Martin
Scorsese
Não sou nem escritor nem teórico. Sou um cineasta.
Vi algo de extraordinário e inspirador na arte do cinema quando era bem jovem.
As imagem que vi me impressionaram, e iluminaram algo em mim. O cinema me deu
meios de compreender e eventualmente expressar o que era precioso e frágil no
mundo ao meu redor. Este reconhecimento, esta faísca leva da apreciação à
criação: acontece quase sem que se dê conta. Para alguns, leva para a poesia,
ou dança, ou música. Em meu caso, foi o cinema.
Com certa constância, quando as pessoas discutem
cinema, falam sobre imagens únicas. O carrinho de bebê descendo a escadaria de
Odessa em Encouraçado Potemkin, por
exemplo. Peter O’Toole soprando o fósforo em Lawrence da Arábia. John Wayne levantando Natalie Wood em seus
braços próximo ao fim de Rastros de ódio.
O sangue jorrando do elevador em O
iluminado. O petróleo explodindo do guindaste em Sangue negro. Estas são todas passagens extraordinárias na história
de nossa forma de arte. Extraordinárias imagens, certamente. Mas o que acontece
quando se toma estas imagens daquelas que vieram antes? O que acontece quando
as tira do mundo ao qual elas pertencem? Resta registros de artesanato [craftsmanship] e cuidado, mas algo de essencial se perde: o momento anterior e
posterior a eles, os momentos iniciais que eles ecoam e os momentos seguintes
cujo caminho eles preparam, e as centenas de sutilezas e contrapontos e
acidentes de comportamento e acaso que fazem deles integrais à vida do filme. Agora,
no caso do sangue que jorra do elevador em O
iluminado, você realmente tem uma imagem que existe por conta própria –
pode se manter como um filme por conta própria. De fato, acredito que estava no
primeiro trailer.
Mas aquela imagem solta é uma coisa, e como e o
que ela é dentro do mundo do filme de Stanley Kubrick é outra coisa, novamente.
O mesmo vale para cada um dos exemplos que mencionei acima, todos que têm sido exerdados
em incontáveis clipes. Tão artisticamente unidos quantos alguns destes clipes
são, os acho desconcertantes, porque eles usualmente amontam em uma série
oficial de “grandes momentos” tirados de seus contextos.
É também importante lembrar que a maioria destas
imagens são verdadeiras sequências de imagens: Peter O’Toole soprando o fósforo
seguido pelo sol se levantando sobre
o deserto, o carrinho de bebê descendo as escadas no meio do caos e brutalidade do ataque dos Cossacos. E para além
daí, cada imagem cinética separada é inclusa de uma sucessão de quadros fixos
[still frames] que criam a impressão de movimento. São registros de instantes
no tempo. Mas no momento em que se põe eles unidos, algo a mais acontece. Toda vez
que volto para a sala de edição, sinto da maravilha disso. Uma imagem se junta
a outra imagem, e um terceiro evento fantasma acontece na olho da mente [in the
mind’s eye] – talvez uma imagem, talvez um pensamento, talvez uma sensação. Alguma
coisa ocorre, algo de absolutamente
único a esta particular combinação ou colisão de imagens em movimento. E se
você tira um quadro ou adiciona algumas, a imagem na olho da mente [mind’s eye]
muda. É uma maravilha para mim, e estou longe de estar sozinho. Sergei
Eisenstein falou sobre isso num nível teórico, e o cineasta tcheco František Vlácil discute numa entrevista incluída na edição
da Criterion de seu grande épico medieval Marketa Lazarová (1967). O crítico de cinema Manny Farber
entendeu isto como elementar à arte em geral – isto que ele chamou em seus
escritos de espaço negativo [Negative Space]. Este “princípio”, se
assim você poderia chamá-lo, somente é aplicável à justaposição de palavras em
poesia ou formas e cores em pintura. Isto é, penso, fundamental para a arte do
cinema. isto é onde o ato de criação encontra o ato de ver e engajar, onde a
vida comum do cineasta e do espectador existe, naqueles intervalos de tempo
entre as imagens filmadas que duram uma fração de segundo, mas que pode ser
vasta e sem fim. É aqui onde bons filmes ganham vida como algo mais que uma sucessão
de belas composições de representações de roteiros. Isto é fazer cinema
[film-making]. Poderia esta “imagem fantasma” existir para espectadores casuais
sem a sabedoria de como os filmes são postos juntos? Acredito que sim. Não sei
como ler música e nem a maioria das pessoas que conheço, mas todos nós “sentimos”
a progressão de um acorde para outro em música que nos afeta, e por implicação
algum tipo de consciência [awareness] de que uma diferente progressão poderia
ser uma diferente experiência.
Na edição de 4 de Janeiro da TLS, houve uma crítica de meu filme mais recente, uma adaptação da
novela de Shūsaku Endō, Silêncio. A crítica, escrita por Adam Mars-Jones, não foi
completamente positiva, mas a achei pensativa e, pela maior parte,
cuidadosamente considerada. Haviam, contudo, dois pontos que problematizei: um
erro factual e uma série de afirmações sobre cinema. Escrevi uma carta para a TLS em resposta a ambos os pontos. Quando
o Editor me notificou de que a carta seria publicada (em Março de 2017), ele me
perguntou se eu não estaria interessado em escrever um texto em que poderia
elaborar minha resposta aos pensamentos do senhor Mars-Jones sobre a arte do
cinema. Decidi tomar a proposta do senhor Abell.
