[atenção,
este texto contém revelações da trama do filme]
Roy Earle (Humphrey
Bogart) recebe um perdão não explicado vindo diretamente do governador. Qual
poderia ser a motivação do governador em conceder tal indulto a um ladrão de
bancos convicto, que assim que sair da prisão será levado até seus comparsas
para planejar mais um roubo, desta vez de cofre num hotel na costa leste dos
EUA?
O roteiro do lendário
John Huston, em parceria com o autor do romance que gerou High Sierra
não responde a estas questões. O que fica estabelecido desde o princípio é que
Roy Earle é um bandido de cara muito bem conhecida por aquelas bandas, e
precisa de novos ares para poder atuar.
Passando por uma
fazendinha, onde aparentemente cresceu, Roy encosta o carro para sentir o ar e
conversar com um homem encostado numa cerca: é a idílica vida no campo. Um menino
passa por ali com uma vara de pescar no ombro. Roy pergunta se pegou algum
peixe, o menino nega. Algo nessa conversa desperta a memória do homem simples a
descansar sob a sombra: sua expressão transtornada indica que Roy tem que
partir rapidamente. Não é mais uma cidade onde ele encontraria a paz para
repouso, nem sequer para uma conversa rápida sobre qualquer banalidade.
A banalidade é um sonho
que Roy busca para sua vida, o típico bandido de coração mole, mas pulso firme
na hora de seus trabalhos fora da lei. Assegurado pelo roteiro de Huston, a
fuga de Roy em direção à vida do homem comum traduz-se por meio do encontro com
uma família de roceiros a mudar de vida. Estão indo junto com a neta para Los
Angeles. Percebendo que aquelas pessoas desconhecem por completo seu passado,
Roy se aproveita, apresenta-se ao trio apenas como “Collins”. Mais tarde o
filme cometerá mais um erro de roteiro ao fazer com que o segundo encontro de Roy
com o patriarca da família seja marcado pelo avô chamando-o de “Roy”, o que até
então não lhe havia sido dito.
High Sierra se apresenta
assim como um filme de fuga, marcante pela cena de perseguição e tentativa de
fuga na porção final do filme, mas especialmente por fuga das personagens de
suas próprias personas. Mas tal como o cachorro Pard está lá para mostrar, a
história de todas elas já estão destinadas a um caminho do qual não podem
fugir.
Roy tenta escapar de
seu inevitável destino de bandido. Enquanto planeja o roubo e espera para que
receba o sinal verde para atacar o hotel, visita a família de Velma apenas para
vê-la. Cria para a jovem uma imagem de sonho. Ela seria a moça decente,
inocente, que o levaria a uma vida tranquila em algum lugar retirado da
realidade atribulada em que vive.
Maria (Ida Lupino)
acompanha os bandidos que trabalharão no golpe junto com Roy. Foi encontrada
por um deles num salão de danças. Ela não quer voltar para aquela vida, e
também não quer permanecer com os homens que a tiraram de Los Angeles. Em Roy
ela enxerga essa possibilidade de fuga. Passa a dormir em sua cabana,
acompanha-o para o assalto, e fica com ele na fuga. Alimenta o sonho de Roy de
finalmente poderem viver uma vida tranquila com o dinheiro do assalto. O último
assalto de que tanto falam os bandidos de coração mole dos filmes de roubo.
Velma (Joan Leslie)
aparenta ser a boa moça, o sonho da vida tranquila numa casa afastada, de Roy. Desde
a primeira vista ela flerta com ele. Raoul Walsh não se furta a mostrar os
pequenos movimentos da moça aproximando-se de seu anti-herói. Sem sair do carro
em seu primeiro encontro, Velma penteia o cabelo para parecer mais bonita a
Roy. No segundo encontro, salta do carro mostrando seu pé (em plano detalhe)
manco para que Roy se apiede de sua situação.
Aparências que
desmoronam as concepções que as personagens fazem deles mesmos. O durão Roy
logo acolhe Marie e o cachorro Pard em sua cabana, nas montanhas, onde seu
bando se refugia antes do assalto. Ele paga pela cirurgia de Velma, que tão logo
vê o sucesso da operação revela que sua vida não será com Roy: ela quer viver a
juventude.
Não há um verdadeiro
julgamento do filme quanto à mudança de Velma. Ela recusa Roy, diz que quer
viver a vida, dançar toda noite como não pode fazer antes, viajar por aí. Seu avô
a abraça, compreendendo-a. Quem não a compreenderia?
