Por André Bazin e
Jacques Doniol-Valcroze
Tomamos conhecimento de Luis Buñuel, com quem mantivemos contato por muito tempo, no
ultimo Festival de Cannes. Durante estas manifestações, algumas de suas páginas persistiam cotidianamente a falar de sua “máscara cruel”, repetindo sem se
cansar que seu mote preferido é o adjetivo “feroz”. Nada se saberia mais longe
da realidade. Maciço, levemente encurvado, Buñuel é algo próximo de um touro
repentinamente iluminado pelas luzes da arena. Sua leve surdez é um acréscimo à
impressão de solidão de sua personagem; mais leve é a barreira a transpor para
encontrar o homem: doce, calmo, terno, reservado, incapaz constitucionalmente
da menor concessão, da menor hipocrisia. Além disso, a entrevista que se segue
é seu melhor retrato. Duas coisas o definem bem, que tanto podem definir este
espanhol misterioso, selvagem e pudico: seu olhar luminoso de entomologista e a
fórmula que há em alguma parte desta entrevista a respeito de Robinson e de Sexta-Feira: “eles se encontram orgulhosos como homens”.
André Bazin – Caro Luis Buñuel, as leituras em francês que você perdeu de ver depois de L’age d’or e Terre sans pain, e surpreendido por encontrá-lo em 1951 em um filme mexicano, seria ótimo se você pudesse contar brevemente vossa vida profissional depois dos anos de 1930.
Luis Buñuel
– Em 1930, depois de L’age D’or,
parti para Hollywood. Fui contratado pela Metro-Goldwin-Mayer.
André Bazin
– Por conta de L’age d’or?
Luis Buñuel
– Sim, por conta de L’age d’or. A
Metro viu o filme em Paris e contratou a atriz do filme, Lia Lys. Depois ela me
propôs ir à Hollywood com um contrato. Mas recusei. No fundo, não me
interessava em fazer filme naquelas condições. Em Paris, era livre para fazer o
filme que queria com amigos que me davam o dinheiro para tanto. Então, eles me
contrataram como “observador” para passar seis meses “observando” como se
faziam filmes por lá, do roteiro à montagem. Encontrei Claude Autant-Lara...
Posso dizer tudo que penso?
André Bazin
– Claro, estamos aqui para isso.
Luis Buñuel
– É uma escrita automática! [...] Então encontrei Claude Autant-Lara que estava
contratado para as versões francesas. Ao primeiro dia, o supervisor observou
meu contrato e disse: “É bastante curioso este contrato, mas enfim... por onde
quer começar?: o estúdio, o roteiro, a montagem?”. Escolhi o estúdio. Então ele
me disse: “no Stage 24 há Greta Garbo trabalhando, você quer ir observar por um
mês...”. Fui e na entrada vi Greta Garbo se maquiando. Ela me olhou com o canto
do olho, se perguntando quem era este estrangeiro, pois ela disse qualquer coisa
em uma linguagem incompreensível (era inglês) – na época só sabia dizer: bom
dia - e fez um gesto a um tipo que me
empurrou para a porta. A partir desse dia ia todos os sábados ao meio-dia
cobrar meus pagamentos para que não mais se ocupassem comigo. Ao fim de três
meses neste regime, encontrei o supervisor que me mandou assistir o ensaio de
Lili Damita – lembra de Lili Damita? – e ele me disse: “Você é espanhol?”, disse,
“Sim, mas também sou um pouco francês porque trabalhava em Paris”. De todo
modo, respondeu o supervisor, o senhor Thalberg pede para que você vá assistir
a um filme de Lili Damita. Respondi, “Diga ao senhor Thalberg” (que era o
patrão na Metro)... posso dizer o que disse a ele?
Jacques Doniol-Valcroze
– Naturalmente.
Luis Buñuel
– Disse a ele que não tinha tempo a perder escutando putas. Então terminou. Um
mês mais tarde, cancelei meu contrato – ainda faltavam dois meses para o final.
