Manohla Dargis
Tradução de Yves São
Paulo
cena do filme Maldição, de Béla Tarr, 1987 |
Nosso complexo industrial de
entretenimento atua como se apenas um punhado de filmes blockbuster dos grandes
estúdios importassem. Ainda assim, em março de 2003, num mês rico para os
filmes dentre muitos outros, um cinéfilo de Los Angeles poderia ir a um cinema
da universidade, uma sala de arte ou para uma cinemateca, e assistir a filmes
chineses de artes marciais dos anos 1940, o filme policial de Jean-Pierre
Melville, Le cercle rouge, e o mais novo lançamento do autor mexicano
Arturo Ripstein. Naquele mesmo mês, um cinéfilo bem comprometido poderia ter
comprado DVDs de filmes da Áustria e da Coréia do Sul, assim como poderia
comparecer a festivais de cinema em estados como os de Maine e Texas.
Hoje, o amor pelos filmes
significa comprar DVDs pela internet, se filiar a comunidades virtuais, e
preencher os assentos de festivais regionais de cinema. Ao mesmo tempo global e
local, a nova cinefilia simultaneamente abraça o velho e o novo, avant-garde e
mainstream, live action e animação, drama e documentário, celuloide e vídeo. Dá
apoio a esnobismos modernos e promove igualdade pós-moderna, venera mestres já
falecidos ao mesmo tempo que os vivos, e toma as aspirações a arte dos filmes
como obviedade. Adere à internet para buscar diretores de culto e postar críticas
de filmes famosos e obscuros. Para estes novos amantes do cinema, velhas
separações como trash contra arte, Hollywood contra o mundo, deram espaço para
uma inclusão expansiva dos cinemas de todo o mundo.
Em 1996, cinema e cinefilia
pareciam postos contra as cordas. Naquele ano, Susan Sontag publicou A decadência do cinema, um ensaio sobre o centenário do cinema lido sob a
forma de obituário. “Os 100 anos do cinema parecem ganhar a forma de um ciclo”,
Sontag declarou nesta revista, “um inevitável nascimento, a contínua acumulação
de glórias, e os primeiros sintomas de uma última década de declínio
irreversível e ignominioso”. Sontag amaciou seu veredito e disse que talvez não
tenha sido o cinema a ter acabado, mas o amor que ele inspirava. “Filmes maravilhosos
continuam a ser feitos”, ela continuou, “mas dificilmente se encontra, ao menos
entre os jovens, o distinto amor cinefílico pelos filmes que não seja
simplesmente o amor por, mas um certo gosto pelos filmes (enraizado num vasto
apetite por ver e rever o máximo possível do glorioso passado do cinema)”.
Sontag estava enlutada por um
mundo perdido, um mundo onde os filmes importavam mais que seus ganhos de
bilheteria, e onde parecia haver um cinema de arte em cada esquina de
Manhattan, mas ela não se deu conta de que um novo mundo de cinefilia estava
surgindo. Os filmes independentes americanos estavam roubando grandes parcelas
da audiência que um dia buscou uma alternativa a Hollywood em filmes
estrangeiros. Ainda assim, a cinefilia se provou admiravelmente resiliente,
suportando ciclos de declínio e renovação. Nos anos 1980, o repertório renasceu
nas prateleiras de casas de vídeo aventurosas, como a Kim’s Video, no East
Village. O VHS transformou consumidores em programadores, dando aos cinéfilos
acesso a cineastas que de outra forma estariam indisponíveis ao seu alcance;
mais tarde, o DVD transformaria os amantes do cinema em colecionadores.
É claro, num mundo de
entretenimento imparável, pode ser difícil escutar o sinal para o barulho. As
companhias de filmes independentes com nomes mais conhecidos, como a Miramax e
a Fox Searchlight, são na verdade divisões de grandes estúdios. Enquanto isso,
com a aquisição da MGM pela Sony em setembro, todos os maiores estúdios de
Hollywood são partes de corporações multinacionais para as quais os filmes
representam apenas uma parte de seus lucros totais. Dentre outras coisas, esta
consolidação causa mudanças sísmicas em como os filmes alcançam o público, de
modo que agora os impérios da mídia geram incessantemente suas próprias
defesas. No Today Show, o anfitrião, Matt Lauer, apresenta um filme da
Universal, companhia pertencente à General Electric, numa rede de televisão
pertencente à General Electric, e assim em sequência, ad infinitum.