Ao longo dos anos,
cresci frequentemente vendo o cinema ser dispensado como uma forma de arte por
uma variedade de razões: manchada por considerações comerciais; não pode ser uma arte porque há muitas pessoas envolvidas em sua criação; é inferior às
outras formas de arte porque “não deixa nada para a imaginação” e simplesmente
solta um feitiço temporário sobre o espectador [viewer] (o mesmo nunca é dito a
respeito do teatro, ou da dança, ou da ópera, cada uma delas que requer do
espectador a experimentar a obra dentro de um determinado período de tempo). Estranhamente
o suficiente, me encontrei em muitas situações em que estas crenças são dadas
como certas, e onde se assume que até mesmo eu, em meu coração dos corações [in
my heart of hearts], deveria concordar.
Não quero implicar que o senhor Mars-Jones aceite
todas estes posicionamentos elencados acima. Contudo, ele aparenta ter uma
opinião sobre o cinema que é mais ou menos em simpatia com tais ásperas
assertivas. “Mesmo o mais implacável dos livros filtra difusamente na vida do
leitor”, ele escreve, “enquanto um filme suspende a vida ao longo de sua
duração”. Sei por um fato que isto não é verdade, baseado em minha própria
experiência. Antes de tudo, parece para mim que tudo o que queremos é nos
render para a arte, para viver dentro
de certo filme ou pintura ou dança. A questão de como uma obra de arte é
absorvida temporalmente, seja permanecendo de pé em frente a ela numa galeria
por uma questão de minutos, lendo ao longo de uma semana, ou sentando no escuro
teatro e assistindo projetada numa tela por duas horas, é simplesmente uma condição,
uma circunstância, um fato. Então sim – quando realmente estou assistindo a um
filme do começo ao fim, não vou parar para fazer um telefonema e então começar
de novo. Por outro lado, não vou deixar o filme se sobrepor a minha existência.
Assisto, experimento, e ao longo do caminho vou vendo ecos de minha própria
experiência iluminada pelo filme e iluminando-o de volta. Estou interagindo com o filme em muitos modos,
grandes ou pequenos. Nem mesmo uma vez sentido que apenas tinha sentado ali e
deixado o filme me lavar como uma onda da maré, e então retornei aos meus sentidos
quando as luzes voltaram. A concepção senhor Mars-Jones sobre a experiência de assistir
a um filme parece ser bem diferente de minha própria. Para mim, sempre foi uma
fonte de excitação e enriquecimento. Estou certo de que o mesmo pode ser dito
de muitos de meus companheiros cineastas.
“Em um livro”, escrever o senhor Mars-Jones, “o
leitor e o escritos colaboram para produzir imagens, enquanto o diretor
entrega-as prontas”. Discordo. Os melhores cineastas, como os melhores
novelistas e poetas, estão tentando criar uma comunhão com o espectador. Não
estão tentando seduzi-los ou ultrapassá-los, mas, penso, para engajar com eles
num nível mais íntimo possível. O espectador “colabora” com o cineasta, ou o
pintor. Duas observações da “Madonna and Child
Enthroned with Saints”, de Raphael nunca serão as mesmas. O mesmo é
verdade para as leituras da Divina
comédia ou Middlemarch, ou
visionamentos de Coronel Blimp – vida e
morte ou 2001: uma odisseia no espaço.
Retornarmos a diferentes momentos de nossas vidas e vemos coisas diferentes.
Também discordo com a conexão do senhor Mars-Jones
de que qualquer adaptação de uma novela em filme pode apenas resultar em “distorção”
ou “exagero geral”. Claro, em um sentido muito importante, ele está correndo.
Alfred Hitchcock certa feita disse a François Truffaut de que apesar de sua
admiração por Crime e castigo, ele
nunca poderia sonhar com fazer um filme sobre ele, porque para fazê-lo
precisaria filmar cada páginas (em certo sentido, foi isto que Eric von
Stroheim tentou fazer quando adaptou a novela de Frank Norris, McTeague como Ouro e maldição). Mas às vezes, a ideia é pegar os elementos de uma
novela e transformá-los numa obra separada (como Hitchcock fez com o livro de
Patricia Highsmith, Pacto sinistro).
Ou, para pegar os elementos cinemáticos de uma novela e criar um filme a partir
deles (suponho que seja o caso com certas adaptações das novelas de Raymond
Chandler). E alguns cineastas realmente tentaram traduzir uma novela em sons e
imagens, criar um equivalente da experiência artística. Em geral, eu diria que
a maior parte de nós responde ao que lemos e no processo tenta criar algo que
tenha vida própria separada da novela fonte.
Como disse, achei a crítica do senhor Mars-Jones
considerada [thoughtful], e não quero questionar
seus posicionamentos sobre meu filme. Mas enquanto um cineasta em trabalho,
quero defender a forma de arte a qual devotei a melhor parte de minha vida, e
que tem me dado tanto.
Artigo publicado
originalmente em: http://www.the-tls.co.uk/articles/public/film-making-martin-scorsese/