segunda-feira, 10 de junho de 2019

Introdução à metafísica da cinefilia


Apresentação para o III efiba

A cinefilia é costumeiramente tratada nos estudos de cinema como um movimento cultural. Sendo um movimento cultural, alguns destes estudos realizam recortes muito específicos de períodos e localidades que abraçaram a “cultura cinéfila”. Curiosamente, a cinefilia assim tratada é fruto das grandes metrópoles dos países mais bem desenvolvidos economicamente, estando ligada à intelectualidade nova iorquina ou parisiense.
Soa inquietante para quem não se encontra nestes centros e se identifica com a cinefilia – mesmo em alguns detalhes da noção de cinefilia descritos por estes mesmos estudos. O caso mais particular destes estudos é o de vincular a cinefilia a um saudosismo de movimentos populares que não mais existem – a exemplo dos cineclubes parisienses dos anos 1940 e 1950 – a um maquinário econômico existente apenas em alguns grandes centros – somente em grandes metrópoles como Nova York ou Paris que é possível pensar salas de cinema de bairro.
Este é o caso da análise de autores como o historiador e crítico de cinema francês Antoine de Baecque e da filósofa estadunidense Susan Sontag. Ambos prontamente escrevem sobre a cinefilia apontando para uma suposta morte da cinefilia vinculada ao fechamento das salas de cinema dos grandes centros urbanos depois da popularização da televisão nos anos 1970. Em ambos os casos, a noção de cinefilia vem diretamente vinculada a uma historiografia do espectador de cinema que prioriza as experiências posteriores à criação da Cinemateca Francesa nos anos 1930.
Se até os anos 1930 existia uma grande dificuldade de criar uma unidade da narrativa histórica do cinema, isto se dava particularmente pelo esquecimento parcial em que caíam os filmes. Até meados de 1935, um filme que saía de cartaz dos cinemas estava fadado a ser esquecido porque não havia outro lugar onde ser exibido, sendo-lhe dedicada a prateleira para aguardar os incêndios comuns dos armazéns de filmes ou o estrago do filme em película.
O trabalho da Cinemateca Francesa é notável, especialmente para estudiosos da arte cinematográfica. Mesmo depois de sua criação, os estudiosos de cinema somente podiam contar com relatos de outros espectadores para comentar filmes influentes desta arte – é o caso de Walter Benajmin, por exemplo, ao escrever seu A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica, vasto conhecedor da arte cinematográfica, mas que em muitos casos somente podia ter acesso a certos filmes com o auxílio de descrição de críticos e outros espectadores.
Mas por outro lado o trabalho da Cinemateca Francesa serviu para que o pensamento centralizador de pesquisadores franceses começasse a apontar a história do espectador de cinema como nascendo junto ao empreendimento de Henri Langlois, fundador da casa. É o caso específico de Antoine de Bacque, que escreve um livro muito detalhado sobre a cinefilia francesa abarcando o período de 1940 a 1960 – período prolífico para a cinefilia francesa, quando se podia ter um cineclube onde se encontravam operários de fábricas e intelectuais do nível de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir numa mesma plateia. Logo nas primeiras páginas de seu estudo, Baecque deixa muito clara o que considera como sendo cinefilia ao dizer que ele próprio se identificou com a cinefilia em seu momento de declínio, nos anos 1970, quando muitas das salas de Paris estavam a fechar por falta de público, público este atraído pelos aparelhos de televisão, muito mais cômodos em ofertar uma experiência audiovisual.
