Susan Sontag
Tradução: Yves São
Paulo
[este ensaio
foi publicado por Susan Sontag em fevereiro de 1996, por ocasião dos 100 anos
do cinema, no The New York Times. O texto original pode ser
encontrado em: https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/books/00/03/12/specials/sontag-cinema.html]
Os cem anos do
cinema parece ter o movimento de um ciclo de vida: um nascimento inevitável,
uma acumulação permanente de glórias, e o início na última década de um declínio
ignominioso, irreversível. Não é que você não possa esperar mais por novos
filmes que possa admirar, mas não somente tais filmes a ser admirados têm de
ser exceções – o que é verdade para qualquer conquista em outras artes –, eles
terão que ser verdadeiras violações das normas e práticas que hoje governam a
feitura de filmes em todo o mundo capitalista e das partes do mundo à beira de
se tornar capitalista – o que significa dizer todos os cantos do globo. E
filmes ordinários, filmes feitos puramente para entretenimento (ou seja,
comerciais), são extraordinariamente tolos; a maioria falha retumbantemente em
ter apelo às suas plateias cínicas tidas como principal objetivo. Enquanto o
ponto de um grande filme é hoje, mais do que nunca, ser uma realização
verdadeiramente singular, o cinema comercial decidiu por adotar a política do
inchaço, da feitura derivativa de filmes, uma desavergonhada combinação e
recombinação de traços artísticos na esperança de conseguir reproduzir algum
sucesso passado. Cinema, uma vez exaltada como sendo a arte do século 20,
parece agora, que o século se fecha, uma arte em decadência.
Talvez não tenha
sido somente o cinema que tenha terminado, mas apenas a cinefilia – o nome do
amor específico que o cinema desperta. Cada arte nutre seus fanáticos. O amor
que o cinema inspirava, contudo, era especial. Nasceu da convicção de que o
cinema era uma arte sem outra igual: quintessencialmente moderna; poética e
misteriosa e erótica e moral – tudo isto ao mesmo tempo. O cinema teve seus
apóstolos (como uma religião). Cinema foi uma cruzada. Para cinéfilos, os
filmes encapsulavam tudo. Cinema era tanto o livro da arte quanto o livro da
vida.
Como muitas pessoas têm notado, o início da produção de filmes cem anos atrás teve, convenientemente, um início duplo. Grosseiramente, no ano de 1895 dois tipos de filmes eram feitos, dois modos de onde o cinema parecia emergir: o cinema enquanto a transcrição da vida real e não ensaiada (com os irmãos Lumière) e o cinema como invenção, artifício, ilusão, fantasia (Méliès). Mas esta oposição não é verdadeira. O ponto principal é de que para aquelas primeiras plateias a própria transcrição da realidade banal – como os irmãos Lumière filmando a chegada do trem à estação – era uma experiência fantástica. O cinema começou com o maravilhamento de que a realidade poderia ser transcrita com tamanho imediatismo. Todo o cinema é uma tentativa de perpetuar e reinventar esta sensação de maravilhamento.
Tudo no cinema
começa com aquele momento, 100 anos atrás, quando o trem entrou na estação. As
pessoas tomaram os filmes para si, tão logo o público gritava de animação e se
abaixava enquanto o trem parecia se mover em sua direção. Até que o advento da
televisão esvaziasse as salas de cinema, era com uma visita semanal ao cinema
que você aprendia (ou tentava aprender) como andar, fumar, beijar, lutar,
enlutar. Os filmes te davam dicas de como ser atraente. Exemplo: é bonito vestir
um sobretudo mesmo quando não está chovendo. Mas o que quer que você levasse
para casa era apenas parte de uma experiência maior de submergir em vidas
diferentes da sua. O desejo de se perder na vida de outras pessoas... nos
rostos de outras pessoas. Esta é uma forma mais profunda e mais inclusiva do
desejo incorporado na experiência fílmica. Mais ainda do que a experiência que
você apropriou para você mesmo era a experiência de se entregar, se transportar
para o que estava acontecendo na tela; você queria ser sequestrado pelo filme –
e ser sequestrado era como ser sobrecarregado pela presença física da imagem. A
experiência de “ir ao cinema” fazia parte disso. Assistir um filme pela
televisão não é realmente ter assistido àquele filme. Não é apenas uma questão
da dimensão da imagem: a disparidade entre uma imagem maior do que você na tela
de cinema e a pequena imagem em sua caixa televisiva; as condições de prestar
atenção num filme do espaço doméstico são radicalmente desrespeitosas com um
filme. Agora que um filme não tem um tamanho padronizado, as telas nas casas
podem ser tão grandes quanto a sala de estar ou a parede do quarto. Mas você
continua numa sala de estar ou no quarto. Para ser sequestrado você precisa
estar numa sala de cinema, sentado no escuro em meio a estranhos anônimos.