Enfim, chega o dia do
assalto. Um policial entra no hotel na hora errada. Saca um revólver, atira em
Roy, que atira de volta. O policial é morto, os comparsas de Roy morrem quando
o carro vira durante a fuga com um sobrevivente: o atendente do hotel, comparsa
dos bandidos. Será ele o responsável por entregar a identidade do assassino aos
policiais. Não tarda para que a foto de Roy esteja estampada nos jornais da
costa leste também, fazendo de seu rosto reconhecível por qualquer um.
Roy recebe a chamada
para pegar o dinheiro pela sua parte das joias roubadas. No mesmo momento
descobre que seu rosto está estampado nos jornais. Sua cautela é tamanha que
faz com que Marie e Pard peguem um ônibus: a matéria do jornal descreve o trio
viajando junto. Perante tamanho cuidado, soa implausível a parada de Roy numa tabacaria
para comprar cigarros, a caminho de pegar seu dinheiro. Obviamente, seu rosto é
prontamente reconhecido, iniciando a perseguição final.
Esta é uma das cenas
mais memoráveis dos filmes de assalto. O carro de Roy corre por estradas de
terra, levantando poeira, sendo acompanhado por motocicletas e carros da
polícia. Os veículos sobem perigosamente ligeiros por pistas de colinas. A câmera
é posta em pontos chave para mostrar o perigo de toda operação. Errar o cálculo
por pouco e o carro pode escapulir da estrada, sendo engolido pelo precipício.
A rapidez da ação não
dá tempo para tanta preocupação com carros perdendo seu caminho. Não estamos a
ver um daqueles filmes em que o bandido possui todos os recursos enquanto
carros policiais batem em tudo, explodem, caem de ribanceiras.
A história de Roy Earle está toda
desenhada para que seu final seja tão cerrado quanto o topo da montanha onde
ele se refugia. Tentando escapar da polícia pelo único caminho que lhe parecia
possível, a personagem de Bogart também se encurrala num caminho sem volta.
A estrada termina e ele
não tem para onde correr senão subir a montanha com armas em punho. Consegue um
bom lugar onde ficar entrincheirado, de onde pode atingir os policiais em sua
perseguição, mas não pode ser atingido. Lá ele fica por uma noite inteira,
sendo procurado por holofotes que asseguram sua manutenção no mesmo lugar (esta
sequência certamente teve alguma influência na perseguição da montanha, em Contatos
imediatos do terceiro grau).
Ouvindo a história do
bandido cercado na montanha, Marie desce do ônibus e vai até o sítio do
confronto com Pard. Um jornalista identifica-a, é a mulher que acompanhava Roy
Earle. A polícia a mantém sob custódia, para que ela convença Roy a se
entregar, mas ela recusa. Serão os latidos do cachorro que farão a
identificação da presença de Marie na montanha, desguarnecendo Roy de seu lugar
de segurança.
Desarmado, Roy é
alvejado por um atirador de elite. Encontra sua liberdade uma vez que reconhece
a incapacidade de experimentá-la a fundo enquanto estiver debaixo desta persona.
Seu rosto é conhecido por todos, sua figura de durão, de bandido nunca o
abandonarão. Marie e o cachorro são a desculpa para que a vida idílica buscada
por ele finalmente se concretize de modo radical através da morte – num sentido
cristão, seria sua verdadeira libertação, por meio do amor encontrado em Marie
e Pard.
A imagem final de Roy é
velada por Walsh. Seu corpo desceu rolando pelas pedras até parar junto a um
arbusto seco. Não vemos seu corpo da cintura para cima, apenas suas pernas. Este
é o princípio do processo de liberdade definitiva de Roy Earle, o abandono da
imagem batida do bandido, da identidade de fora da lei que o perseguiu de costa
a costa do país.
Tal como a pergunta
esdrúxula de Patricia Franchini perante o corpo de seu amante morto ao final de
Acossado (qu’est ce que c’est déguéulasse), Marie pergunta ao
jornalista “what does it mean when a men crashes out?”, desta vez
recebendo uma resposta: significa que ele está livre, responde o
jornalista.
Curioso encontrar nos
cabelos de Marie o laço que em Velma eram sinal de sua inocência. Marie,
chorando o amante morto, é inocentada pelo liberto. As máscaras finalmente
caem, revelando a candura da maldade.