(um
comentário a Manhã Cinzenta e a
liberdade de expressão cinematográfica)
Meu pai costuma contar a história de uma exibição
do filme Manhã cinzenta realizada por
ele tempos atrás. Finda a projeção, debate aberto. Uma das pessoas na plateia
pede a palavra. Aponta para a imagem acima e diz que o filme é pornográfico. É um choque depois de
assistir ao filme escutar tal referência. Pornográfico.
Para quem proferiu tal dizer, pornografia
é simplesmente apresentar uma mulher com peitos de fora. Eis que temos uma
história da arte constituída de obras pornográficas.
Mas o caso aqui não é o de escrever sobre
pornografia. Deixo este trabalho para Susan Sontag. O nu é visto com cautela e
reserva por parte dos grupos mais conservadores da sociedade. Os artistas e
suas obras são muito abertos para a representação do nu. Seja de forma direta
como se apresenta na imagem acima, seja em suas formas abstratas como na pintura
contemporânea. É um encontro com o natural por meio do corpo. A inteligência
humana parece separar as pessoas do ambiente que as envolve. Humano e natureza
parecem dois seres distintos. Certamente que em filosofia muito já se tratou
desta separação. Em arte há a preferência pela união entre gente e natureza.
Representação dos sentimentos, demonstração do animalesco humano.
O que há na cena de Manhã cinzenta? A mulher sem nome está em cárcere. Foi presa como
subversiva pela ditadura fictícia da trama de ficção-científica do filme. Rasga
a blusa com ferocidade enquanto diz que Aurelina tingiu a bandeira nacional de
lilás. A cor da morte. O embate entre Abel e Caim. Blusa aberta, rompimento com
a inteligência científica que separa humano da natureza. Peito aberto, a
vulnerabilidade do animal humano. O seio que alimenta e dá vida à criança é o
mesmo que se rompido, morte.
Lembro então outro filme que estive a assistir
esta semana. Fahrenheit 451. Filme de François Truffaut. Um daqueles
raros casos em que a adaptação cinematográfica em nada fica em débito com a
obra original. E que ainda é capaz de trazer novas ideias para a obra original.
A certo ponto do filme, o chefe de bombeiros se intromete na ilegal biblioteca
que uma senhora guarda no sótão de sua casa. Devem queimar tudo. Porque os
bombeiros agora queimam livros, ao invés de apagar incêndios. “Todos os livros
devem ser queimados”, diz ele enquanto empunha Minha luta, de Adolf Hitler.
Manhã
cinzenta foi proibido pela ditadura brasileira. Filme subversivo que trata
da organização estudantil e da prisão de líderes estudantis durante a ditadura
fictícia. São eles julgados por um cérebro eletrônico. O poder da ciência que
nos separa dos animais que somos. Perante as máquinas surge a vergonha e os
peitos devem ser guardados debaixo de panos para que não seja vista nossa
inferioridade animal. Nosso perecer. Manhã
cinzenta foi então destruído. Todas as cópias que chegaram às mãos do
Estado. Chamas lançadas sobre o filme. Uma cópia permaneceu em território nacional,
e é esta cópia que permite que hoje conheçamos o filme.
A quem fica o direito de abolir a existência de um
filme? Ou de um livro? A moral aponta para os seios descobertos da mulher no
cárcere e aponta: imoral. Ou melhor, pornográfico.
A moral também aponta para Minha luta e
diz: imoral. Em ambos os casos corre pelos braços a comichão de lançar fogo
sobre ambas as obras. Que de forma alguma são iguais. De forma alguma partilham
de mesma ideologia. Ambas encontram-se sob o mesmo fogo cruzado do germe do
fascismo. O fascismo que nasce com Minha
luta e que é denunciado por Manhã
cinzenta. A primeira faz ode à destruição de livros. A segunda se opõe a
ela firmemente.
A certo ponto do filme, o protagonista masculino
senta a mesa de seu apartamento e lê uma passagem do livro A peste, de Albert Camus. Lemos:
“A multidão festiva ignorava o que se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece, fica dezenas de anos a dormir nos móveis e nas roupas, espera com paciência nos quartos, nos porões, nas malas, nos papéis, nos lenços – e chega talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acorda os ratos e os manda morrer numa cidade feliz”.
Hoje continuamos a ver o dedo em riste a apontar
para as mais diversas obras artísticas e pronunciar: pornografia! O nu é criminoso! O sexo é uma corrupção dos seres! O
nu e o pornográfico são lidos das
mais diversas formas. É ode a crimes. Assim como acontece com Manhã cinzenta, a pornografia intentada não está realmente lá. É uma simplificação exagerada conceituar pornografia como a presença de um corpo nu. Mesmo que seja o corpo
nu de um adulto. Por trás do dedo em riste está o julgamento moral que busca
apontar para a diminuição da qualidade artística da obra. Pornografia é má, Manhã cinzenta é filme pornográfico,
logo Manhã cinzenta é um mau filme.
Que seja atirado ao fogo!
O bacilo da peste se alimenta do fogo. Ressurge em
seu ápice quando as fogueiras são montadas. Invade a imaginação das pessoas
causando um transe cego. Invoca-se demência e atira-se meninas adolescentes à
fogueira. Invoca-se a demência judia dos artistas e atira-se seus livros à
fogueira. Invoca-se a pornografia das más obras de arte dos ditos
“intelectuais” e atira-as à fogueira. Na fumaça das fogueiras o bacilo da peste
encontra transporte e quando caem as chuvas elas invadem as casas.
E assim, a peste se encontra habitando dentro de nossas casas por bastante tempo. Vive incrustada nos encanamentos e nos tempos de maior calor podemos sentir o odor da pestilência a subir pelos ralos. Inundam-nos os narizes, os olhos. A boca e os dedos. Guiam a voz alta e o dedo malicioso. Para a fogueira todos vocês! É preciso lavar o encanamento das casas, respirar o ar puro das paisagens. Não se deixar cair em transe. É preciso enxergar que com a letra A podemos escrever não somente ARMA, mas também AMOR.
Aqui jaz o endereço para assistir
o filme e compreender que a pieguice do ultimo parágrafo é menção a passagem do
filme em questão:
ou
o documentário realizado por
Henrique Dantas sobre Manhã Cinzenta: