Por Barthélemy
Amengual
Tati renovou a comédia ou a
ressuscitou? E que comédia? Diríamos que ele aporta um burlesco superior. Não mais aquele burlesco de Max Linder, por exemplo – mensurando uma quantidade não
mudaremos de categoria cômica –, mas diferente.
E por que qualificar este outro burlesco de superior? Nós diremos.
Havia
em Carrossel da esperança (Jour de fête) duas belas gags nas quais
já se operavam esta transmutação cômica conquistada em As férias do Sr. Hulot (Les
vacances de M. Hulot). Todos os dois possuem esta característica notável
que lhes conserva a característica da gag burlesca tendo rejeitado o conteúdo
irracional. O riso nasce, como no verdadeiro burlesco, desta espécie de rangido
de inteligência, desta vertigem fugaz onde a absurdidade empurra o espírito.
Contudo, nada é absurdo, exceto as aparências. O que faz, no espaço de um
segundo, alternar nossa consciência na contradição cômica, um fato bem natural,
e pouco risível, de uma grande verdade, um fato de observação.
Dois
feirantes conversam ao seio de uma multidão, em algum lugar. Uma feirante vem de
seu trailer na caravana e grita: “Roger, e os cães?”. Roger, sem se deixar
distrair, coloca os dedos na boca, assoviando. Cinco ou seis cães, de todos
tamanhos, saem da caravana e se jogam nas pernas da mulher. “Ah, lá estão
eles”, diz o feirante, absolutamente indiferente. O filme, sem demora, passa
para outra cena.
Os
espectadores não falham em estimar esta gag como fina, perfeitamente idiota. É
portanto de uma admiração profunda. A feirante viu os cães na caravana. Ela
cuida tanto dos cães quanto do terceiro ou do quarto. É Roger que a interessa,
“seu” Roger que, por hora, se ocupa um pouco mais de Jeannette, a sua janela.
Inquirir pelos cães é chamar Roger de voltar à ordem, o incomodar, o fazer
lembrar que ela existe e não se deixará facilmente esquecer.
Esta
gag – que para uma, fazendo outra – se verifica cotidianamente nos bairros
populares. “Marie! Grita a mãe, cuida de teu irmãozinho? Que faz a irmãzinha?”.
A irmãzinha, sabiamente, senta diante da porta e sua mãe a vê bem. Mas é a
grande que a preocupa. Quando Marie não está acorrentada à sua irmãzinha, Deus
sabe quais culpáveis usos ela faria de sua liberdade.
O
outro exemplo concerne à cafeteira de Sainte-Sévère e as cadeiras intocáveis.
Como Tati nos apresenta este homem? Como um excêntrico que, à véspera das
festas, não imaginou nada de melhor que pintar as cadeiras. De repente, eis a personagem
que decola do mundo concreto para entrar no universo fabular dos heróis
burlescos; nosso cafeteiro torna-se um irmão da chapeleira de L’affaire est dans le sac. Que fez ele
para chegar a estado tão ordinário? Nada. É normal para ele que tome a ocasião
das festas na vila para refrescar seu material. É plausível que seja feito um
tanto tarde. Ele está infeliz por sua pintura ser de má qualidade ou pobre em
secar. É verdade que nosso homem espera ver secar a tempo seu mobiliário, pois
em breve não espera mais.
A
casca é burlesca, fabular, irracional. O núcleo é banal, concreto, verídico.
Vê-se aqui não mais que o princípio conquistado da fusão do cômico burlesco ao
cômico de observação. Mas esta dupla natureza da gag importa menos que este
tipo de ultrapassagem que Tati nos propõe, esta significação escondida, esta
cauda que floresce a gag e a prolonga a caminho de um comenta.
