Sobre Hugo
Munsterberg e o primeiro tratado dedicado ao estudo da arte do filme
Originalmente publicado em espanhol em Revista Zahir
Tempos
atrás, quando Theda Bara era uma das estrelas mais conhecidas e quando
Hollywood ainda não era um lugar nos EUA, um europeu ensinando filosofia e
psicologia foi contratado pelos estúdios Paramout. Deslumbrado com as muitas
possibilidades ainda por desbravar da arte do filme ainda a dar seus primeiros
passos, ele começa a escrever. Não filmes, porque não era um artista. Fora
contratado pela gigante do entretenimento para fazer filmes educacionais. Como
bom acadêmico, desenvolveu suas ideias sobre este novo meio de expressão.
Deste
encontro do acadêmico com a arte do filme surgiu o primeiro tratado sobre
cinema. Mas a arte não é nele chamado de cinema.
Não, este é um termo que os franceses utilizam e que exportaram para alguns
outros idiomas mais próximos. O filósofo e psicólogo, com um pé no pragmatismo
de seus colegas de departamento em Harvard e outro pé no kantismo de sua
educação lá na terra natal, Hugo Munsterberg escreve e publica em seu
derradeiro ano The photoplay, a
psychological study. Um estudo que se divide em duas partes, a primeira
para comentar o aspecto psicológico do meio, outro para falar do aspecto
estético.
Por
muito tempo os escritos de Munsterberg foram esquecidos pelos estudiosos dos
filmes. Mas a abordagem que ele desenvolve em seus escritos é uma das mais
persistentes nos estudos de teoria de cinema – tal como aponta Noel Carroll em Theorizinhg the moving image. Como bom
psicólogo, Munsterberg traça a analogia mente/filme, que podemos ver ainda na
teoria de Jean Epstein e em certa medida em Deleuze.
Chegamos
assim ao ponto chave de nossa breve incursão pelo mundo cinematográfico de
Munsterberg. Como é feita esta analogia entre a mente e o filme? Num dos
capítulos de The photoplay o filósofo
retoma um dos temas mais estudados pelos autores de seu tempo: a atenção.
Separa a atenção em dois tipos: atenção voluntária e atenção involuntária.
Ambos os tipos podem ser encontrados nas artes teatrais, e também no cinema.
Com o cinema algo de muito peculiar acontece.
Antes
de chegar à conclusão, que seria a peculiaridade da representação
cinematográfica da atenção, desvendemos o que significa estes dois tipos de
atenção.
Primeiro,
a atenção voluntária. Esta acontece quando selecionamos o caos do mundo externo
em direção a uma conclusão que queremos tomar. Nossas percepções são
direcionadas para a busca de algo em específico, porque nosso intento busca
esta especificidade no mundo externo. Tudo aquilo que não satisfaz ao nosso
interesse é assim descartado para que nos foquemos apenas naquilo que vemos
como sendo mais importante. Aceitamos o que vem de fora apenas se nos fornecer
matéria para aquilo que estamos a buscar. É o caso da leitura deste texto. Seus
olhos, leitor, perifericamente conseguem captar todo o entorno, mas sua
atenção, seu esforço mental, focaliza apenas as palavras que está a ler. São
elas que lhe atraem e não os objetos dormentes sobre a mesa.
Segundo,
a atenção involuntária. Para esta já não estamos com uma ideia pré-concebida e
não buscamos ordenar as impressões ao nosso redor. Acontece quando algo que é
externo a nós chama nossa atenção com muito mais força do que podemos
controlar. Por exemplo, se enquanto lê estas palavras o barulho de uma explosão
ou de uma pancada muito forte retire seus olhos destas letras. Se alguém
derruba um copo em outro cômodo da casa, neste momento, nossa atenção se
voltará por completo para aquele ponto. Não porque queremos, porque não
esperamos que o copo vá ser derrubado. Daí ser chamada de involuntária.
As
artes possuem muitas maneiras de trabalhar com estes dois tipos de atenção. No
teatro, certamente o ator que fala chama mais atenção que aquele que está em
silêncio, a não ser que a fala seja direcionada a alguma outra personagem no
palco. Mas no caso do teatro, a atenção permanece sendo direcionada pelo
próprio espectador. Uma atenção voluntária. Porque se queremos nutrir-nos ao
máximo desta experiência, devemos seguir os passos que os artistas nos
apresentam – a não ser em casos de obras pós-modernas. Se vou ao teatro com
maior interesse em assistir à performance de um dos atores em especial, posso
abandonar a ação e ficar a espiá-lo enquanto ele não é centro da cena.
Poderíamos
dizer que este é o caso também do primeiro cinema, aquele feito aos primórdios
da arte do filme. Quando a câmera de filmar permanecia em frente ao cenário –
no que é chamado, não elogiosamente, de “regente de orquestra” – observando os
atores à distância, buscando fotografá-los de corpo inteiro. O cenário aparece
em aberto para o espectador que pode muito bem distinguir os diferentes atores
e pode direcionar seu olhar para diferentes pontos do quadro. Olhar para o que
acontece fora do centro da ação, longe de onde acontece o conflito.