A leitura de uma cinefilia passível de entrar em declínio e vinculada a grandes centros urbanos é redutora. Não somente porque compreende que o cinéfilo é somente aquele que visita com frequência as salas de cinema de determinado circuito exibidor, como também compreende que a cinefilia nasce junto com o surgimento de uma instituição específica, a Cinemateca Francesa. Diferente do que pode ser encontrada nestas incursões historiografias, a cinefilia pode ser encontrada em relatos anteriores à criação da Cinemateca Francesa e em sociedades marginais aos grandes centros urbanos. É o caso do filósofo e psicólogo Hugo Munsterberg, que ainda em 1916 publica, no ano de seu falecimento, o primeiro tratado inteiramente dedicado ao estudo da arte cinematográfica – no qual ele prontamente se posiciona como defensor de que sim, o cinema é uma arte. Neste tratado, Hugo Munsterberg se mostra como um cinéfilo prolífico, conhecendo a produção de anos anteriores como os lançamentos mais recentes – apenas dois anos após o surgimento de Charles Chaplin nas telas de cinema, Munsterberg já era capaz de notar ali um gênio desta arte.
Portanto, existe algo na cinefilia que antecede os estudos sociais – que mesmo em seu reducionismo, na forma dos recortes dos autores aqui listados, mostra sua importância na análise de parte importante da arte cinematográfica, o espectador – que estaria a delinear as características do que é a cinefilia de modo mais amplo. Porque o que move o cinéfilo a retornar às salas de cinema, ou a se voltar aos periódicos dedicados a esta arte, é algo de mais profundo que se encontra inerentemente ao espectador de cinema. Daí a interpretação de que a cinefilia é, antes de qualquer coisa, uma emoção, necessitando, portanto, de um estudo estético para ampliar o entendimento a seu respeito.
Como já apontava George Dickie em ensaio clássico dos estudos de estética do século XX, é preciso tomar certo cuidado ao realizar um estudo estético. Os estetas do século XX, em especial aqueles do início da tradição analítica, eram muito pouco cuidadosos no tratamento de seus temas. O famoso ensaio de Dickie em questão faz a análise do uso do termo “atitude estética”, usado de maneira equivocada por muitos estetas listados ao longo do ensaio, que tratam o termo “atitude estética” – derivado da filosofia tardia de Wittgenstein – como análogo a outro que encontrou seu ápice nos estudos de estética na virada dos séculos XIX para XX: a atenção. Para um filósofo, especialmente para aquele que se vincula à tradição analítica, a noção de “atitude” não pode ser utilizada como análoga a outra como “atenção”. Nosso objetivo aqui não é o de adentrar na argumentação de Dickie a respeito destas duas noções, antes enxergando o motivo de ele tratar desta diferenciação a um campo de criação filosófica. Dickie é defensor de que os estudos estéticos façam um retorno à profundidade argumentativa que carregavam em seus tempos de ouro, nomeadamente no século XVIII, quando Kant e Hume não faziam seus estudos estéticos de maneira dispersa, antes fundamentando esta estética sobre uma ontologia, uma metafísica – como é particularmente o caso de Kant, ao tratar de suas questões estéticas na terceira crítica.
O que nos traz ao termo mais familiar para o público de filosofia, a metafísica. Ao estabelecer que esta é uma introdução à metafísica da cinefilia o que buscamos é realizar uma fundamentação metafísica para o estudo estético que valorará a cinefilia como uma emoção. No caso específico deste estudo, a vinculação se dará com a filosofia da duração desenvolvida pelo francês Henri Bergson.
A metafísica de Bergson, centrada na noção de duração, surge como fundamento para este estudo por sua não prontidão em delimitar a objetividade do universo, antes buscando a precisão. Muito falamos sobre autores vinculados à filosofia de Wittgenstein para agora nos vincularmos subitamente à filosofia de um metafísico como Bergson. O caso é que os dois autores não se encontram em campos tão distantes dentro do debate filosófico, partindo de premissas para a construção de suas obras muito semelhantes, ainda que não idênticas. Esta é notavelmente a interpretação dada por Bento Prado Jr. Tanto Bergson quanto Wittgenstein buscam a superação das fórmulas da filosofia moderna e antiga estabelecendo que a filosofia até aqui se ocupou de fazer as perguntas erradas e toma-las como ponto de partida. Mesmo realizando um estudo metafísico, Bergson abandona os pressupostos que carregavam as metafísicas anteriores ao estabelecer que não devemos – no âmbito da metafísica da duração – nos ocupar com perguntar sobre a essência, o conhecimento das coisas em si, da representação conceitual, a distinção sujeito/objeto. Todos estes detalhes que compõe sua metafísica são caros ao estudo estético que procuramos desenvolver aqui, uma vez que a cinefilia não pressupõe estas mesmas fórmulas.
