terça-feira, 10 de novembro de 2020

Sobre o absoluto, o sublime, e a verdade extática


Werner Herzog

Tradução para o inglês de Moira Weigel

Traduzido da versão em inglês por Yves São Paulo

 

[esse texto foi originalmente apresentado por Werner Herzog na forma de palestra em Milão, Itália, em sequência à exibição de seu filme Lições da Escuridão, sobre os incêndios no Kwait. Foi pedido para que o cineasta falasse sobre o Absoluto, mas ele espontaneamente mudou seu tema para o Sublime. Portanto, boa parte do que segue foi improvisada no momento.]

 



O colapso do universo estelar ocorrerá – como a criação – em um grandioso esplendor.

Blaise Pascal



 

As palavras atribuídas a Blaise Pascal que servem de prefácio ao meu filme Lições da Escuridão são, na verdade, minhas. Pascal não poderia ter dito melhor.

Esta citação falsificada, e como mais tarde demonstrarei, não falsificada citação serve como um primeiro indicativo sobre o que estou querendo lidar com este discurso. De todo modo, para reconhecer um falso como falso serve apenas como triunfo a quem conta.

Por que estou fazendo este percurso, você pode se perguntar? A razão é simples e provém de considerações práticas, e não teoréticas. Com esta citação como prefixo eu elevo [erheben[1]] o espectador, antes que ele tenha visto o primeiro frame, a um alto nível para adentrar no filme. E eu, o autor do filme, não o deixo descer desta altura até que a obra seja terminada. Apenas neste estado de sublimidade [Erhabenheit] algo de profundo pode se tornar possível, uma espécie de verdade que é inimiga do meramente factual. Eu chamo de verdade extática.

Depois da primeira guerra no Iraque, enquanto os campos de óleo queimavam no Kwait, a mídia – e aqui quero dizer a televisão, em particular – não estava em posição de dizer de que se tratava, para além de ser um crime de guerra, um evento de dimensões cósmicas, um crime contra a própria criação. Não há um único quadro em Lições da es­curidão em que você consiga reconhecer nosso planeta; por esta razão o filme é catego­rizado “ficção-científica”, como se somente pudesse ter sido filmado numa galáxia dis­tante, hostil à vida. Quando foi lançado no Festival de Berlin, o filme recebeu uma orgia de ódio. Dos gritos raivosos do público eu apenas podia entender “estetização do horror”. E quando me encontrei sendo ameaçado e cuspido no pódio, lancei apenas uma reposta simples e banal. “Seus cretinos”, eu disse, “isto é o que Dante fez em seu Inferno, o que Goya fez, como também fez Hieronymus Bosh”. Em meu momento de necessidade, sem falar a respeito, evoquei meus anjos da guarda que nos familiarizaram com o Absoluto e o Sublime.

O Absoluto, o Sublime, a Verdade... o que estas palavras significam? Esta é, devo confessar, a primeira vez em minha vida em que tive que assentar tais questões fora de minha obra, o que compreendo, primeiro e acima de tudo, em termos práticos.

A título de qualificação, devo adicionar já que não me aventurarei a definir o Ab­soluto, mesmo que este conceito lance uma sombra sobre tudo o que eu fale aqui. O Ab­soluto põe um dilema interminável para a filosofia, a religião, e a matemática. A mate­mática talvez chegue o mais próximo de resolver esta questão quando alguém finalmente provar a hipótese de Riemann. Esta questão envolve a distribuição de números primos, permanecendo sem resposta desde o século XIX, alcança as profundezas do pensamento matemático. Um prêmio de um milhão de dólares foi posto para quem resolvê-lo, e em um instituto matemático em Boston atribuíram pelo menos mil anos para que alguém apareça com a prova. O dinheiro está esperando por vocês, assim como sua imortalidade. Por dois mil anos e meio, desde Euclides, esta questão têm preocupado os matemáticos; descobrir que Riemann e sua hipótese brilhante não estão certos, lançaria tremores que balançariam a matemática e as ciências naturais. Somente posso vagamente começar a entender o Absoluto; não estou em posição para definir o conceito.