Esta é uma das razões do porquê
de os festivais regionais terem se tornado tão importantes à cinefilia de hoje.
Apenas nos Estados Unidos existem centenas de festivais, e são muitos mais ao
redor do planeta. Em fevereiro, os amantes do cinema compareceram ao Festival
de Cinema de Santa Bárbara, na Califórnia, onde assistiram filmes da Itália,
China, Argentina, Dinamarca, Irlanda, Islândia e Irã. Enquanto isso, o Festival
Internacional de Cinema dos Direitos Humanos viajou por 21 cidades. Dentre os
filmes selecionados estavam o documentário Pinochet’s children, sobre o
ditador chileno, e Rana’s wedding, um drama sobre uma mulher palestina
atravessando bloqueios físicos e psicológicos.
Uma vez eventos culturais locais,
lugares para acompanhar um diretor estrangeiro favorito ou descobrir algum novo,
os festivais evoluíram para uma rede crucial de distribuição. São de particular
importância para pequenos distribuidores como a Kino International, que nem
sempre tem dinheiro para comprar a abertura de caminho em direção à consciência
nacional. Até mesmo cineastas cujos filmes nunca são lançados comercialmente
nos cinemas dos Estados Unidos podem alcançar dezenas de milhares de cinéfilos
entusiastas em cidades que podem não ter mais uma sala de arte local. Os
festivais são a melhor evidência pública da perseverança e expansividade de
nosso amor pelo cinema, e um complemento cara a cara do lado mais privado e
geek da cinefilia – para aqueles cinéfilos que hackeiam seus aparelhos de DVD
para ganhar acesso ao mundo do cinema, ou trocar notícias pela internet sobre o
mais novo ultraje do diretor japonês Takashi Miike.
Não surpreende, portanto, que a
cinefilia contemporânea encontre sua mais forte expressão em blogues e revistas
na internet escritas por fãs indiscriminados, pretensos crítico, acadêmicos
sérios, e os frequentes descontentes, junto com sites de críticas como
DVDBeaver, site organizado por geeks cujo apreço fetishistíco pela atenção
técnica aproxima-se daqueles de audiófilos. A internet é o lar natural para
este tipo mais raro de cinefilia, não apenas porque é barato, mas também porque
fornece comunidades prontas. Muito do que se encontra na internet é originado
por companhias de entretenimento, e muitos sites independentes dependem de
links comerciais para suporte. Ainda assim, para os melhores sites, como a
revista online Senses of Cinema, o amor pelo cinema não começa nem termina com
o último lançamento da Miramax como acontece para muitas publicações offline.
Para estes cinéfilos, o diretor húngaro Béla Tarr não é uma curiosidade de sala
de arte; ele é uma estrela. Depois de publicado, o obituário de Sontag para o
cinema inspirou outras elegias nostálgicas, ainda que muitos deles pareçam ter
chorado a perda de sua própria juventude ao invés da perda dos filmes. Estavam
saudando aquele momento quando, ao descobrir a Nouvelle Vague francesa,
descobriram seus próprios ideais de expressão de curiosidade jovial e paixão.
Hoje, audiências seletivas e até mesmo muitos críticos não têm familiaridade
com Tarr e o cineasta de Taiwan Hou Hsiao-Hsien. Não porque seus nomes não
sejam tão importantes quanto os de Bergman ou Fellini, mas porque o público e o
reconhecimento crítico de seus trabalhos são ainda limitados. A maior diferença
entre a cinefilia elogiada por Sontag e a de hoje é a homogeneidade do mercado
– e a cumplicidade da mídia – forçando cinéfilos a se tornar seus próprios
zeladores, a alcançar além dos multiplex e das cadeias de lojas de vídeos. Você
tem que buscar – às vezes bem engenhosamente – para encontrar.
Mais cedo este ano, depois de
comparecer a uma prévia da exibição do filme Zatoichi, uma tomada
estilística sobre uma personagem popular do diretor japonês Takeshi Kitano, saí
e comprei um DVD do filme. É um DVD da Região 3 e como tal não rodará na maior
parte dos aparelhos de DVD disponíveis nos EUA, designada Região 1. Em meados
dos anos 1990, um consórcio de companhias de hardware e software dividiu o
mundo em oito regiões para os consumidores assistirem apenas os discos
manufaturados para sua parte específica do planeta. Os estúdios de cinema não
querem alguém em Tóquio fazendo amostragem do último lançamento de Hollywood em
DVD antes que ele seja lançado nos cinemas japoneses. Nem querem os japoneses
que assistamos Zatoichi antes que abra nas salas aqui.