Não existe
quantidade certa de luto que faça reviver os rituais desaparecidos – eróticos e
ruminantes – da sala escura de cinema. A redução do cinema a imagens
agressivas, e a manipulação sem princípios das imagens (cortes cada vez mais
acelerados) para apreender a atenção com mais força, têm produzido um tipo de
cinema desencarnado e leve que não demanda a atenção completa de ninguém. As
imagens agora podem aparecer em qualquer tamanho numa variedade de superfícies:
numa tela de cinema, nas paredes de uma discoteca e nas mega telas de uma arena
de esportes. A onipresença das imagens em movimento tem diminuído o critério
que as pessoas chegaram a ter tanto a respeito do cinema como arte quanto a
respeito do cinema como entretenimento popular.
Durante os
primeiros anos, essencialmente, não havia diferenças entre estas duas formas. E
todos os filmes do período silencioso – desde as obras primas de Feuillade, D.
W. Griffith, Dziga Vertov, Pabst, Murnau, King Vidor, até os melodramas de
comédias baseados em fórmulas secretas – eram arte de alto nível, especialmente
quando comparados com a maioria das obras que viriam em seguida. Com o advento
do som, a criação de imagens perdeu muito de seu brilhantismo e poesia, e os
padrões comerciais foram se apertando. Este modelo de fazer filmes – o sistema
hollywoodiano – dominou a produção de filmes por pelo menos 25 anos
(aproximadamente entre 1930 a 1955). Os diretores mais originais, como Erich
von Stroheim, e Orson Welles, eram derrotados pelo sistema e eventualmente
entravam num exílio artístico na Europa – onde um sistema semelhante derrubador
de qualidades estava ganhando espaço, com orçamentos menores; somente na França
houve uma quantidade de filmes soberbos produzidos ao longo deste mesmo
período. Então, no meio dos anos 1950, ideias vanguardistas tomaram espaço,
enraizadas pela ideia de que o cinema é um ofício astucioso, tendo como
pioneiros os filmes italianos do período imediato do pós-guerra. Um número
deslumbrante de filmes originais, apaixonados, da mais alta seriedade foram
feitos.
Foi durante este
específico período durante os 100 anos da história do cinema que ir ao cinema,
pensar sobre filmes, conversar sobre filmes se tornou uma paixão entre
estudantes universitários e outros jovens. Você se apaixonava não somente pelos
atores, mas pelo próprio cinema. A cinefilia havia se tornado visível primeiro
na França dos anos 1950: seu fórum era a lendária revista Cahiers du Cinéma
(seguida por revistas fervilhantes na Alemanha, Itália, Grã-Bretanha, Suécia,
Estados Unidos e Canadá). Os templos, a medida em que se espalhavam pela Europa
e pelas Américas, eram as muitas cinematecas e clubes especializados em filmes
do passado ou retrospectivas de diretores que brotaram durante o período. Os
anos 1960 e 1970 foram um período fervoroso para ir ao cinema, com o cinéfilo
de tempo integral sempre esperando encontrar um lugar o mais próximo possível
da tela, idealmente a terceira fila, no meio. “Não se pode viver sem Rossellini”,
declara uma personagem de Bertolucci em Antes da revolução (1964) – o
que significa tudo isto.
Ao longo de 15
anos havia uma nova obra prima a cada mês. O quão distante aquela era nos
parece agora. De fato, sempre houve conflito entre o cinema enquanto indústria
e o cinema enquanto arte, cinema enquanto rotina e cinema enquanto experimento.