Voltei para a França, e me pagaram a viagem de volta e um mês ao invés de dois.
É tudo que fiz em Hollywood.
André Bazin
– Você fez sua estreia em França em 31?
Luis Buñuel
– Sim, exatamente em 31 de abril. Quando aderi à Republica Espanhola. Permaneci
em Paris por dois dias, depois peguei emprestado dinheiro para ir de Paris a
Madri. Depois voltei para Paris. Tinha lido qualquer coisa de Maurice Legendre,
que havia se tornado diretor do Instituto Francês em Madri, a respeito da vida
de alguns grupos humanos deixados para trás. Era uma teses de doutorado de 1.200
páginas, um estudo completo e minucioso deste tipo de vida... Este livro me
transtornou e eu pensei num filme. Eu tinha um amigo trabalhador espanhol,
chamado Acin, que me disse: “Se um dia eu ganhar na loteria, pagarei teu
filme”. Três meses depois, ele ganhou na loteria. Mas ele era anarquista e seus
camaradas anarquistas pretendiam fazê-lo repartir o dinheiro. Enfim, ele
conseguiu segurar uma boa quantia e me deu 20.000 pesetas. Não era o Peru, mas
deu para pagar a viagem de Pierre Unick, Elie Lotar e a minha. Pierre Unick,
aliás, tinha sido pago pela revista Vogue onde ele publicou uma série de
reportagens, muito interessante, que apareceu em três números.
André Bazin
– Não sei onde tinha ouvido dizer que Los
Hurdes foi um filme comandado pelo governo espanhol para fins sociais e
educativos.
Luis Buñuel
– De modo algum. Ao contrário. Ele foi proibido pela República Espanhola como
desonrando a Espanha e denegrindo os espanhóis. Os oficiais ficaram furiosos e
demandaram às embaixadas que o filme nem mesmo fosse exibido no
estrangeiro, por ser injurioso à Espanha. Assim, ele não foi projetado em
França antes de 1937, em plena guerra da Espanha.
André Bazin
– De quem é o comentário?
Luis Buñuel – De Pierre
Unick. Fizemos
em conjunto.
André Bazin
– Quem deu a ideia da música?
Luis Buñuel
– É minha, tinha ideias especiais acerca da música no cinema.
Doniol-Valcroze
– Gremillon não estava lá para alguma coisa?
Luis Buñuel
– Não, conheci Gremillon quatro anos mais tarde, na Espanha, quando o convidei
a vir como diretor. Eu era produtor. Ele foi por quase nada, porque a Espanha o
agradava.
André Bazin
– Certas cenas foram cortadas pela censura. As brigas de galos, em particular.
Luis Buñuel
– Sim. Quando o filme foi lançado na França, em 37 creio eu, foram feitos
grandes protestos em jornais da Saboia, dizendo que o turismo em Grenoble
estava ameaçado porque o comentário, à estreia do filme, indicava que certas
localidades, na Europa, na Checoslováquia, na Saboia francesa e na Espanha,
onde grupos humanos estavam presos atrás da civilização... Então a Saboia
protestou energicamente... Aquela Mme. Picabia que contou que na Saboia há uma
vila como a de Los Hurdes, enterrada
na neve caída por seis meses, onde o pão é quase desconhecido e a
consanguinidade quase total.
André Bazin
– Que relação você faz entre um filme como Los
Hurdes e sua obra anterior. Como você enxerga a relação entre o surrealismo
e o achado documental?
Luis Buñuel
– Vejo uma grande relação. Fiz Los Hurdes
porque tinha uma visão surrealista, e porque me interessava pelo problema do
homem. Vejo a realidade de modo diferente daquela que havia visto antes do
surrealismo. Estava certo disso e Pierre Unick também.
André Bazin
– Você disse que foi produtor na Espanha em 1934. Você permanece na Espanha
depois de Los Hurdes para trabalhar
com cinema?