A duração não é uma substância, antes sendo o meio encontrado por Bergson para delimitar a experiência em seu escorrer, em toda sua imprevisibilidade. Em muitos aspectos, a filosofia desenvolvida por Bergson caminha em direção de uma metafísica da ação – daí até mesmo sua aproximação com os pragmatistas, em especial William James. Mas é o próprio autor que em alguns detalhes, ao escrever sobre a arte e a experiência do espectador, encontra limites para esta ação. Em sua obra inaugural, Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência, Bergson estabelece que no caso de uma experiência mais aprofundada do espectador com uma obra artística, o espectador se encontraria num nível de submissão com a obra de arte, como que hipnotizado. Eis aqui um dos aspectos que nos fazem apropriar a filosofia de Bergson e toma-la como ponto de partida para os estudos concernindo a cinefilia como emoção. O espectador, mesmo em um nível mais aprofundado de relação com a obra fílmica, não abandona este caráter de atuação que tem sobre a obra. o que persiste a acontecer é uma troca, porque uma comunhão. São derrubadas aqui as fronteiras que delimitam o espectador como sujeito e o filme como objeto, ou vice versa. Espectador e filme passam a fazer parte um do outro, um a se embeber do espírito do outro.
Esta argumentação que pode ser realizada tendo como pano de fundo a noção de liberdade – aqui sempre tratada como noção, e não conceito, porque se trata de buscar a precisão filosófica e não a objetividade da representação conceitual. Liberdade que é pensada por Bergson no mesmo texto inaugural de sua filosofia, Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência. Antes de estabelecer a liberdade em sua acepção política e ética, de deliberação do ser humano frente aos eventos que se lhe apresentam, a liberdade na filosofia de Bergson ganha colorações mais próximas à duração, sendo a abertura do presente. Portanto, cabe separar a liberdade desta conclusão que tende a firmá-la espacialmente. A liberdade tem relação mais próxima à criação do devir contínuo. A constante marcha do universo nos presenteia com a novidade, a liberdade nos permite lidar com as transformações constantes pelas quais as coisas passam, ainda que assim não percebamos por termos nossa atenção voltada para a aparência, para o espaço e sua aparente imutabilidade.
O que nos leva a concluir que o espectador de cinema não é uma figura passiva em meio ao espetáculo cinematográfico do qual faz parte, mesmo em sua quietude corpórea ao se encontrar sentado perante uma tela onde escorrem as imagens. O espectador está em ação mesmo imerso nesta aparente quietude. O progresso da marcha da duração não pode ser transformado em coisa – a liberdade é o que não pode ser exprimido mediante uma lei, porque os estados, tal como são encontrados, não podem ser reproduzidos ou encontrados em sua duplicata.
O nascimento da cinefilia como emoção se dá precisamente na ação do espectador, a atitude inesperada de se deparar com um filme que se inscreve mais profundamente em sua consciência, e que permanece com ele mesmo depois de findada a sessão, porque de maneira mais marcante deixou seus dentes cravados na memória. Nasce da experiência de duração partilhada pelo espectador com o filme, quando a particularidade da temporalidade de um filme se inscreve em sua consciência. O espectador é duração assim como o filme que assiste é duração; ao longo da projeção do filme estas durações passam a se relacionar, de modo que o fluxo vital do espectador se confunde com o fluxo de duração do filme, que pulsa e tem vida em um modo todo próprio.
