domingo, 15 de abril de 2018

A fantasia e a mágica do espaço em estúdio



            Finalmente tomei coragem de assistir Os Nibelungos, de Fritz Lang. Um filme que me encantou particularmente por seu trabalho em criar um épico. Raras vezes experimentei algo de semelhante. Adaptado de poema clássico de língua alemã de mesmo título, sem autor definido, o filme consegue manter certa aura desta obra literária de onde provém. Enquanto assistia a Os Nibelungos, sentia algo semelhante a quando tomo em mãos épicos clássicos de imensa magnitude para a cultura mundial. Como A divina comédia ou Odisseia.
            O filme se divide em cantos, o que por si só já mantei sua relação com a obra que adapta. E são verdadeiros cânticos, ainda que em filme mudo. Cada um destes cantos tem início por um cartão que apresenta o que acontecerá. Um resumo breve que numa frase toma todas as ações ocorridas nos próximos vinte minutos. Saber de antemão o que acontecerá em nada atrapalha nossa experiência do filme. Porque estamos ali, imersos para saber como se desenrolará a vida daquelas personagens míticas, dentro daquele cenário igualmente mítico.
            Tudo começando dentro de uma caverna. Ou o que parece ser uma caverna. E um homem de belas feições a martelar uma espada em processo de fabricação. Outro está meio escondido apenas observando o homem que monta a espada. Quando o primeiro termina a fabricação, o segundo se aproxima. Pela relação entre os dois compreendemos que um é o mestre e o outro o aprendiz. O mestre segura a espada recém-terminada e solta no ar uma pena que se parte ao meio entrando em contato com a espada. Atenção, é a pena que entra em contato com a espada, não o contrário. Um trabalho magnífico daquele que será o herói desta história: Siegfried.
            A caverna ao pé de uma árvore é um lugar curioso para começar este cântico épico. Como se estivessem a cozinhar o herói, dar-lhe um propósito. Antes disso mostrando que ele tem bastante competência de encarar o que se apresentar a frente. É um princípio que marca também a relação espacial de fantasia deste filme. Os cenários são gigantescos e construídos dentro de estúdios. Para os olhos de espectador do século XXI isso normalmente se apresenta com desconfiança. Estamos demasiadamente acostumados com o naturalismo desenvolvido no cinema. Os épicos que assim se constroem viajando metade do mundo para encontrar os mais espetaculares cenários. Para os cineastas do período mudo, este é um problema que pode ser resolvido no quintal.
            O que acontece com este cenário não é estranhamento. Muito pelo contrário, é maravilhamento. Ficamos maravilhados tão logo imergimos naquela trama. Ficando curiosos em descobrir o que aquelas duas personagens fazem dentro daquela caverna esfumaçada. Porque trabalham com fogo dentro de um local fechado. Este é um princípio para o filme que facilita aos nossos olhos o encontro com o cenário externo construído em estúdio. Nossos olhos agradecem o acalento do espaço aberto, e claro. Onde podemos enxergar os contornos mais claramente e ver o espaço para ação. Até mesmo para que um cavalo possa aparecer e Siegfried partir, desaparecendo atrás das árvores.
            É o espaço ideal para a fantasia. Um estúdio de cinema é o lugar em que a grandiloquência da imaginação pode correr solta. Quando os mundos imaginários podem vir à concretude da percepção ocular. E os filmes deste período do cinema alemão abraçam com facilidade esta grandiloquência. Podemos lembrar também de O Golem, feito alguns anos antes de Os Nibelungos, e que construía toda uma região da cidade para abrigar este conto fantástico a respeito deste ser que dá título ao filme.
            Saído daquele espaço onde se despede de seu mestre, Siegfried encontra e luta contra um dragão. Novamente o que para nossos olhos de espectador contemporâneo parece causar algum estranhamento, é perfeitamente aceitável dentro daquela trama. O dragão não parece ameaçador e Siegfried o confronta por vaidade. No cenário em que ele encontra o dragão e o derrota, há um lago com uma pequena cachoeira onde o dragão bebe água. É fascinante como este cenário é construído. Facilmente pode passar por algo real, quando não o é. E a aceitação da presença fantástica daquele dragão dentro deste espaço do fantástico se faz de modo muito mais fácil. Uma criatura fantástica dentro de um universo fantástico. O campo perfeito para a criação de um poema épico.
            Esta grandiloquência dos épicos do cinema mudo que pode ser retraçada até as grandes produções italianas do início dos anos 1910, rende em Os Nibelungos algo da aura de inacessibilidade daquele universo. Algo plenamente aceito quando pensamos bem no caso. Mas que nos é acessível por meio de um cântico clássico. Algo que poderia vir de outro período. De outros tempos. Algo talvez até mesmo feito por culturas passadas, já não dotadas de todo o conjuntos de assertivas formuladas no intervalo de tempo que nos separa. O cinema mudo frequentemente se vê neste embate de criar ficção arcaica. D. W. Griffith filmava personagens de moral fora de moda até mesmo para seu período. Ainda assim, encontrando a grandiloquência de filmes como Intolerância, algo disto é feito acessível.
            O poema épico já não é mais um formato comum de criação para os autores contemporâneos. Mesmo nos anos 1920, quando Fritz Lang realiza seu Os Nibelungos, o poema épico já não é mais um meio de expressão viável. Nem mesmo no teatro, com autores e atores trabalhando em cima de falas cada vez mais próximas do ritmo de entonação cotidiano. No caso da literatura, o espaço antes ocupado pelo poema épico foi ocupado pelo romance, talvez o mais popular dos meios pelos quais um escritor pode apresentar sua ficção.
            Ainda assim, Fritz Lang consegue com seu filme algo muito próximo do poema épico. Ou melhor, algo de muito próximo do que seria o equivalente cinematográfico do poema épico. Nisso com a construção de um mundo fantástico, habitado por personagens que somente existiriam dentro daquele mundo fantástico. Figuras construídas para aquele mundo. O que se apresenta também na figura de Siegfried. O másculo herói de farta cabeleira loura somente pode ser encontrada naquele espaço de fantasia criado para aquele filme. Em qualquer outro filme, mesmo que se trate de outra adaptação do mesmo cântico, não veremos uma figura semelhante àquele Siegfried. Ele pertence àqueles cenários. Junto com o dragão, o pássaro cujo canto Siegfried compreende como dizendo que ele deve se banhar no sangue do dragão e ser invencível, e a capa de invisibilidade que encontra com um mago na floresta.
            Tudo isto é possível graças a este espaço construído especialmente para o filme.

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