Luis Buñuel
– Depois de Los Hurdes, trabalhei em
Paris. Não queria mais fazer filmes. Tinha os meios materiais para viver graças
a minha família, mas ficava um pouco envergonhado em nada fazer. Então
trabalhei para a Paramout, em Paris, por dois anos, com dublagem, porque tinha
sido enviado para a Espanha pela Warner Bros. para dirigir suas coproduções.
Para além disso, também fiz dublagem. Porque tinha encontrado um amigo,
Urgoiti, com quem comecei a fazer filmes como produtor. Fiz quatro sem
interesse e por isso esqueci os títulos. Depois surgiu a guerra na Espanha.
Pensei que o mundo havia acabado, que tinha de encontrar algo de melhor para
fazer que filmes; fui posto a serviço do Governo Republicano em Paris que me
enviou em 38 a Hollywood em “missão diplomática” para supervisionar, como “technical
adviser”, dois filmes que deveriam fazer sobre a República Espanhola. Chegando
lá, fiquei surpreso em encontrar o fim da guerra e me encontrei na América
completamente abandonado e sem trabalho. Graças à senhorita Iris Barry,
consegui um emprego no Museu de Arte Moderna. Achei que faria grandes coisas,
mas ao final era apenas trabalho burocrático. Eu tinha quinze ou vinte
empregados. Me ocupava das versões para América Latina. Permaneci por lá por
quatro anos. Em 1942, fui obrigado a pedir demissão porque era o autor de L’age d’or. A senhorita Iris Barry
aceitou minha demissão, aos prantos. Foi no dia de Mers el Kebir; a atmosfera
era dramática. Os jornalistas vieram me ver, mas recusei todas as entrevistas,
acreditei que aquele momento não era importante para que Senhor Buñuel esteja
dentro ou fora do Museu. Estava bastante triste, sem economias e passei como
pude os dias seguintes, mais mal que bem. Porque o Gênio americano me colocou como o speaker para os filmes do exército americano. Falei com “minha bela voz”
por quinze ou vinte filmes sobre soldagem, explosivos, peças de avião,
brevemente para os filmes técnicos que
foram feitos naquele momento.
André Bazin
– Você fala tão bem inglês?
Luis Buñuel
– Não, não, era sempre para as versões espanholas.
Doniol-Valcroze
– Vossa saída do Museu teve relação direta com o livro de Dali? Foi por ele que
descobrimos que você tinha feito L’age
d’or.
Luis Buñuel
– Sim.
André Bazin
– Você depois trabalhou para o Gênio americano?
Luis Buñuel
– Sim, em Nova York; porque fui contratado pela Warner Bros. que havia
planejado a produção de versões espanholas. É bom dizer que sou preguiçoso, mas
quando trabalho, trabalho bem. Fui então posto como produtor e era bem pago. Mas esta produção de versões espanholas
jamais começou e eu mais uma vez fui contratado como especialista em dublagem.
Doniol-Valcroze
– Em que ano estamos?
Luis Buñuel
– Passei dois anos em Hollywood, de 44 a 46 e como estava relativamente bem
pago, pude poupar o suficiente para realizar o meu ideal: não fazer nada.
Apesar disso, já não tinha mais dinheiro em 1947, quando Denise Tual me fez vir
ao México. Ela queria que eu fizesse um filme na França. Estava encantado,
acreditei ver o céu se abrir. Era A casa
de Bernarda Alta, mas esta não podia ser feita porque a família de Garcia
Lorca havia vendido os direitos. No entanto, no México encontrei Oscar
Dancigers que me propôs fazer um filme. Eu fiz e depois disso permaneci no
México.
André Bazin
– Qual era o filme?
Luis Buñuel
– Um filme de canções. Cantavam-se tangos e não sei mais o quê... muito, em
todo caso. Se chamava Gran Casino.