Os cinéfilos aprenderam a
circundar a proibição comprando aparelhos que toquem DVDs de qualquer região e
em qualquer sistema de televisão, ou o fazendo ao hackear o próprio aparelho.
Depois de comprarmos um aparelho de DVD feito na China, meu marido o
transformou num aparelho livre de restrições de região ao baixar um código
livre que ele gravou num CD e inseriu no drive. Agora com nosso aparelho
podemos assistir filmes japoneses sobre a Yakuza, clássicos de sala de arte
franceses, e programas de televisão britânicos que você não encontra numa loja
Blockbuster. Apesar de comprar estes DVDs pela internet com revendedores
estrangeiros, comprei Zatoichi em minha loja local porque estava lá na
prateleira. As cores em meu DVD de Hong Kong estavam meio escuras (das 17
versões disponíveis, deveria ter ido na edição japonesa), mas agora eu posso
assistir ao filme quando quiser.
Enquanto isso, o novo mundo do
“home entertainment” permite que você alugue um DVD de um filme difícil como o
sublime Elogio ao amor, de Jean-Luc Godard, pela Walmart.com, onde os
consumidores avaliaram o produto com três estrelas de cinco. Tem algo de
extraordinário na justaposição da maior companhia do planeta com Godard, mas
tal é o complexo da realidade de nossas vidas saturadas pelas mídias – está
aberta para todo mundo. Nos princípios dos anos 1960, qualquer um com um dólar
poderia ir assistir filmes, mas apenas aqueles com algum conhecimento iriam até
as salas de arte do Carnegie Hall Cinema para ver O ano passado em Marienbad,
de Alain Resnais. Hoje os cinéfilos com acesso à internet podem ir à amazon.co.uk
e comprar As Harmonias de Werckmeister, de Béla Tarr em DVD. Então eles
podem encontrar “Film Directors – articles on the internet” e ler ensaios
astutos sobre um dos diretores favoritos de Sontag.
Não muito tempo atrás, os filmes
eram maiores que a vida; hoje você pode comprar um filme, segurar em sua mão, e
levar pra casa para assistir de novo e de novo, um passo revolucionário na
curta história deste meio. Como o VHS, o DVD mudou radicalmente nossa compreensão
do significa ir para os filmes. Mas enquanto o VHS alcançou seu maior sucesso
como uma mídia alugada, o DVD se tornou produto de compra impulsiva, produtos
lançados para dentro do carrinho de supermercado junto com meias e lençóis.
Como tal, os DVDs estão direcionando os lucros da indústria do entretenimento,
e atulhando cômodos de entretenimento nas casas. Ainda assim, eles ajudaram a
criar uma nova cultura cinematográfica que desafia o imperativo de
homogeneidade da indústria, e no processo ajudaram a revitalizar a relação
entre os filmes e seus amantes. Consumidores têm mais opções do que nunca; e
também os cinéfilos.
Para aqueles que cresceram antes
da era do DVD e da internet, deve haver algo de enervante em quão pequenos os
filmes se tornaram, mas colocar uma cópia de Notas do subsolo na mochila
não faz dela menos profunda. A televisão iniciou a transformação do cinema de
um ritual comunal para uma atividade privada – e agora você pode colocar um DVD
num computador e assistir a qualquer hora, em qualquer lugar. Godard sugeriu
que você deveria olhar para a tela de cinema de baixo para cima, mas a
televisão você assiste de cima para baixo. Mesmo com o ato de assistir um filme
assumido o aspecto íntimo de ler um livro, a popularidade dos festivais sugere
que não estamos prontos para abandonar os prazeres públicos de ir ao cinema. É
muito cedo para saber o que perdemos na passagem do primeiro século do cinema
para o segundo. Aqui, ao menos na fronteira da cinefilia, o sinal está soando
mais alto que o barulho.
O texto original deste artigo pode ser encontrado no seguinte endereço:
https://www.nytimes.com/2004/11/14/movies/the-21stcentury-cinephile.html
O texto original deste artigo pode ser encontrado no seguinte endereço:
https://www.nytimes.com/2004/11/14/movies/the-21stcentury-cinephile.html