 

A verdade do oceano

Por enquanto, ficarei no confiável campo da práxis. Mesmo que não consigamos apreender, gostaria de falar para vocês sobre um encontro inesquecível que tive com a Verdade enquanto filmava Fitzcarraldo. Estávamos filmando nas selvas peruanas ao leste dos Andes, entre os rios Camisea e Urubamba, onde mais tarde eu içaria um enorme barco a vapor por cima da montanha. Os indígenas que viviam ali, os Machiguengas, eram a maioria dos extras da equipe e nos deram permissão para filmar em sua terra. Em adição ao pagamento, os Machiguengas queriam mais alguns benefícios: queriam treinamento para seu médico local e um barco, para que pudessem levar suas colheitas até o mercado alguns quilômetros rio abaixo, ao invés de vender para algum intermediário. Finalmente, eles quiseram ajuda na batalha legal pelo título da terra entre os dois rios. Uma companhia depois da outra tinha se aproveitado do local para pilhar seus estoques de madeira; recen­temente, também empresas de óleo tinham posto seus olhos gananciosos sobre o local.

Toda petição com a qual entramos desapareceu na labiríntica burocracia provin­cial. Nossas tentativas de suborno falharam também. Finalmente, tendo viajado até o mi­nistério responsável por tais assuntos, na capital Lima, me disseram que, mesmo que ar­gumentássemos a respeito do título legal com base em história e cultura, havia dois blocos que se chocavam. Primeiro, o título não se encontrava em nenhum documento legalmente verificável, tendo o suporte apenas do ouvir-falar, o que é irrelevante. Segundo, ninguém nunca tinha inspecionado a terra para traçar uma fronteira reconhecível.

No fim das contas, contratei alguém para fazer a inspeção, que entregou aos Ma­chiguengas um mapa preciso de sua terra natal. Esta foi minha parte em sua verdade: tomou a forma de uma delineação, uma definição. Admito, eu briguei com o inspetor. O mapa topográfico que ele forneceu estava, ele me disse, incorreto em certos pontos. Não correspondia à verdade porque não levava em consideração a curvatura da terra. Em um pedaço tão pequeno de terra? Eu perguntei, perdendo a paciência. É claro, ele disse rai­vosamente, atirando seu copo d’água em minha direção. Mesmo com um copo d’água você tem que ser claro, o que estamos lidando aqui não é nem mesmo a superfície. Você deveria ver a curvatura da terra como você a veria num oceano ou num lago. Se você fosse realmente capaz de perceber tal como realmente é – mas você é muito simplista – você veria a terra curvar. Nunca me esquecerei desta severa lição.

A questão do ouvir-falar tinha uma dimensão mais profunda e requeria uma pes­quisa de tipo completamente diferente. [Reclamando pelo título da terra], os indígenas podiam apenas reivindicar que eles sempre estiveram ali, o que eles souberam por meio dos avós. Quando, finalmente, o caso parecia sem esperança, consegui uma audiência com o presidente, Fernando Belaúnde. Os Machiguengas de Shivankoreni elegeram dois representantes para me acompanhar. Quando nossa conversação ameaçou chegar num impasse [no escritório do presidente, em Lima], apresentei a Belaúnde o seguinte argu­mento: na lei Anglo-Saxônica, ainda que ouvir-falar seja geralmente inadmissível como evidência, não é absolutamente inadmissível. Tão distante quanto em 1916, no caso Angu vs. Atta, uma corte colonial na Costa do Ouro (hoje Gana) declarou que ouvir-falar pode­ria servir como uma válida forma de evidência.