Era uma história que se passava em Tampico, na época petrolífera. O roteiro não
era ruim, mas havia nele os dois maiores cantores mexicano e argentina, Georges
Negrette e Libertat Lamarque. Então os fiz cantar o tempo todo. Era uma
competição, um campeonato. O filme não foi muito bem sucedido e fiquei dois
anos sem fazer nada.
Doniol-Valcroze
– Oscar Dancigers foi sempre seu produtor por lá?
Luis Buñuel
– Sim. É um homem a quem devo muito.
André Bazin –
Convencionou-se em dizer que no México você trabalhou em condições bem
“comerciais”. A produção é feita de modo a obrigar que sejam feitos melodramas
ou filmes fáceis?
Luis Buñuel
– Sim e estou sempre submisso.
André Bazin
– Mas e em Los Olvidados?
Luis Buñuel
– Los Olvidados foi feito
diferente. Depois da falha de Gran Casino
e dois anos de inanição, Dancigers manda para mim uma proposta de tema de filme para crianças. Propus timidamente o roteiro de Los Olvidados, que fiz com meu amigo Luis Alcoriza. Ele amou e me
disse para trabalhar. Entretempos se apresentava a ocasião de fazer uma comédia
comercial e Dancigers me propunha a fazê-la primeiro, uma troca que me
asseguraria certa liberdade em Los
Olvidados. Fiz então em dezesseis dias Gran
Cavalera, que foi um sucesso formidável e que me pôs em Los Olvidados. Evidentemente, Dancigers
mandou remover muitas coisas que eu queria colocar no filme, mas me deu certa
liberdade.
André Bazin
– Que gênero de coisas?
Luis Buñuel
– Tudo o que tirei tinha um interesse puramente simbólico. Queria nas cenas
mais realistas introduzir elementos loucos, completamente disparatados. Por
exemplo, quando Jaibo vai bater e matar o outro garoto, no movimento de câmera
queria, ao longe, a carcaça de um grande edifício de onze andares em construção e
queria colocar uma orquestra de cem músicos. Estava certo da passagem, ainda
que confusamente. Queria adicionar vários elementos deste gênero, mas me foi
proibida.
André Bazin – Isto
que você nos revela é muito importante, sobretudo para medir onde Los Olvidados pode passar por um filme
que tende tanto para o social quanto ao pedagógico, se inscrevendo na tradição
de Chémin de la vie, de De hommes sont nés ou de Prison sans barreux. Isto que você vem nos
dizer poderia parecer ir de encontro ao realismo social que está mais presente
em outros lugares a sublinhar no filme. É importante que você precise em que
medida este realismo é um requisito ou se ele não está lá, ao contrário, para
fazer algum tipo de modificação na mensagem poética do filme.
Luis Buñuel
– Para mim, Los Olvidados é
efetivamente um filme de luta social. Porque para creia simplesmente honesto
comigo mesmo, devo fazer uma obra do tipo social. Sei que vou nesta direção.
Além de que não queria de modo algum fazer um filme-tese. Observei coisas que
me afetaram e quis transpor ao écran, mas sempre com esta espécie de amor que
possuo pelo instintivo e pelo irracional que podem aparecer em tudo. Sempre fui
atraído para o lado do desconhecido ou do estranho que me fascina sem que eu
saiba o motivo.
Doniol-Valcroze
– Você tinha Figueroa como operador [de
câmera], mas você sempre o utilizou fora de seu estilo habitual. Em alguns
momentos você o impediu de fazer belas imagens?
Luis Buñuel
– Naturalmente, senão o filme não prestaria.
Doniol-Valcroze
– Ele deveria estar bastante descontente.
Luis Buñeul
– Muito descontente. Tinha lido nos Cahiers
a história que você tinha contado...
Doniol-Valcroze
- ...aquela da pequena nuvem? Ela é verdadeira?
