(esse texto contém revelações da trama)
Ataque
dos cães foi o vencedor nas categorias melhor filme de drama e diretora na
silenciosa edição do Globo de Ouro de 2022. Jane Campion, a célebre diretora de
O piano, viaja até o estado de Montana, nos EUA, para instalar o cenário
de seu novo drama. Apesar da locação, o espectador não deve se enganar, não se
trata de um faroeste tradicional. Não temos armas de fogo, e a trama já se
passa no século XX. São os loucos anos 1920, mas parece que essa loucura não
chegou tão longe.
O filme
abre com uma voz em off, que mais tarde descobriremos ser de Peter, o filho da
dona do restaurante local. Ele diz que fará qualquer coisa para proteger sua
mãe. O primeiro contato que temos com Peter em pessoa é em seu quarto,
recortando papeis de livros e criando flores para enfeitar a casa e arrancar um
sorriso de sua mãe, a única pessoa que tem no mundo; algumas das flores ele
guarda para colocar no túmulo do pai.
Peter não é
o personagem que você espera encontrar num ambiente como esse. Alto, magricela,
muito pálido como se raramente saísse de casa e passasse mais tempo dentro de
seu quarto com livros. Não tem muito jeito para os trabalhos pesados e rudes
que são naturais àquele espaço, ficando inclinado aos trabalhos delicados, como
seu artesanato com o papel demonstra.
O
contraposto ao delicado Peter será Phil. Diferente do jovem filho da dona do
restaurante, Phil toca a fazenda da família. É um tipo durão, fala grosso, doma
não somente os animais da fazenda como também os seus empregados que o
respeitam e escutam histórias de seu passado. E Phil gosta bastante de contar
histórias de seu passado, especialmente relacionadas a Bronco Henry, uma
personagem recorrente do filme, apesar de não ser incorporada por nenhum ator.
Bronco Henry morreu, mas sua presença persiste na memória de Phil que o enxerga
por todos os lugares e em todas as coisas que faz.
Este será o
principal embate do filme. A delicadeza dos novos tempos chegando ao cenário
rural contra o rudimentar antigo do já posto. Esta busca pela delicadeza dos
novos tempos também se encontra no irmão de Phil, sempre bem vestido, que
prefere andar de carro do que de cavalo, e que se casa com a dona do
restaurante porque ela lhe parece trazer um pouco dos ares daquele mundo de
sofisticação ao qual lhe foi negado.
Numa
conversa entre Phil e George, seu irmão, descobrimos que o rude Phil teve a
oportunidade de ir para a universidade, enquanto George falhou no exame de
admissão. No gestual cotidiano, a sofisticação do ensino superior passa
distante desse passado de Phil, estudante de filologia e línguas clássicas como
o latim. George, de terno, busca transpor pelas aparências a personalidade de
alguém que ele não conseguiu ser. Seu romance com Rose também faz parte disso.
Compra um piano de cauda e pede para que a esposa aprenda algumas músicas para
tocar na festa com o governador. Rose, há muito tempo, tocou como acompanhante
de filmes mudos no cinema. Não acerta mais tocar e cada vez mais parece se
sentir abrigada pelo ambiente de sufocamento que a cerca. Sente-se oprimida
pela rusticidade de Phil, e começa a beber, como já fizera o pai de Peter – e
que nos é revelado que foi de alcoolismo que ele morreu.
Deste
quarteto, Jane Campion revela o tema de seu filme. As relações sociais entre as
pessoas são pautadas pela superficialidade do que enxergamos. Phil age como um
machão e a sua sexualidade em momento algum é questionada pelos seus
funcionários. Enquanto isso, basta Peter sair de dentro da casa onde moram os
patrões da fazenda (Phil e George) para ser insultado com termos que sugerem
sua homossexualidade. George, ao se vestir como um homem da cidade, como um
burguês bem estabelecido, nutre anseios de ascendência social. Rose, por outro
lado, instalada no ambiente em que Phil é a mola mestra, sente-se atraída à
baixeza a que seu marido falecido foi levado.
No jogo de
aparências, Phil ganha proeminência. Fazendo comentários sobre o comportamento
de todos, lançando julgamentos contra todos, Campion dedica-lhe um olhar mais
aguçado para enxergar o que nem todos enxergam. Requer sagacidade para ver as
silhuetas de um cão nas rochas das montanhas que circundam a fazenda dos
irmãos. Seu modo de expressar não é comum, Phil utiliza belos jogos
linguísticos, dobra o inglês a seu favor compondo imagens pouco comuns para
alguém de pouco estudo, justificado pela sua educação superior.