Em
Carrossel da esperança esta
ultrapassagem permanece ainda a cargo do espectador. Em revanche, em As férias dos Sr. Hulot, cada cauda
segue seu cometa, se posso dizer; cada gag ressoa nos comparsas e parceiros do
Sr. Hulot. Estes que se veem desafiados pela gag e revelam – apesar deles –
algumas implicações. Ninguém, no filme, nem os feirantes, levam em conta o
incidente da chegada dos cães. Ninguém, em Carrossel
da esperança, acha absurdo que se deva sentar em caixas de cerveja. O
absurdo é por nós, na sala, observado. A primeira lei do burlesco é que sua
falta de lógica seja lógica, que sua irracionalidade seja, estranhamente,
racional, que sua absurdidade obedeça a uma misteriosa significação da qual
todos os protagonistas parecem deter a chave. O universo burlesco é coerente,
sem hiatos ou falhas, como nosso mundo real. Ele não sabe ser absurdo. Os seres
que o habitam são harmoniosos. Feitos para ele como os peixes para a água. É
quase certo, às vezes, ligeiramente aturdidos com aquele que chega. Mas nós, em
nosso mundo normal, o normal inesperado não nos surpreende jamais? De todo
modo, eles não se questionam.[1]
Para
dizer como os filmólogos, o absurdo não está no universo fílmico, eles está na
consciência do espectador. Tati inventa de introduzir seu burlesco no filme. Sr.
Hulot executa qualquer ação, diz qualquer frase, e seus comensais se veem
implicados, forçados a tomar posição, a se engajar, a informar sua definição
entre eles. Claramente, ou com a maior ambiguidade, eles compreenderam a
estranheza do Sr. Hulot, adicionando também seu próprio embaraço, e mergulham
em um mal-estar curioso, provocado pelo clima bizarro que, espectadores,
apreendemos pela nossa vez, e que aproveitamos para rir.
Assim,
a gag se concretiza em nós após uma dupla refração através da consciência das
personagens, através de nossa consciência, como são o trágico e o dramático nos
filmes destes gêneros. Antes de ser, apreendido pelo espectador como trágico,
um gesto ou evento são antes vividos como tais pelos heróis da tragédia.
Isto
que precede prova que Tati trata seu cômico seriamente.
Como um dramaturgo expande, aprofunda, agrava o trágico ao nos fazer meditar
sobre a tragédia, Tati agrava, enriquece, mascara sua comédia dobrando cada gag
de sua ressonância, de seu eco, ou de uma interrogação.
De outra maneira, poderíamos dizer
que a série burlesca (da qual Carrossel
da esperança é ainda um exemplo), Tati substituiu o romance. Assim como num
romance tudo que intriga perde em ação bruta, o autor ganha em vida interior,
em verdade. Tati rarefaz suas gags, as retarda, faz montar em torno deles uma
espuma intelectual, tecendo seus personagens com ambiguidade e dota os melhores
com uma via inquietante. E isto sem entrar na comédia. Com As férias do Sr. Hulot o burlesco encontra sua terceira dimensão: a
profundidade psicológica, fora da comédia.
Estamos tão, cremos, armados para
bem compreender aquelas declarações um pouco misteriosas de nosso autor:
“espero que o público me acompanhe como me seguiram em Carrossel da esperança. Porque é uma tentativa absolutamente
diferente, outro gênero cômico. Ao inverso do fator, o personagem do Sr. Hulot
não é engraçado em si. Ele não faz nada de extraordinário – ou bastante, talvez:
ele se contenta em ser ele mesmo. Ele é cômico para o grupo, em razão das
reações que ele suscita nas outras personagens.” Negligenciando sua proposta
moral, e os méritos de permanecer ele mesmo. Deixemos de lado as questões que
trabalha a filosofia: ninguém é engraçado em
si, porque ninguém está só no mundo; e o cômico não é uma essência que
basta de liberar. Inicialmente a relação do diálogo cômico é sempre uma vontade
de rir que se encontra com uma vontade de fazer rir. Mantenhamos a eficácia
prática da distinção.
O fator, François, pode fazer rir
só, adicionado de qualquer acessório como sua bicicleta e também de homens,
reduzidos à condição de objeto. Este riso, Sr. Hulot nos trás igualmente, mas
não é bom. O bom, o verdadeiro rir ou sorrir, o essencial, vem justamente
depois, tão breve entra em jogo a reação dos outros personagens. Hulot se torna
cômico, então, como diz Tati, pelo grupo? Ou os outros se revelam cômicos? É o
seu conjunto – Hulot mais os outros – de onde nasce o cômico, e mais
frequentemente a ambiguidade, em compor uma situação inédita.