Luis Buñuel
– Ela é verdadeira. O que quer dizer que não agi com ele como um ditador que
fornece um favor do gênero: “eis aí, meu amigo, o que tanto esperava”, mas o
essencial é verdade. Ao fim de onze dias de filmagem, Figueroa perguntou a
Dancigers porque foi ele o escolhido para fazer um filme em que não importava o
operador em trabalho. Ao que lhe foi respondido: “Porque você é um operador
bastante rápido, bastante comercial”. É verdade, Figueroa é extremamente rápido
e muito bom. Isso o tranquilizou. Ao começo ele estava muito admirado de poder
trabalhar comigo, quase não entrávamos em acordo, mas acredito que ele tenha
evoluído bastante e nos tornamos amigos.
André Bazin
– E El? Que representa El dentre seus trabalhos no México? Você
introduziu intencionalmente o que queríamos ver, como uma espécie de L’age d’or em filigrana em um roteiro
voluntariamente pomposo?
Luis Buñuel
– De verdade, eu não queria conscientemente seguir ou imitar L’age d’or. O herói de El é um tipo que me interessa como um
escaravelho ou um anófele... desde sempre fui um apaixonado por insetos...
tenho um lado entomologista. O exame da realidade me interessa bastante. Para El fiz como sempre no México: me
propuseram um filme e em vez de aceitar como tal, ensaiei fazer uma contra
proposição que, apesar de ser comercial, me parecia mais propícia para exprimir
qualquer uma das coisas que me interessam. Este foi o caso de El. Não tinha pensando em L’age d’or. Conscientemente, quis fazer
um filme de Amor e de Ciúme. Mas reconheço que são eles jogados sempre pelas
mesmas inspirações, pelos mesmos sonhos e de que eu poderia fazer coisas que se
assemelhassem a L’age d’or.
Doniol-Valcroze
– E a terrível cena onde o marido costura a mulher; os produtores a
compreenderam?
Luis Buñuel
– Não sei. Nas escolhas precisas dos elementos não há a escolha precisa de
imitar Sade, mas é possível que tenha acontecido sem que eu tome ciência. É
natural que eu tenha a tendência a ver e pensar uma situação apenas pelo ponto
de vista sádico ou sadista que dizem ser neorrealista ou místico. Digo: o que a
personagem deve tomar: um revolver?, uma faca?, uma cadeira? Parei de escolher
objetos mais inquietantes. É tudo.
Doniol-Valcroze
– E, ao fim, quando o herói se torna monge e sai ziguezagueando pelo caminho,
ao quê corresponde ela para você?
Luis Buñuel
– A nada. Me faz rir bastante vê-lo partir em ziguezague. Não corresponde a
nada, mas me apraz.
André Bazin
– Se Los Olvidados foi um filme
relativamente livre, El é então um
filme de comando no qual introduzistes – conscientemente ou não – muitas coisas
para você. Mas você acha que Suzanna
também, por exemplo, ou Subida al cielo
são pequenos filmes comerciais onde você introduz, de tempos em tempos, qualquer
coisa de pessoal. Para nós, eles possuem mais importância do que você os
credita e também descobrimos riquezas apreciáveis. São eles, para você, apenas
trabalhos comerciais?
Luis Buñuel
– Não. Meço pelo prazer que tive ao fazê-los. Suzanna teria sido mais interessante se eu pudesse ter feito outro
final. Foi um filme que fiz em vinte dias... mas o tempo não conta... cinco
meses ou dois dias, pouco importa, o que conta é o conteúdo, a expressão. Subida al cielo, gostei muito. Adorei os
momentos em que nada acontece, o homem que diz: “me dê um fósforo”. Esse gênero
de coisas me interessa muito. “Me dê um fósforo”, me interessa enormemente...
ou “quer comer?” ou “que horas são?”. Fiz Subida
al cielo um pouco neste sentido.
Doniol-Valcroze
– Qual é a ordem cronológica de seus filmes depois de Los Olvidados?