Encerro assim, de maneira abrupta, esta introdução a um estudo mais amplo, apenas para delimitar em caráter introdutório o princípio destes estudos que buscam fundamentar a emoção de cinefilia numa metafísica, esta tomada de empréstimo de Henri Bergson.


domingo, 9 de junho de 2019

Notas sobre o sublime cinematográfico


Em julho de 1961, o cineasta, crítico e então editor dos Cahiers du cinéma, Éric Rohmer escreveu um dos artigos mais conhecidos de sua carreira como teórico de cinema para esta mesma publicação, intitulado O Gosto da Beleza, que mais tarde viria a figurar como título para a coleção de artigos e ensaios selecionados ao longo de sua carreira de pensador da arte em questão.
Eric Rohmer é conhecido nos meios cinematográficos como sendo um membro que politicamente se posicionaria mais à direita dentre os escritores da revista, e dentre os participantes do que ficou conhecida como a Nouvelle Vague. Em parte por isso o valor do ensaio O Gosto da Beleza foi sombreado pelo que costumeiramente foi interpretado como um lance conservador de Rohmer em buscar a retomada de vocabulário arcaico para tratar o cinema.
A proposta do crítico e cineasta em O Gosto da Beleza é o de encarar o cinema como uma arte madura, e portanto passando do ponto de os críticos e estudiosos se debruçarem unicamente nas formas de expressão das obras fílmicas para se focar na profundidade do conteúdo destes mesmos filmes - e aqui por conteúdo que seja entendido o filme em sua individualidade e singularidade, não sua temática ou roteiro. Se for para julgar os filmes como obra de arte, que os estudiosos de cinema se apropriem do vocabulário utilizado para se reportar a obras de arte.
Os esforços da crítica foram bem realizados ao longo das décadas anteriores, reconhece Rohmer, inclusive a de seus companheiros de Cahiers e de Nouvelle Vague – ocasionais críticos. Por meio dos artigos, críticas e ensaios de André Bazin, François Truffaut, André Labarthe, e alguns outros nomes muito caros à movimentação da cinefilia francesa, foi possível reconhecer algumas mudanças de perspectiva no tratamento interpretativo de uma obra fílmica. Em 1961, data da publicação do artigo de Rohmer, nem mesmo o crítico de um periódico provinciano – escreve ele – ousaria tratar os filmes somente a partir de seu roteiro, da história que conta. Um filme conta com todo um universo de possibilidades expressivas que permitem dar um tratamento ao roteiro, fazendo com que o trabalho de contar uma história em filme vá muito além do que se encontra escrito no texto entregue aos atores.
Chega então um ponto de contraposição. Se seus colegas estabeleceram estas mudanças de perspectiva de como interpretar um filme adotando o conceito de “mise-en-scène”, tomado de empréstimo do teatro e que passa a dizer respeito mais amplamente à encenação fílmica em todas as suas características (o jogo do ator com a câmera, o posicionamento da câmera, o movimento da câmera, a montagem, a colocação da trilha sonora...), Rohmer propõe uma nova mudança de perspectiva colocando sua preferência: o Belo. Para propor o uso da segunda noção em detrimento da primeira, Rohmer diz que no Belo já é possível abarcar a noção de “encenação fílmica”, mas deixa de lado o peso técnico que esta última carrega.
A incursão de Rohmer pelo trabalho que seus parceiros de crítica realizavam até então pode ser expandido para o trabalho feito pelos filósofos ao tomar o cinema como tema de investigação – num padrão que se manteve mesmo depois do artigo de Rohmer. Os comentários envolvendo o dispositivo cinematográfico por filósofos datam desde seus primeiros dias de existência, sendo que dentre os mais famosos estão aqueles de Henri Bergson, notavelmente em A Evolução Criadora. O foco exclusivo no cinema, porém, somente terá início alguns anos mais tarde desta que é a obra mais conhecida de Bergson, quando Hugo Munsterberg publica nos EUA o tratado The Photoplay: A Psychological Study, dedicando-se inteiramente ao estudo do cinema, em 1916. Contudo, o tratado de Munsterberg não ficou tão bem conhecido entre o público geral e os acadêmicos de filosofia e das artes, somente ganhando notoriedade décadas mais tarde.