Aquele caso era completamente diferente. Tinha relação com o uso do palácio do governador local; no caso, também, não havia documentos, nada de oficial que pudesse ser relevante. Mas, a corte julgou, o enorme consenso dos boatos dos tribais sendo repe­tido e repetido passou a constituir uma manifestação da verdade que a corte pode aceitar sem maiores restrições. Com esta apresentação, Belaúnde, que viveu por muitos anos na selva, quedou quieto. Ele pediu por um copo de suco de laranja, então disse Bom Deus, e então soube que tínhamos o conquistado. Hoje, os Machiguengas têm o título de sua terra; mesmo os consórcios de firmas de óleo que descobriram uma das maiores reservas de gás natural [no mundo] nas proximidades teve de respeitar a decisão.

A audiência com o presidente ainda concedeu outro estranho vislumbre da essên­cia da verdade. Os habitantes da vila de Shivakoreni não tinham certeza de que do outro lado do Andes houvesse uma enorme quantidade de água, um oceano. Em adição, ainda havia o fato de esta monstruosa quantidade de água, o Pacífico, ser supostamente salgada.

Dirigimos até um restaurante ao sul de Lima, à beira da praia, para comer. Mas nossos delegados indígenas não pediram nada para comer. Permaneceram em silêncio e ficaram observando por cima dos parapeitos. Não se aproximaram da água, apenas enca­raram. Então um deles pediu por uma garrafa. Dei a ele minha garrafa de cerveja vazia. Não, esta não era a certa, tinha que ser uma garrafa que pudesse ser selada. Então trouxe uma garrafa de vinho chileno barato, abri, e derramei o vinho na areia. Enviamos a garrafa para a cozinha para que fosse limpa o mais cuidadosamente possível. Então os homens pegaram a garrafa e foram, sem uma palavra, até a margem. Ainda usando as calças jeans, os tênis, e as camisetas que tínhamos comprados para eles no mercado, eles adentraram nas ondas. Adentraram, olhando por cima do oceano Pacífico, até que a água alcançasse suas axilas. Então, provaram da água, encheram a garrafa, e a fecharam cuidadosamente com a cortiça. Esta garrafa cheia de água era sua prova para a vila de que realmente existia um oceano. Perguntei cautelosamente se não seria apenas parte da verdade. Não, eles disseram, se há apenas uma garrafa de água do mar, então todo o oceano tem que ser verdade também.

 

O ataque da realidade virtual

Daquele momento em diante, o que constitui a verdade – ou, para colocar de uma maneira muito mais simples, o que constitui realidade – se tornou um mistério muito maior para mim do que já era. As duas décadas intermediárias colocaram desafios sem precedentes para nosso conceito de realidade.

Quando falo de assaltos ao nosso entendimento de realidade, me refiro às novas tecnologias que nos últimos vinte anos se tornaram artigos de uso geral cotidiano: os efeitos digitais que criam realidades novas e imaginárias no cinema. Não que eu queira demonizar estas novas tecnologias, elas permitiram à imaginação humana alcançar coisas grandes – por exemplo, convincentemente reanimar dinossauros nas telas de cinema. Mas, quando consideramos todas as formas de realidade virtual que se tornaram parte da vida cotidiana – na internet, nos videogames, e nos reality shows da tevê; às vezes tam­bém em algumas formas estranhas, misturadas – a questão do que é “realmente” a reali­dade se coloca novamente.

O que realmente está acontecendo no programa de TV Survivor? Podemos real­mente confiar numa fotografia, agora que sabemos quão fácil tudo pode ser falsificado com o Photoshop? Algum dia seremos completamente capazes de confiar num email, quando nosso filho de doze anos nos mostra que o que estamos vendo é provavelmente uma tentativa de roubar nossa identidade, ou talvez um vírus, ou um “cavalo de troia”, que tenha vagado até o nosso núcleo e adotado cada uma de nossas características? Será que já existo em algum lugar, clonado, como um Doppelganger, sem saber a respeito?