Luis Buñuel
– Depois de Los Olvidados, fiz Suzanna, depois outro filme que nunca
virá para cá e do qual não lembro nem sequer o título. Vocês sabem, estes
filmes que fiz no México são enviados sem que me deem aviso. É o governo que
decide, ou um arranjo entre os produtores. Eu mesmo nunca quis enviar filmes
para festivais ou outro lugar qualquer. Depois fiz Subida al cielo e depois El
bruto, outro filme bem rápido: dezoito dias. El bruto poderia ter sido bom, o roteiro meu e de Alcoriza era
muito interessante, mas sempre me faziam mudar, de alto a baixo. Agora é um
filme qualquer, sem nada de extraordinário.
Doniol-Valcroze
– Você filmou Robinson Crusoé?
Luis Buñuel
– Depois de El bruto fiz quatro
filmes.
André Bazin
e Doniol-Valcroze – Ah!
Luis Buñuel
– Robinson Crusoé, O morro dos ventos uivantes, La ilusíón viaja en tranvía... uma história de roubo de
um bonde por dois operários... eles partem de um café e cruzam a cidade com o
bonde roubado... há um rolo muito interessante, enfim, o quarto filme se chama Le fleuve de la mort: é sobre a morte
mexicana, esta “morte fácil”... você sabe que quando um homem morre, há pessoas
que fumam e que bebem pequenos copos de álcool... a vida é pouca coisa, a morta
não conta. No filme há sete mortes, quatro enterros e já não sei quantas velas
fúnebres.
André Bazin
– Robinson Crusoé é um filme
importante para você?
Luis Buñuel
– Robinson, como os outros, me foi
proposto. Não gostava do romance, mas gostava da personagem e aceitei porque há
nele algo de puro. Primeiramente porque é o homem em face da natureza, sem
romance, sem cenas de amor fáceis, sem folhetim nem intriga complicada. É
simplesmente um tipo que chega, se encontra em face da natureza e deve se
alimentar. Então o tema me agradava, aceitei e tentei fazer coisas que pudessem
ser interessantes. Acredito que ele ainda permaneça porque cortaram passagens
distantemente surrealistas e que lhes pareciam incompreensíveis. O filme começa
com o desembarque de Robinson: as ondas atirando um homem à ilha, é a primeira
imagem. No sétimo rolo ele permanece em uma solidão muito grande, sozinho com
seu cachorro. Em seguida ele encontra Sexta-Feira, mas é um canibal e não pode
conversar com ele. Passam ainda três rolos a tentar se compreender... e por fim
os piratas levam Robinson. Fiz o filme como pude, querendo mostrar sobretudo a
solidão do homem, a ansiedade do homem sem a sociedade humana. Quis também
tratar do tema do amor... queria dizer que faltam amor e amizade: o homem sem a
sociedade do homem ou da mulher. Apesar de tudo, mesmo com os cortes, a relação
entre Robinson e Sexta-Feira permanece clara: aqueles de raça “superior”, anglo-saxões, com a raça “inferior”, negra. Ao princípio, Robinson estava
desconfiado, imbuído da superioridade, mas ao fim chega uma grande fraternidade
humana... eles se veem orgulhosos como homens! Espero que esta intenção tenha
sido sensível.
André Bazin
– E O Morro dos Ventos Uivantes?
Luis Buñuel
– Este é muito curioso. É um filme que eu queria filmar à época de L’age d’or. Para os surrealistas era um
livro formidável. Acho que foi Georges Sadoul que o traduziu. Amavam o lado de
amor louco, amor sobretudo, e naturalmente como eu fazia parte do grupo tinha
as mesmas ideias a respeito do amor e achei o romance formidável. Mas não
encontrei patrocinador, o filme permaneceu entre meus papeis e Hollywood o fez
oito ou nove anos mais tarde. Não pensava mais nele quando Dancigers, que tinha
sob contrato Mistral, ator bastante conhecido em Espanha, e outra vedete
hispânica, Irasema Diliam, me pediu para fazer um filme cujo cenário não
gostei. Então ele me lembrou que lhe disse de minha adaptação de O morro dos ventos uivantes e o mostrei.