Mas
no caso deste cinema temos uma particularidade. Porque o cinema, diferente do
teatro, ao filmar possui apenas uma perspectiva daquela ação. E assim o autor
de uma película pode filmar de modo a direcionar o olhar do espectador por meio
do reposicionamento dos atores no cenário. Como escreve David Bordwell em Figuras traçadas na luz, são muitas as
possibilidades estéticas que o jogo de cobrir e revelar tem a fornecer ao
cineasta. Um grupo de personagens surge numa sala, e todos eles cobrem a
entrada. Movem-se em direção a uma mesa e junto com eles levam nossa atenção.
Permanecem de pé a observar algo sobre a mesa, quando o herói adentra em cena.
Apesar da falta de obviedade de uma cena como esta, trata-se de um jogo de
encenação muito eficaz para direcionar o olhar do espectador. Porque nosso
olhar e nossa atenção caçam os movimentos, a ação. Algo que possa alimentar
nosso interesse.
Munsterberg
está mais interessado em outros truques possíveis com o cinematógrafo. E, tal
como Méliès, encontra-se fascinado com as possibilidades da trucagem. Os
efeitos possíveis pelos cortes, os saltos temporais – como Eisenstein escreveu
pouco depois, antes somente possíveis pela literatura. O cinema, num piscar de
olhos, é capaz de saltar dez, vinte anos no tempo. Se inserir na mente de suas
personagens e concretizar seus sonhos, suas lembranças. Quão maravilhosa não é
esta máquina que consegue nos apresentar nossos próprios sonhos! Fazer fadas
dançarem sobre as mãos de um homem, como antes era possível somente nos mais
fantásticos delírios!
Dentre
estas trucagens, a que mais chama atenção de Munsterberg no capítulo citado é o
close-up. Por meio dele é possível
aumentar imensamente alguns detalhes da cena. Fazer com que todo cenário
desapareça na escuridão da sala de projeção. Quando o homem toma o revolver de
cima da mesa, vemos com clareza seu gesto. A mão cresce e a vemos em detalhes.
Está ali em toda agonia e efervescência do momento que leva àquela ação.
“É
aqui que começa o cinema!”, vibra Munsterberg. Quando a mão cresce e toma toda
a tela. Quando o cinema toma para si as possibilidades que antes somente eram
possíveis para a mente humana. Tal como selecionamos com nossos olhos aquilo
que nos é mais caro ver, também faz o cinema por meio do close-up. O cinema
externa esta que é uma competência da mente humana, apenas. Está transposto
para o mundo da percepção um ato mental. Nada mais podemos ver dentro da
escuridão da sala de cinema, na tela nos é dada apenas a mão a segurar o
revolver.
Este
elogio de Munsterberg ao close-up é
próprio aos autores dos primeiros tempos. Autores fascinados com as diversas
capacidades de expressão por meio do filme. E quão fantástico não deve ter sido
para este psicólogo e filósofo sentar-se a uma sala de cinema e descobrir o close-up! Esta técnica que para os
espectadores contemporâneos parece a mais comum das técnicas cinematográficas,
mas que possui a competência de dar vida às menores coisas (aqui numa evocação
dos escritos de Epstein).
O
caso é que a analogia entre a mente e o filme não termina somente na atenção.
Como já colocamos, o filme é capaz de saltar no tempo, tal como podemos fazer
com o auxílio de nossa memória. Daí que a obra de Munsterberg tenha sido
retomada em meados da década de 1970. Àquela altura, muitos de seus leitores
traçaram paralelos entre os escritos de Munsterberg e os filmes que estavam a
surgir nos anos 1960. Alguns chegaram a tratar Munsterberg como profeta de tais
filmes.
Não
é o caso. Não devemos tratar Munsterberg como um profeta do “cinema moderno”
(se é que existe tal coisa). Os filmes de Alain Resnais e Fellini se assemelham
em muito a seus escritos, mas não devemos nos esquecer de que em seus escritos
Munsterberg também se posiciona contrário aos experimentos que levaram ao
cinema falado. O que não era uma particularidade sua, muitos dos teóricos de
cinema até os anos 1930 enxergavam o som como uma adição que decairia a
qualidade estética das imagens.
Retomar a analogia mente/filme de
Munsterberg hoje é muito interessante para os estudos de cinema. Os escritos
sobre a arte do filme se encontram em larga medida embriagados pela ideia de
que o cinema oferece uma réplica do mundo real. Os ideários do realismo, que
conclamam os deveres morais dos realizadores em representar seus filmes da
forma mais realista possível. A analogia filme/mente abre as portas para um
pensamento de cinema e de formas de se expressar por meio do cinema mais amplo,
dentro deste espectro. Tal como fizeram Resnais com seu L’anée dernière à Marieband e Fellini com seu 81/2.