A história oferece uma analogia sobre a extensão da mudança trazida pelo virtual, outros mundos com os quais estamos sendo confrontados. Por séculos e séculos, as cam­panhas de guerra eram praticamente as mesmas, exércitos de cavaleiros lutadores, bri­gando com espadas e escudos. Então, um dia, estes guerreiros se encontraram encarando uns aos outros através de canhões e armas. As campanhas de guerra nunca mais foram as mesmas. Também sabemos que as inovações do desenvolvimento de tecnologia militar são irreversíveis. Apresento alguma evidência que pode ser de interesse: em partes do Japão no começo do século XVII, houve uma tentativa de extinguir as armas de fogo, para que os samurais pudessem lutar uns contra os outros com espadas novamente. Esta tentativa durou muito pouco tempo; era impossível de ser mantida.

Alguns anos atrás, vim entender o quão confuso o conceito de realidade se tornou, de um jeito estranho, por meio de um incidente acontecido em Venice Beach, em Los Angeles. Um amigo estava fazendo uma festinha em seu quintal – um churrasco – e já estava escurecendo, quando, não muito longe, escutamos alguns tiros que ninguém levou a sério até que helicópteros da polícia apareceram com luzes de busca e mandaram, atra­vés de seus alto-falantes, que entrássemos em casa. Compreendemos o caso apenas em retrospecto: um garoto, descrito por uma testemunha como tendo algo em torno de 13 ou 14 anos de idade, estava vadiando ao redor de um restaurante uma quadra adiante de onde estávamos. Quando um casal saiu, o garoto gritou, This is for real, e atirou nos dois com uma semiautomática, fugindo em seguida em seu skate. Ele nunca foi apanhado. Mas a mensagem do louco era clara: isto não é um videogame, estes tiros são reais, isto é reali­dade.

 

Axiomas de sentimentos

Devemos perguntar à realidade: quão realmente importante você é? E: quão im­portante, realmente, é o Factual? É claro, não podemos ignorar o factual, ele possui um poder normativo. Mas ele não pode nunca nos dar o tipo de iluminação, o flash extático, de onde a Verdade emerge. Se apenas o factual, sobre o qual o chamado cinema vérité [cinema verdade] é fixado, fosse de significância, então se poderia argumentar que a vé­rité – a verdade – quando muito concentrada deve residir na agenda telefônica – em suas milhares de entradas que são todas factualmente corretas e, então, correspondem à reali­dade. Caso fôssemos ligar para todo mundo listado na agenda sob o nome de “Schmidt”, centenas desses telefonemas confirmariam que se chamam Schmidt; sim, seu nome é Schmidt.

Em meu filme Fitzcarraldo, há uma troca que levanta a questão. Partindo para o desconhecido com sua embarcação, Fitzcarraldo para num dos postos mais distantes da civilização, uma estação missionária:


Fitzcarraldo: o que os índios mais velhos dizem?

Missionário: não podemos curá-los da ideia de que a vida comum é ape­nas uma ilusão, atrás da qual está a realidade dos sonhos.


O filme é sobre uma ópera sendo encenada numa floresta tropical; como vocês sabem, eu realmente parto para produzir uma ópera. Tal como fiz, uma máxima era cru­cial para mim: um mundo inteiro precisa sofrer uma transformação para música, deve se tornar música; apenas então teríamos produzido uma ópera. O que é bonito numa ópera é que a realidade não tem lugar nela de modo algum; e o que acontece numa ópera é a superação da natureza. Quando olhamos para um livreto das óperas (e aqui a Força do destino, de Verdi é um bom exemplo), vemos muito rapidamente que a história é tão implausível, tão removida de qualquer coisa que poderia ser uma experiência real que as leis matemáticas da probabilidade são suspensas. O que acontece na trama é impossível, mas o poder da música permite ao espectador experimentá-la como verdade.