Ele aceitou. Em realidade, não mais me interessava em fazer este filme e não
busquei inovar. É então o filme como o havia pensado em 1930, ou seja um filme
envelhecido vinte e quatro anos, mas creio que seja fiel ao espírito de Emily
Brontë. É um filme muito duro, sem concessão e que respeita o sentido de amor
do romance.
André Bazin
– Dadas as condições de produção no México, você tinha que fazer seus filmes
bem rápido, não?
Luis Buñuel
– Muito rápido. Exceto Robinson.
Todos os outros fiz em vinte e cinco dias de filmagem. Para o México, esse não
é um tempo excepcional. Há quem faça em menos ainda. É muito raro que no México
um filme leve cinco semanas e somos quatro a poder conceder vinte e quatro ou
vinte e cinco.
Doniol-Valcroze
– Mesmo Fernandez?
Luis Buñuel
– Não, ele é um caso excepcional. O permitem muito mais coisas.
André Bazin
– Depois do que nos disse, notei que você guardou algumas conexões com o
surrealismo, se não de maneira oficial e ortodoxa, ao menos por inspiração.
Você não renega sua formação surrealista, guardando, ao contrário, uma
lembrança viva e sempre eficaz.
Luis Buñuel
– Não a renego de modo algum. Foi o surrealismo que me revelou que, na vida, há
um senso moral que o homem não pode dispensar de segurar. Por ele descobri pela
primeira vez que o homem não era livre. Acreditava na liberdade total do homem,
e vi sob o surrealismo uma disciplina a seguir. Foi uma grande lição para minha
vida e também um passo maravilhoso e poético. Não mais faço parte do grupo há
muito tempo.
André Bazin
– Você têm dito constantemente que era preguiçoso por uma parte e, de outra, que faliu em diversas ocasiões e de não mais fazer cinema. Nos disse igualmente, em outras conversas, de que vai pouco ao cinema. Acredito que o Festival de
Cannes seja para você uma ocasião excepcional para ver filmes. Quantas vezes
você vai ao cinema por ano?
Luis Buñuel
– Muito pouco. Não queria exagerar, digamos quatro vezes. Talvez seis, talvez
dez, mas na média, quatro.
André Bazin
– Nestas condições, faz bem que retenha toda coisa profunda no cinema apesar de sua preguiça, as dificuldades que teve ao fazer
filmes e pouco gosto que por eles tenha. O que é então que o faz retornar ao
cinema, mais que a qualquer outro trabalho ou a outras formas de expressão como
o romance ou a pintura?
Luis Buñuel
– Não gosto muito de ir ao cinema, mas adoro o cinema como meio de expressão.
Não acho que seja o melhor para mostrar uma realidade que não toquemos com os
dedos todos os dias. Pelos livros, pelos jornais, por nossa experiência,
conhecemos uma realidade exterior e objetiva. O cinema, por seu próprio
mecanismo, nos abre uma janela para a prolongação desta realidade. Minha
aspiração como espectador de cinema, é de que o cinema descobre qualquer coisa em mim e isso me acontece raramente. O resto não
me agrada, já estou bastante velho. Fico contente da ocasião de poder ver
muitos filmes neste Festival [de Cannes]. Vi grandes filmes, mas tudo isso não me diz
grande coisa. O cinema descobre bem raramente o que procuro e é por isso que
quase não vou nunca. Naturalmente tenho amigos que me indicam filmes que gostam
e me obrigam às vezes de ir ver. Foi assim que vi Jeux Interdits, que me abriu uma pequena janela: é um filme
admirável. Vi também Portrait of Jenny
que gostei bastante e que me abriu uma grande janela. Do ponto de vista
profissional, sou imperdoável, deveria conhecer mais filmes, ir todos os dias
ao cinema... sou o primeiro a me culpar. No México, quando me mandam fazer uma
distribuição, nunca sei o que responder, faltando conhecer os atores. É muito
ruim, sei que prefiro ficar na minha a beber uma garrafa de whisky com os
amigos, mais do que ir ver um filme.
