador que
mesmo restrito ao espaço de sua cadeira é um criador. A liberdade do porvir
fílmico encaminha o espectador em direção a uma construção intelectual do filme
e de si mesmo, numa comunhão tão que em seu grau mais aprofundado cria o
sentimento de cinefilia, esta singularidade onde já não distinguimos o cinema –
e seus particulares, os filmes – como algo dissociado de nosso ser. O cinéfilo
assiste filmes por precisa.
A
metafísica da cinefilia proposta por São Paulo pode ser resumida na busca pela
característica comum que une filme e espectador, rompendo mais uma noção
comumente feita quando pensamento a relação de espectador: não se trata de uma
relação sujeito (espectador) objeto (filme), sendo antes a progressão contínua
de um a outro. Ou seja, na metafísica da cinefilia a duração possui caráter
central ao ser o que é capaz de unir filme e espectador num mesmo tecido de
memória. Portanto, não existe aqui sujeito nem objeto, mas uma progressão de um
Absoluto durável em direção de outro. O espectador não é receptáculo, nem o
filme se encontra privado de ganhar com a experiência do espectador.
Ao leitor
da Metafísica da cinefilia fica um pouco de curiosidade e desejo de que
seu autor trate mais prolongadamente a respeito da experiência coletiva de
assistir a um filme, quando reações da plateia interferem diretamente nesse
jogo entre Absolutos, envolvendo mais uma parte à equação. Fora isso, é
refrescante encontrar um texto como este buscando o tratamento filosófico do
cinema no cenário acadêmico brasileiro, mais entregue ao ensaio de teorizar –
pesadamente a partir de Bergson – do que de aplicar conceitos filosóficos
clássicos a análises de filmes.
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