É a mesma coisa com o mundo emocional [Gefühlswelt] da ópera. Os sentimentos são tão abstratos que não podem ser subordinados à natureza do cotidiano humano, por­que estiveram concentradas e elevadas ao grau mais extremo e aparecem em sua forma mais pura; e apesar de tudo isso as percebemos, na ópera, como natural. Sentimento na ópera é, no fim das contas, como axiomas em matemática, o que não pode ser mais con­centrado ou explicado para além daquilo que já é. Os axiomas de sentimento da ópera nos levam, contudo, dos modos mais secretos, numa linha direta para o sublime. Aqui pode­ríamos citar “Casta Diva”, na ópera Norma, de Bellini como um exemplo.

Você pode perguntar: por que você diz que o sublime se torna acessível para nós na ópera, de todas as formas, considerando que a ópera não inovou em nenhum modo essencial ao longo do século XX, como aconteceu com outras formas artísticas? Isto ape­nas parece ser um paradoxo: a direta experiência do sublime numa ópera não é depen­dente de qualquer desenvolvimento ulterior, ou de novos desenvolvimentos. Sua sublimi­dade permitiu à ópera a sobrevivência.

 

A verdade extática

Todo nosso senso de realidade foi questionado. Mas não quero duelar com este fato por muito mais tempo, uma vez que o que me move nunca foi a realidade, e sim a questão que se encontra por trás dela: a questão da verdade. Às vezes, os fatos excedem nossas expectativas – tendo um poder incomum, bizarro – parecendo ser inacreditáveis.

Mas nas belas artes, na música, na literatura, e no cinema, é possível alcançar um extrato mais profundo da verdade – uma verdade poética, extática, que é misteriosa e pode apenas ser apreendida com esforço; é possível atê-la por meio da visão, estilo, cons­trução. Neste contexto, vejo a citação de Blaise Pascal sobre o colapso de um universo estelar não como falso, mas como um meio de fazer possível uma experiência extática de uma verdade interior e profunda. Assim como não é falsidade quando Michelangelo em sua Pietà retrata um Jesus de 33 anos e sua mãe com apenas 17.

Contudo, também ganhamos nossa habilidade de ter experiências extáticas de ver­dade através do Sublime, por meio das quais somos capazes de nos elevar sobre a natu­reza. Kant diz: A irresistibilidade do poder da natureza nos força a reconhecer nossa impotência física enquanto seres naturais, mas ao mesmo tempo revela nossa capacidade de nos julgarmos independentes da natureza, assim como superiores à natureza... estou deixando algumas coisas de lado aqui, em nome da simplicidade. Kant continua: Neste sentido, a natureza não é estimada em nosso julgamento estético como sublime porque ela excita medo, mas porque ela evoca nosso poder (que não é da natureza)...

Eu deveria tratar Kant com a necessária cautela, porque suas explanações com relação ao sublime são tão abstratas que sempre permaneceram estrangeiras às minhas práticas de trabalho. Contudo, Dionísio Longino, quem primeiro vim a descobrir ao ex­plorar estes temas, está muito mais próximo de meu coração, porque ele sempre fala em termos práticos e oferece exemplos. Não sabemos nada sobre Longino. Especialistas nem sequer sabem se este é realmente o seu nome, e apenas podemos especular que ele viveu no primeiro século depois de Cristo. Infelizmente, seu ensaio Sobre o sublime é também fragmentário. Nos mais antigos escritos que temos datando do século X, o Codex Parisi­nus 2036, existem algumas páginas faltando em todos os lugares, e às vezes grandes quan­tidades de páginas.

Longino procede sistematicamente: aqui, desta vez, não posso falar sobre a estru­tura de seu texto. Mas ele sempre cita exemplos muito vivazes da literatura. E aqui vou eu, novamente, sem seguir qualquer ordem esquemática, para apoderar-me do que me parece mais importante.