Nem o cão louco no boliche, nem o
catalisador ou o fermento que, introduzidos num meio estável, desencadeia a
reação físico-química do riso, – estes mecanismos são comuns no cinema
burlesco. Sr. Hulot está louco pelo escândalo que chega, o bobo que obriga os
“sábios” a se interrogar a respeito de sua sabedoria, ou a se sentir
bruscamente tomados como por uma vertigem em frente a ela.
Vejamos de perto uma gag pela qual a
declaração de Tati parece ter sido feita.
Sr. Hulot, nas cabines de banho,
percebe o óleo do corpo da loura tímida. Ele esfrega os olhos, sem querer
tocá-la. A mãe, numa cadeira, monta guarda, se equivoca quanto ao interesse e a
satisfação que expressa o olhar de Hulot. Ela então aluga este pedaço da praia,
onde, como disse o prospecto do Sindicato de Iniciativa, o passeante não tem
uma bela vista.
Nada disto é cômico, nem Sr. Hulot,
salvo o desprezo da mulher. Mas onde está a novidade? A bem dizer, não há
nenhuma. Esta descrição sempre nos fornece a mola com a qual as gags mais
originais são elencadas. Um caminho cruel e perigoso que dispara os mecanismos
que retém os calços da embarcação. E aí está o mar. A proprietária tenta
adivinhar o autor do golpe. O infeliz vê que Sr. Hulot, distraído pelo
espetáculo do barco em fuga, precisamente se seca sem estar molhado e mais, faz
correr sua toalha de alto a baixo. A anomalia deste comportamento excita a
suspeita da azia do pescador. Mais tarde, à mesa, ele continuará a oprimir com
insinuações o infeliz e inocente Hulot.
É inútil provar que, pela arte de
Tati, este duelo ambíguo, meio mudo, mas realista, importa a vantagem da gag
fabular da toalha. O skecht da partida de tênis funciona da mesma maneira,
rigorosamente, assim como do baile, do casal solitário e noturno, da bola de
pingue-pongue extraviada, do Amilcar rebocado, do fim do enterro, e ainda dos
surpreendentes genes que se infligem mutuamente os dois garotos da pensão.
Alguns, não dobrarão sobre o patrão todas as gags do filme. Mais se revelam do
burlesco primitivo, fantasma mais ainda fantástico, fantástico mais que
irracional.
Tudo isto não é construído de acordo
com esta obra abundante. E algumas escórias atrapalham, chega também
frequentemente às “caudas” que são desligadas de seus cometas, que a ordem de
sucessão dos momentos cômicos sejam desorganizados e que mais gags brutas
acorrentadas a mais ondas de eco, de ressonância, de vertigens burlescas, sem
saber para conectar de modo preciso a uma gag o pretexto gerador. De resto, a
favor desta indecisão, Tati confunde burlesco e pintura, irreal e realidade.
*
“Hulot não é divertido em si”. O que isto quer dizer?
Sr. Hulot executando à vista do hoteleiro uma reviravolta fulgurante, mas
enganosa, que desenha um surpreendente laço na areia, não é para fazer rir?
Deveríamos atender, para diversão, a reação
do hoteleiro, que continua sem pensionato e que crê distinguir entre as
vestimentas da maleta? E Hulot auxiliando a subida dos ocupantes no Almicar,
que difere ele do fator divertido em si? Não difere. Contudo, Tati, apressado
em fazer o essencial, passa por sua comédia. Não é a gag cômica em si que
importa, é sua exploração. E não sua exploração dinâmica e cômica, esta que
manteremos na tradição burlesca, mas esta sutil vibração realista, o contorno
de um resultado, a promessa de um abismo. O rangido do intelecto sobre o qual
se funda o burlesco do absurdo, Tati se encontra como o equivalente desta
interrupção, esta curta vertigem, esta grosseira suspenção do implícito, esta
parada brusca, um pé no ar.