André Bazin
– Você disse um dia, contudo, graças a Denise Tual, que você pôde ver Anges du Péché, de Robert Bresson, e que
sua principal lembrança do filme era de uma freira beijando pés.
Luis Buñuel
– Ah!, sim, uma bela cena de um belo filme.
André Bazin
– Fiquei um pouco surpreso porque esta não é a imagem que me parece a mais
característica de Anges du Péché!
Luis Buñuel
– Sei o que quer dizer... Praticamente, não sou sadista ou masoquista. Não sou
mais que teoricamente e não aceito estes elementos como elementos de luta ou
violência. Durante todo filme de Bresson, pressenti uma coisa que anunciava,
que me atraía bastante e cuja cena ao fim sem dúvida é como uma eclosão
perturbadora. É porque me lembro somente que é o beijo nos pés de uma freira
morta. Mas assim dito, não gosto muito de beijo em pé de freira morta, nem aos
pés de vacas verdes, nem a pé algum... Mas esta, fazia como aflorar alguns
sentimentos ocultos ao longo do filme.
André Bazin – Queríamos
ainda pedir precisão quanto às suas ideias sobre a música de filme, e mais
precisamente a proposta em Hurdes.
Luis Buñuel
– Estive certa vez em Nova York em um congresso da Association of producers of documentary films e eles tinham o mais
famoso dos jovens compositores de filmes americanos. Apresentamos Hurdes e um deles, entusiasmado, veio me
perguntar como tive a ideia maravilhosa de inserir a música de Brahms. Portanto
eu nada tinha inventado, vi simplesmente que ao espírito geral do filme
correspondia a música de Brahms. Tinha colocado a Quarta Sinfonia... me lembro,
eram quatro discos de Brunswick. Todo mundo ficou impressionado com uma coisa
assim simples, quase idiota, porque pesquisam sempre efeitos e complicações.
Pessoalmente, não gosto de músicas em filmes, acho um elemento covarde, um tipo
de trucagem, salvo em certos casos, naturalmente. Fiquei muito admirado de ver
neste festival grandes filmes sem música. Poderia citar três ou quatro onde
existem fragmentos de vinte minutos ou mais sem alguma música, por exemplo La Grand Aventure... agora como estou
surdo, talvez não tenha compreendido que não tenha a todo momento uma grande
orquestra de oitenta músicos, mas não me importo e me prova de todo modo que o
silêncio era preferível.
Doniol-Valcroze
– Com efeito, La Grand Aventure,
praticamente não tem música.
Luis Buñuel
– No filme japonês, La porte de l’enfer,
a música é igualmente muito especial. Vejo, então, refletida na produção
mundial a possibilidade de suprimir frequentemente a música. Ah! O silêncio! É
isso que é impressionante! Nada descobri na música, mas instintivamente
considero como um elemento parasitário que serve, sobretudo, para inserir valor
em cenas que não possuem qualquer interesse cinematográfico. Para O morro dos ventos uivantes, me foi
entregue a meu estado de espírito de 1930 e como nesta época era um wagneriano
perturbado, coloquei cinquenta minutos de Wagner.
André Bazin – E
agora, você tem a esperança de um projeto qualquer que seja derivado de sua
vontade própria, digo, de um filme que não lhe seja imposto?
Luis Buñuel
– Tenho a ideia de um filme de dois rolos, que farei com uma equipe de amigos,
técnicos do México. Algo de bom, creio, mas que não seja comercial e que não
possa ser projetado em parte alguma além das cinematecas ou cineclubes, mas não
posso ainda falar do tema...
(publicado
originalmente em Cahiers du Cinéma,
n° 36, de junho de 1954)