O que é fascinante é que, logo ao princípio de seu texto, [Longino] invoca o con­ceito de Êxtase, mesmo que ele faça num contexto diferente do que eu identifiquei como sendo “a verdade extática”. Em referência à retórica, Longino diz: O que quer que seja sublime não leva os ouvintes à persuasão, mas a um estado de êxtase; a todo o tempo e de toda forma possível impondo seu discurso com o feitiço que lança sobre nós, prevale­cendo sobre aqueles que buscam apenas a persuasão e a gratificação. Podemos controlar nossas persuasões normalmente, mas as influências do sublime trazem poder, reinando supremo sobre o ouvinte... Aqui ele usa o conceito de ekstasis, a pessoa saindo de si mesma em direção a um estado de elevação – onde podemos nos elevar sobre nossa pró­pria natureza – o que o sublime revela ser “como um raio”[2]. Ninguém antes de Longino havia tão claramente falado sobre a experiência de iluminação; aqui, estou falando da liberdade de aplicar esta noção a momentos raros e fugazes em filme.[3]

Ele cita Homero para demonstrar a sublimidade das imagens e de seu efeito ilu­minador[4]. Aqui um exemplo da batalha dos deuses:


Aidoneus, senhor das sombras, com medo saltou de seu trono e gritou alto para que acima dele a terra não fosse dividida por Poseidon, o Agitador da Terra, e sua morada fosse mostrada para ver os mortais e os importais – a morada terrível e úmida, a qual os próprios deuses odeiam: grande foi o barulho que surgiu quando os deuses entraram em confronto.


Longino era um homem muito lido, que sabia citar com exatidão. O que é impres­sionante aqui é que ele toma a liberdade de soldar juntas duas passagens diferentes da Ilíada. É impossível que isso tenha sido um erro. Contudo, Longino não está falsificando, e sim, ao invés disso, concebendo uma nova verdade, mais profunda. Ele afirma que sem a verdade e a grandeza da alma, o sublime não pode vir a ser. E ele cita uma declaração que pesquisadores hoje dizem ser ou de Pitágoras ou de Demóstenes:


Pois verdadeiramente bela é a afirmação do homem que em resposta a uma pergunta sobre o que temos em comum com os deuses, respondeu: a capacidade de fazer o bem e a verdade.


Não deveríamos simplesmente traduzir euergesia como “caridade”, de tal forma que esta noção foi apropriada pela nossa cultura cristã. Nem mesmo a palavra grega para verdade, aletheia, é simples de apreender. Etimologicamente falando, provém do verbo lanthanein, “esconder”, e é relacionada à palavra lethos, “escondido”. A-letheia é, por­tanto, uma forma de negação, uma definição negativa: é o ‘não-escondido”, o revelado, a verdade. O que os gregos quiseram com o pensar através da linguagem foi, portanto, de­finir a verdade como um ato de divulgação – um gesto próximo do cinema, onde um objeto é lançado à luz, e então uma imagem latente, mas ainda não visível, é conjurada no celuloide, onde primeiro tem que ser processada, e então divulgada.

A alma do ouvinte ou do espectador completa este ato; a alma atualiza a verdade através da experiência da sublimidade: ou seja, completa um ato independente de criação. Longino diz: Nossa alma é elevada acima da natureza por meio da verdadeira sublimi­dade, movendo-se com os altos espíritos, sendo preenchida com prazer orgulhoso, como se criasse o que estivesse a escutar.[5]

Mas não quero me perder em Longino, a quem considero como um bom amigo. Me apresento perante vós como alguém que trabalha com filme. Gostaria de apontar al­gumas cenas de outro filme meu como evidência. Um bom exemplo seria O grande êxtase do entalhador Steiner (1974), onde o conceito de êxtase já aparece no título.