Durante esta primeira fase da história da teoria de cinema, aqueles que mais tomaram a frente para pensar a arte e suas formas de expressão foram os próprios realizadores. Na União Soviética, os cineastas mais influentes não somente trabalhavam fazendo filmes, como também auxiliavam na formação de novos realizadores de cinema. Foi destas aulas que surgiram experimentos de ordem perceptiva, para notar padrões de comportamento do espectador com relação às imagens – o mais famoso dentre eles é aquele realizado por Lev Kulechov –, assim como para pensar em novos caminhos de utilizar a montagem para melhor desenvolver uma narrativa essencialmente cinematográfica – como é exemplo com os exercícios teóricos e práticos de Eisenstein com a montagem de atrações e a dialética fílmica.
Curiosamente, é na França que se pode encontrar – ainda na década de 1920, durante o período silencioso do cinema – alguns exercícios próximos à proposição de Rohmer em seu artigo. Se na Alemanha do mesmo período ficou famoso o movimento expressionista, na França semelhante movimento acontecia de cineastas desenvolverem obras vanguardistas buscando experimentar com as formas de expressão do cinema. O grupo central do cinema francês do período ficou conhecido como Impressionista, em aproximação com o movimento das artes plásticas do mesmo país. Os cineastas, assim como os soviéticos, trabalhavam também como teóricos, ainda que diferentemente dos soviéticos não tivessem uma escola de formação de novos realizadores. Logo a crítica de cinema francesa ganhou fôlego, e já no final da década de 1910 todo jornal do país carregava uma seção dedicada a crônicas sobre a nova arte. Por meio destes espaços os realizadores de cinema podiam desenvolver suas ideias a respeito do que pensavam. A ideia que mais se aproxima daquela de Rohmer envolve a noção de fotogenia.
Assim como a noção de “encenação fílmica”, a “mise-en-scène” – um conceito tão popular dentre os críticos que mesmo no Brasil é utilizado por acadêmicos sem tradução para guardar sua amplitude descritiva dentro da teoria de cinema – “fotogenia” não é um termo novo para as artes, antes sendo proveniente da fotografia, sendo apropriada pelos estudos de cinema e carregando forte peso técnico, como sua prima “mise-en-scène”. Mas Fotogenia começou a ser utilizada pelos cronistas, críticos e teóricos de cinema nos anos 1920 como um termo para poder abarcar tanto o aspecto técnico do dispositivo cinematográfico, quanto seu aspecto estético. Um exercício de cineastas para encontrar o meio termo entre a técnica e o poético que guarda esta nova arte. A poesia seria rendida no cinema através da Fotogenia. Dentre os realizadores que se dedicaram ao estudo da Fotogenia no cinema, destacam-se Louis Delluc e Jean Epstein.
Apesar das promessas da Fotogenia para o cinema, sua definição nunca foi muito bem precisada pelos realizadores, deixando-a a cargo da intuição de seus leitores e colegas realizadores para desvendar seu mistério. É o que nota, por exemplo, Jacques Aumont, ao citar um trecho de um dos ensaios de juventude de Jean Epstein, escrevendo, “a fotogenia é para o cinema o que a cor é para a pintura, o volume para a escultura: o elemento específico desta arte” – assim começa Epstein, ao que Aumont conclui, “A fotogenia é a virtus artística do cinema. não precisa portanto de nenhuma definição particular. Daí Epstein voltar ao termo dez anos depois exatamente, em 1934-1935, para anunciar uma ‘fotogenia do imponderável’. Simplesmente, a ênfase deslocou-se da fotogenia ao imponderável: o cinema tornou-se a arte do invisível” (AUMONT, p. 92).