André Bazin bem disse que a gag burlesca esgota uma
situação, atualizando todas as virtuosidades, eis então que Tati jamais atira a
si próprio da extremidade. Hulot, ele mesmo, é inacabado. Este inacabamento é
precisamente a reticência, a atenuação, a preterição. Mas o rangido provém de
um golpe a ser investigado; o jogo do espírito problemático nestes mecanismos,
faz uma apreensão aguda do real.
Este descolamento do valor do gesto ou do evento
burlesco em seu florescimento satírico, que faz Tati dizer que Hulot não é
cômico, se verifica ainda na curiosa maneira com que as gags propriamente ditas
são tratadas. Que seja a gag do cavaleiro arrojado, perturbando as mesas,
quebrando uma vela, levando o calcanhar à boca do tapete-leão, que seja da
hérnia de disco ou do lunático, a mala que adiciona um degrau na escada, a
muleta que, com um pontapé, fecha o cabriolet da aranha, parecendo que Tati se
dá por tarefa primeira de realização desmontar, de remontar como mecânico
rudimentar, de colocar no lugar nossa presença (é certo que não vemos Hulot
pendurar em suas costas o chicote dos quadros), de regrar em frente a nós e de
nos explicitar o funcionamento. Pequeno tratado do burlesco.
Esta redução da gag a seu princípio mecânico,
generaliza uma tentativa pouco esboçada em Carrossel
da esperança porque ela se limita ao jogo da bicicleta que roda só. Sabe-se
que Tati mesmo se interroga para suprimir. Muitos espectadores o julgam
incongruente. E é verdade que entre a pintura e o burlesco, Carrossel da esperança não encontra seu
equilíbrio. Bem que ele exprime perfeitamente, começando a excursão com a
bicicleta sem um fator, a absurda tentação da velocidade pela velocidade em que
está preso François, quando observa a única retração da emergência, esta gag
contraria o esforço de síntese, acusando a heterogeneidade dos elementos do
filme.
Eis que, em Carrossel
da esperança, a bicicleta é cômica em si, e também é improvável. Mas em As férias, cada gag é divertida – ou não
tanto – pelos personagens. Tati percebe que a extrema nudez da gag serve a
extrema complexidade de seu refluxo, e que o melhor galho para rebater as ondas
é também o mais suave e o mais redondo. É também problemático constatar,
analisando o sketch do baile de máscaras, que esta cena poética se transforma
em gag, misteriosamente, ao momento preciso em que Hulot gira o botão do som e
dá plena voz à música. Então todos os outros pensionistas se aproximam e o
velho senhor flácido, corre os olhos pela janela. Pequenas causas, grandes
efeitos; é também um caminho do burlesco.
*
O que leva então, Tati, a chegar a seus fins
paradoxais que ele é o primeiro a dar: funde a comédia de costumes e a comédia
burlesca, os casais apaixonados, não somente a união, mas mudar o um no outro
para que façam apenas um quadro estético?
Aparentemente, estes dois protagonistas, Tati os
envia ao encontro um do outro. O amor não exclui a razão. Ele demanda de cada
um metade do caminho. Que o burlesco atenua sua irracionalidade: que a
realidade dos costumes e dos caracteres docemente sejam irreais. Tati está,
então, preso a banalizar seu burlesco, a fazê-lo tocar em terra, a fazer
dotá-lo do máximo de verossimilhança e de credibilidade, ao mesmo tempo que
altera insensivelmente a fisionomia de sua vila em férias, aquela que
tranquilamente possui um tipo de sub-realidade.
Tradução de Yves São Paulo.
Publicado originalmente em: Cahiers du cinéma, n° 32, fevereiro de 1954.
Publicado originalmente em: Cahiers du cinéma, n° 32, fevereiro de 1954.
[1]
É reconhecido que Carrossel da esperança não é um perfeito
burlesco. François, o fabricador, está colocado entre parênteses por seus
concidadãos e por duas feirantes. Idiota da vila que bebe, que atira “para
cima”, justifica mais facilmente a separação entre a observação e o burlesco, a
vila e o boneco.