Walter Steiner, um escultor suíço e múltiplas vezes campeão de salto de ski, eleva a si mesmo como se em êxtase religioso no ar. Ele voa tão temerosamente alto, que pe­netra na região da morte: apenas um pouquinho mais longe e ele não poderia aterrissar, ao invés disso se acidentando. Steiner fala, ao final, de um jovem corvo do qual ele cuidou e que foi seu único amigo de infância. O corvo perdia cada vez mais penas, o que prova­velmente tinha relação com a alimentação proporcionada por Steiner. No final, outros corvos atacaram o seu, torturando-o tão temerosamente que o jovem Steiner não teve outra escolha: Infelizmente, eu tive que atirar nele, disse Steiner, porque era tortura ter que assistir como ele foi torturado por seus próprios irmãos porque ele não podia mais voar. E então, num corte rápido, vemos Steiner no lugar de seu corvo, voando, num en­quadramento terrivelmente estético, em extrema câmera lenta, lentamente entrando na eternidade. Este é o voo majestoso do homem cuja face está contorcida pelo medo da morte como se perturbado por um êxtase religioso. E então, pouco antes da zona da morte – para além do declive, no plano, onde ele poderia ser esmagado pelo impacto, como se ele tivesse pulado do Empire State Building em direção ao chão abaixo – ele pousa sua­vemente, salvo, e um texto impresso é superposto na imagem. O texto foi tirado do escri­tor suíço Robert Walser, e lê:


Eu deveria estar completamente sozinho neste mundo

Eu, Steiner e mais ninguém.

Sem sol, sem cultura; eu, nu numa pedra alta

Sem tempestade, sem neve, sem bancos, sem dinheiro

Sem tempo e sem suspiro.

Então, finalmente, não teria mais medo de nada.

 

 

 Referências para a tradução:

Texto originalmente publicado na Revista Arion, vol. 17, n° 3 (Inverno de 2010), pp. 1-12. Disponível em: https://www.bu.edu/arion/on-the-absolute-the-sublime-and-ecstatic-truth/

Utilizamos também como fonte de consulta a tradução para português da mesma palestra publicada em Revista Carbono: http://revistacarbono.com/artigos/01sobre-o-absoluto_wernerherzog/



[1] Interessante pontuar que são três os termos mais comuns de ser trabalhados pela filosofia no âmbito do sublime, o grego hypsos, o alemão erhabene, e o de origem latina sublime. Neste caso, tanto hypsos quanto erhabene têm em comum sua direta indicação de elevação. [nota do tradutor]

[2] “...o sublime, produzido no momento certo, faz tudo em pedaços como um raio” (1.4). [aqui utilizamos a tradução de Marta Vázeas do tratado de Longino]

[3] A citação completa desta passagem, na tradução de Marta Várzeas: “1.4 O extraordinário não leva os ouvintes à persuasão mas ao êxtase; e o maravilhoso, quando acompanhado de assombro, prevalece sempre sobre o que se destina a persuadir e a agradar; pois se, em geral, a persuasão depende de nós, o sublime impõe-se com força irresistível e fica acima de qualquer ouvinte. E enquanto a mestria na invenção, a disposição e o arranjo do material não saltam à vista facilmente ao fim de um ou dois passos mas no conjunto da obra, o sublime, produzido no momento certo, faz tudo em pedaços como um raio e, num instante, mostra toda a força do orador.” Em: LONGINO. Do sublime. Tradução: Marta Isabel de Oliveira Várzeas. Coimbra (Portugal), São Paulo (Brasil): Imprensa da Universidade de Coimbra, Annablume Editora, 2015. [nota do tradutor]

[4] Aqui Herzog fala de iluminação em referência ao espírito sendo revelado a uma nova capacidade reflexiva, abrindo caminho para um sentimento complexo, i. e. o sublime. [nota do tradutor]

[5] Seguindo a tradução de Marta Várzeas: “De fato, o que está de acordo com a natureza é que, sob o efeito do verdadeiro sublime, a nossa alma se eleve e, adquirindo uma espécie de esplêndida altivez, se encha de prazer e de exaltação, como se ela mesma tivesse criado o que ouviu”. 7.2 Em: LONGINO. Do sublime. Tradução: Marta Isabel de Oliveira Várzeas. Coimbra (Portugal), São Paulo (Brasil): Imprensa da Universidade de Coimbra, Annablume Editora, 2015. [nota do tradutor]