Precisamente este invisível, ou imponderável, passou a ser levado em consideração por críticos e filósofos ao longo das décadas seguintes. O próprio Epstein, ao se ver afastado da produção fílmica depois do advento do cinema falado, passou a cada vez mais redigir ensaios sobre o cinema abordando o caráter metafísico do dispositivo cinematográfico, dando particular atenção à relação do cinema com o tempo. Durante este mesmo período, André Bazin, mentor de Eric Rohmer, escreve uma série de ensaios acerca do realismo cinematográfico em estudos de viés ontológico, também se dirigindo ao tempo, ou neste caso em seu débito com a filosofia de Bergson, duração. Assim continuam os estudos de cinema, com Edgar Morin na década de cinema com o livro O Cinema ou o Homem Invisível, Susan Sontag em suas Notas sobre Bresson.
Até que na década de 1970 uma corrente iniciada pelo cineasta estadunidense Paul Schrader, roteirista famoso pelo filme Taxi Driver, começou a chamar este invisível, o imponderável, sob a categorização de “cinema transcendental”. O ensaio de Schrader exerce grande influência sobre estudiosos, especialmente sobre a obra do filósofo francês Gilles Deleuze, ao escrever o segundo tomo de seu texto sobre cinema. Ancorado no título de Schrader que Deleuze cunha seu famoso conceito de imagem-tempo.
Apesar da importância de todas estas concepções, permanece válida a incursão de Eric Rohmer, mas desta vez com uma perspectiva filosófica. Os estudos que se preocuparam com pensar o cinema continuadamente mantiveram suas proposições voltadas para aspectos ora técnicos, ora ontológicos, recusando o vocabulário estético que a tudo isto poderia abarcar, e ainda levaria em consideração a condição do objeto de investigação: a arte cinematográfica.
Na separação dos dois tomos de seu estudo de cinema, Deleuze realiza também uma separação “histórica” – aqui figurando entre aspas porque não trata do autor nem como uma evolução (como o fazia Bazin), nem como uma progressão, ou como havendo um momento de ruptura na história desta arte. A “história” do cinema deleuzeana se divide (como fazia Bazin) entre clássico (imagem-movimento) e moderno (imagem-tempo), uma divisão que continua a causar confusões interpretativas da obra do filósofo. A imagem-tempo seria constitutiva de características muito próximas àquelas detalhadas por muitos outros teóricos de cinema antes dele: há o tempo, o espírito, o pensamento, o transcendente. Curiosamente, no entanto, é encontrar estas características na descrição de escritores clássicos ao considerar a emoção do sublime.
O sublime foi emoção considerada por muitos autores ao longo dos séculos, caída em desuso por acadêmicos próximos à arte cinematográfica antes mesmo de abordá-la. Há, assim, o perigo de tomar uma noção desenvolvida quando inserida em determinados contextos alheios àqueles da arte cinematográfica. Quando pensado por Longino, o sublime é pensado exclusivamente no contexto literário. Quando pensado por Kant, o sublime não se prende às fronteiras da experiência com as artes. Em fato, o sublime tal como tratado por Kant em sua Crítica da Faculdade de Julgar somente será mais diretamente vinculado às artes quando pensado por autores muito mais próximos à produção artística, como Schiller, mesmo assim, ainda antes da criação do cinema.
Próximo do que Rohmer já propunha a respeito do Belo, um estudo que atualize o sublime pensando-o em sua ligação com o cinema não poderá se furtar a levar em consideração as ponderações ontológico-metafísicas em torno desta arte. O objetivo desta pesquisa é o de buscar nas fontes clássicas os estudos sobre o sublime, para que assim seja possível realizar uma atualização da noção, aproximando-o de uma metafísica e de uma ontologia do dispositivo cinematográfico.



ROHMER, Eric. Le gout de la beuté. Publicado originalmente em: Cahiers du Cinéma, Julho de 1961, Tomo XXI, nº 121, p. 18-25.

(texto originalmente apresentado no seminário da pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal da Bahia)