Mas o conflito não era tal que impossibilitava a construção de grandes filmes,
às vezes até mesmo dentro e às vezes fora do cinema mainstream. O grande
cinema dos anos 1960 e 1970 têm sido constantemente repudiados. Mesmo nos anos
1970, Hollywood estava a plagiar e transformar em banalidades as inovações em
métodos narrativos e os métodos de edição dos filmes bem sucedidos independentes
americanos que aspiravam aos filmes europeus. Então veio o catastrófico aumento
do custo para produção de filmes durante os anos 1980, o que assegurou a
reimposição global dos padrões industriais de fazer e distribuir filmes de
maneira mais coerciva. O aumento do custo dos filmes significou que os filmes
tinham que render muito dinheiro de imediato, logo no primeiro mês de
lançamento, para que ele fosse rentável – uma tendência que favoreceu os blockbusters
acima dos filmes de baixo orçamento, mesmo que a maioria dos blockbusters
fossem fracassos e sempre houvessem alguns filmes “pequenos” a surpreender todo
mundo baseado em seu apelo. O lançamento dos filmes nos cinemas foi ficando
cada vez mais curto (assim como a vida de livros nas prateleiras das
livrarias); muitos filmes passaram a ser lançados diretamente em vídeo. Salas
de cinema continuaram a fechar – muitas cidades nem sequer tem uma – enquanto
os filmes se tornaram, principalmente, mais uma dentre uma variedade de
entretenimentos caseiros.
Aqui nos EUA, a
queda das expectativas pela qualidade e o aumento das expectativas por lucro
fizeram com que fosse virtualmente impossível diretores americanos como Francis
Ford Coppola e Paul Schrader serem artisticamente ambiciosos, a trabalhar em
seu mais alto nível. No exterior, o resultado pode ser visto no destino
melancólico que tiveram alguns diretores nas últimas décadas. Qual o espaço que
há hoje para um dissidente como Hans-Jurgen Syberberg, que parou de fazer
filmes, ou o grande Godard, que agora apenas faz filmes sobre a história dos
filmes, em vídeo? Considere alguns outros casos. A internacionalização das
finanças e subsequentemente de equipes foi desastrosa para Andrei Tarkovski em
seus dois últimos filmes de uma carreira (tragicamente abreviada) estupenda. E
como continuará Aleksandr Sokurov a encontrar financiamento para fazer seus
filmes sublimes, sob os rudes ditames das condições do capitalismo russo?
Como era
previsível, o amor pelo cinema minguou. As pessoas ainda gostam de ir aos
cinemas, e algumas pessoas ainda se importam e esperam algo de especial dos
filmes. E alguns filmes maravilhosos continuam a ser feitos: Nu, de Mike
Leigh (1993), América, de Gianni Amelio (1994), Fate, de Fred
Kelemen (1994). Mas você dificilmente encontra mais, entre os jovens, esta distinta
paixão cinéfila pelos filmes que não seja somente uma paixão por um certo tipo
de filmes (baseado em um vasto apetite por ver e rever o máximo possível do
glorioso passado do cinema). A própria cinefilia está sob ataque, como algo
exótico, fora de moda, esnobe. Porque cinefilia implica que filmes sejam
únicos, irrepetíveis, experiências mágicas. Cinefilia nos diz que o remake
hollywoodiano de Acossado, de Godard, não pode ser tão bom quanto o
original. Cinefilia não tem espaço na era hiper industrial dos filmes. Porque a
cinefilia não pode deixar de defender, pelo seu próprio vasto alcance e pelo ecletismo
de suas paixões, a ideia de que os filmes são acima de tudo um objeto de
poesia; e não pode se deixar de incitar aqueles de fora da indústria do cinema,
como escritores e pintores, a entrar para o mundo do cinema e fazer filmes
também. É exatamente esta a noção que foi derrotada.
Se a cinefilia
está morta, então os filmes também morreram... não importa a quantidade de
filmes, até mesmo os bons filmes, que continuem a ser feitos. Se o cinema pode
ser renascido, somente será por uma nova forma de cine-amor.