sábado, 12 de dezembro de 2015

Eu nasci, mas... (meninos de Tóquio) de Yasujiro Ozu (Umarete wa mita keredo, 1932)


A infância, para muitos autores de cinema, se constitui de um período de anarquia em que o sujeito em formação adota em seu comportamento atitudes que não são cabíveis dentro da sociedade em que se encontra inserido. A rebelião de Zero de conduta, de Jean Vigo, serve de exemplo a esta afirmação. As crianças são enquadradas, com o tempo, nos moldes sociais construídos pelos adultos, como se isso fosse o meio mais correto de convivência uns com os outros - sabemos pelo cotidiano que não é, ainda assim insistimos nesta fórmula por agradar alguns. Crescendo, aceitamos tais ditames por um misto de conformismo e comodidade - lutar contra tudo isso não é fácil. Vigo, em seu filme, põe as crianças para gritarem contra estes moldes sociais que lhes tiram a imaginação e a capacidade de serem pensantes para que se tornem somente parte do gado humano. Mas este é um lado bem próprio do pensamento anarquista famoso de Jean Vigo.

Por outro lado temos um filme como Eu nasci, mas..., de Yasujiro Ozu. O cineasta japonês não é um famoso anarquista. Muito pelo contrário, seu posicionamento político nunca ficou muito claro. Será que Ozu defendia alguma bandeira ideológica? É possível que sim. O que sabemos é que seus filmes apresentam sempre a transição na vida das pessoas. Como bem captura Wim Wenders em Tokyo-Ga, a imagem recorrente dos trens nos filmes de Ozu é esta metáfora. O trem é o que nos leva de um espaço a outro, o filme de um momento a outro da vida de um personagem. Neste Eu nasci, mas... temos uma obra ainda do período mudo do cineasta.


Dois irmãos, acompanhando o movimento dos pais, se mudam para Tóquio e chegam a uma nova vizinhança. As crianças da vizinhança já estão bem dispostos em um grupo hierárquico que toma como figura central um garoto brigão, que nem todos querem encarar por ser maior do que todos eles. Um dos dois irmãos, comendo um pão e brincando com um aparelho, tem seu primeiro contato com este grupo. Ameaça entrar numa briga com o garoto mandão, mas sai chorando assim que leva o primeiro golpe. Dá-se aquilo que parece ser o modelo mais primitivo de vida em sociedade: a violência. O mais forte é quem comanda, e os outros, por medo, obedecem.

O garoto chama seu irmão, não muito mais velho, não muito maior que ele, mas um tanto mais corajoso. O menino enfrenta o manda-chuva local, mas não vai muito mais longe do que isso. No dia seguinte, os dois recuam e não entram na escola ao ver, no pátio, o garoto que os ameaçou. Este medo que as crianças sentem deste garoto mais forte que estuda na mesma turma que eles fomenta uma admiração tardia. Na sala de aula, em meio a um ditado do professor, o manda-chuva quebra um ovo de pardal na mesa e come o seu conteúdo ainda cru. Os meninos fazem a sua caça na mesma tarde imaginando ser aquele o segredo que deixa o brigão, forte.


Os meninos pensam em seguir os seus passos. Seu pai lhes diz para serem importantes, e quando criança para ser importante é ser forte. É ter a capacidade de brigar com aquele garoto que os chama para briga e derrotá-lo. Mas eles somente conseguem tirar este garoto de lado quando surge um menino mais velho e maior que desfaz este comportamento do garoto brigão.

Estudam para tirar boas notas, e até fingem as boas notas para agradar os pais. Principalmente o pai que os acompanha por boa parte do caminho falando o quão bom aluno era, de como tirava sempre boas notas, e de como é importante estudar para se tornar alguém importante. Frente a esta propaganda, as crianças veem em seu pai uma figura impressionante. Mas, assim como nos mostra Ladrões de bicicleta, chega o dia fatídico em que encaramos nosso pai como ele realmente é, não como o ser perfeito que idealizamos em nossos primeiros anos, e sim enquanto o ser falho que ele realmente é. Numa exibição de um filme da companhia em que o pai trabalha, os meninos têm a grande revelação de que a fala de seu pai não queria dizer a verdade. Nas imagens projetadas na tela, os meninos veem que o pai é um puxa-saco dos chefes.


As crianças descobrem a grande injustiça da sociedade dividida em classes, e como é realmente estar por baixo. Viam-se por baixo do garoto mais forte, mas ainda assim alimentavam a ideia de poder estar por cima por meio dos estudos. O que escutam do pai lhes joga um balde de água fria. Mesmo que estudem, pode ser que não venham a ser alguém importante. Transformarem-se num simples funcionário como o pai é para o pai de um de seus amigos. É a primeira visão da criança do mundo em que vivem, e o viver um dia após o outro não é outra coisa senão o conformar.

O pai encontra no caminho da escola o chefe que também leva seu filho. Envergonhado, o pai para na estrada na tentativa de evitar o confronto com o homem. Os filhos, já tendo compreendido a situação do pai, insistem para que ele vá falar com o homem. As crianças pautam a sua relação com o menino filho do chefe. Com ele, tratam de manter a sua superioridade numa brincadeira que obriga seu parceiro a deitar no chão de terra. Mas enquanto criança, vai tudo bem, e assim eles se abraçam. A organização da vida em sociedade é injusta, pondo uns sobre os outros. A uma primeira visão o filme, Ozu pode nos parecer conformista, colocando os meninos filhos do empregado junto ao filho do patrão, quando na verdade ele foge daquele final de 1900, de Bertolucci. Ao invés de permanecer nesta luta eterna, por que não juntarem-se todos? Mais uma vez é por meio do olhar da criança que o cinema encontra a resposta para o mundo dos adultos. E teimamos em acreditar que é só coisa de criança.


Mas será que Ozu coloca este final em seu filme ou somos nós quem o inserimos no filme? Se analisarmo a mise-en-scène de Ozu, vemos um cineasta preocupado filmar determinadas personagens. A câmera fixa não invade o espaço de seus personagens, não insere naquela realidade uma visão bem perspectivista que nos provocaria a produção de uma conclusão fácil, como os filmes tese de Eisenstein. Ao manter sua câmera fixa, Ozu simplesmente diz à realidade para que ela se sobressaia de toda aquela encenação fictícia. Numa formulação mais filosófica, de que a duração do mundo seja desvelada pela câmera de filmar. Ao fim, o que podemos afirmar de seu filme é o retrato de uma passagem dentro da infância. Em Eu nasci, mas... não há o fim da infância, mas de uma fase da infância, um momento da infância em que o mundo é fantasiado. As crianças, assim como a câmera de Ozu, deixa de enxergar a fantasia para ver a realidade, mas com a esperança de que eles possam fazer diferente.

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