Na primeira
noite de casados de seu irmão com Rose, ouvindo os gemidos do amor atravessando
as paredes, Phil desce até a estrebaria para limpar a cela que pertenceu a
Bronco Henry. A sela se encontra numa espécie de altar dedicado a alguém que
foi muito importante na vida dos irmãos. Phil não cansa de dizer todas as
coisas que aprendeu e o débito que ele e o irmão têm com Bronco Henry. Mas esta
cena é diferente. Campion captura o flagrante erotismo do movimento das mãos de
Phil ao limpar a cela de Bronco Henry. São nestes pequenos gestos que o
verdadeiro eu das personagens se mostra atrás da crosta apresentada. Não
são necessárias palavras para que o espectador apreenda o que as personagens
buscam esconder das outras personagens, e isto somente se faz com o registro
cuidadoso feito por Campion das coisas mais simples. De um lado, o erotismo
delicado de Phil tecendo uma corda de couro para Peter. De outro, o bruto investigar
de Peter abrindo uma lebre para retirar seus órgãos e estudá-los.
Nos
pequenos gestos, Campion desvela o homoerotismo de Phil, sua paixão persistente
por Bronco Henry, sua curiosidade por Peter. Eis uma personagem que se vê
obrigada a se encerrar numa personagem distante de quem realmente é. Dotado de
profunda sensibilidade ainda presente em seu vocabulário, Phil tem que vestir a
máscara do machão para sobreviver num ambiente áspero à sensibilidade. O seu
desfecho fatal, contudo, pesa desfavorável à obra. Não entraremos em detalhes,
mas a morte de Phil ao final soa como uma persistência conservadora do cinema
que chega aos grandes prêmios.
Por anos,
Hollywood foi regida por um código que impedia aos filmes retratar certos
personagens ou certos comportamentos. Extremamente conservador, o código Hays
impedia, por exemplo, que num filme de grande estúdio de Hollywood fosse
representado um casal interracial. Somente na década de 1960 é que filmes
começaram a apresentar um homem negro e uma mulher branca, por exemplo, fazendo
par romântico. Jane Campion realiza seu filme bem distante do sistema de
estúdios de Hollywood, mas a mentalidade industrial deste cinema dita certas
formas de como enredar as tramas. O mesmo código que impedia casais
interraciais em filmes impedia a presença de homens “afeminados”. Com o progressivo
rompimento da barreira que foi o código, personagens homossexuais começaram a
aparecer no cinema, mas com frequência ainda sob a luz de negatividade
derramada pelo código. Quando não se trata de vilões (a megera masculinizada de
Rebeca, de Hitchcock), temos os homossexuais acometidos por doenças ou
levados a óbito ao final. De todo modo, num filme que chega às grandes
premiações e que pensa de acordo com a grande indústria, ser gay é um problema.
A quem interessar, este tópico é muito bem tratado no documentário The
celluloid closet, de Rob Epstein e Jeffrey Friedman, que trata do retrato
hollywoodiano sobre a homossexualidade.
Podemos,
então, relembrar os filmes badalados no Globo de Ouro e nos Oscars: Philadelfia
trata de um homem com AIDS, As horas temos um homem com AIDS que
morre, O segredo de Brokeback Mountain um dos gays protagonistas morre
(quem não morre é porque não se identifica abertamente como gay), O clube de
compras Dallas trata de gays com AIDS, O jogo da imitação o gay é
castrado quimicamente. Moonlight é a saudável exceção nesta lista. O
retrato que o cinema das grandes premiações faz é de que tem algo de errado com
ser gay, mesmo em suas tentativas mais avançadas de um discurso progressista.
Para um filme protagonizado por homossexuais chegar à grande premiação é
necessária uma espécie de punição cósmica que o deixe doente ou leve à morte. E
eis o meu problema com Ataque dos cães. Apesar de sua beleza em
registrar o homoerotismo contido de Phil, encontramos mais uma personagem homossexual
encerrada num universo teleológico. Caso Phil se identifique abertamente como
homossexual, seu meio rudimentar dará o seu jeito de engoli-lo. Continuando em
sua fachada, Phil é atraído para uma armadilha e morto. Faça o que fizer, a
homossexualidade de Phil é uma sentença de morte.
Ataque
dos cães demonstra como carregamos certos julgamentos morais
inadvertidamente. Tenho minhas dúvidas de que a intensão de Jane Campion fosse
a de realizar um filme marcado pela teleologia. O cinema hollywoodiano exportou
para todo mundo formas de contar históricas, exportou formas de como filmar
estas histórias. Existem modos do que é certo e do que é errado que são
ensinados em muitos cursos de cinema e em manuais de como filmar. Unidos a
estes filmes vêm carregados também uma moral que é engolida junto à comoção do
final feliz. Acostumados a presenciar muitas mortes no cinema que pouco
importam, precisamos repaginar nossa mentalidade para enxergar as mortes com um
novo olhar: elas apresentam uma forma de quem cria a obra olhar para o mundo,
às vezes uma visão imposta, às vezes uma visão proposital.
essa crítica foi originalmente publicada no site A Terra é Redonda.