sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Viagem aos seios de Duília, de Carlos Hugo Christensen (1964)










dirigido por Carlos Hugo Christensen

roteiro de Carlos Hugo Christensen, Orígenes Lessa

baseado em conto de Aníbal Machado

fotografia de Aníbal Gonzalez Paz

com

Rodolfo Mayer

Nathália Timberg

Oswaldo Louzada

 Zé Maria trabalhou a vida inteira num trabalho burocrático onde todos ao seu redor conhecem precisamente sua rotina. Então, chega o dia da sua aposentadoria. Depois de décadas de trabalho, ele é forçado a deixar de se preocupar apenas com o serviço e buscar outra coisa para fazer.


Um filme de longos momentos de espera e silêncio da vida de um homem que vive à sombra de seu passado. A escolha estética do filme as vezes pode ser estranha, lembrando a atmosfera do filme noir, mas esse é o recurso para mostrar como Zé Maria se apaga em seu presente ao ter deixado os anos escaparem, tentando agora encontrar vida no passado. As muitas fusões são a insistência das imagens do passado insistndo em romper a barreira da memória. Logo, Zé Maria empreenderá uma aventura rumo ao passado, voltando para sua cidade inhame Natal de Porto Triste, em busca de Duília.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Olney São Paulo por ele mesmo (editora fi, 2024)


 

SOBRE A TRAJETÓRIA DO AUTOR

Em 1953, o crítico de cinema e cineasta Alex Viany aportou em Feira de Santana com uma equipe para filmar "Ana", episódio do filme internacional "Rosa dos ventos". Em seu elenco, trazia a já famosa Vanja Orico, recém-saída do sucesso de "O Cangaceiro".

Olney São Paulo, então com 16 anos, assistiu às filmagens, tentando se integrar à equipe, ao elenco, e aos figurantes. Descobria ali uma paixão: era mais do que um cinéfilo, era um aspirante a cineasta.

Estudava, então, no Colégio Santanópolis. Nas instalações da instituição existia o jornal de mesmo nome. Olney se aproxima dos diretores do periódico, propondo uma coluna de cinema. Nasce, em 1954, a Coluna Cineópolis (presente na coletânea acima), onde o cineasta documentava os filmes lançados na cidade, e seu aval à qualidade (ou não) das obras exibidas.

Ao mesmo tempo, escrevia uma coluna de crítica aos rumos que a alta sociedade feirense tomava. Em Causerie, Olney utiliava um heterônimo, "Conde d'Evey".

As críticas de Olney, em Causerie, incomodavam muitos leitores do Jornal Santanópolis, que em 1955 se transformou em O Coruja. O cronista apontava, com fortes doses de ironia, a emulação kitsch da burguesia feirense em suas tentativas de se aproximar das culturas metropolitanas europeias vistas nos filmes.

Com jogos de linguagem, Olney faz alusões a nomes e lugares da cidade, enquanto mascara o óbvio em suas narrativas divertidas de um Conde vivendo em meio à cidade do sertão. Denuncia a confusão identitária pela qual assava a cidade, a "Princesa do Sertão", que a elite queria transformar numa metrópole ocidental.

Estes conflitos seriam ainda por ele dirigidos no filme "Como nasce uma cidade", de 1973.

Em 1955, munido de uma filmadora 16mm emprestada e apenas um rolo de película comprada num cooperativa entre amigos, Olney se junta ao fotógrafo Elídio Azevedo e a Edson Campos para a gravação daquele que seria o primeiro filme a ser realizado em Feira de Santana, "Um crime na rua".

Com ausência de maquinário para fazer a montagem, as filmagens ocorrem na sequência do roteiro, sem a possibilidade de erro. Assim, Olney e companhia filmam uma história policial de seis minutos de duração se passando nas ruas do centro de Feira de Santana, passando por fachadas famosas como a do Feira Tênis Clube, assim como a famosa feira livre que dá nome à cidade.

"Um crime na rua" se transformou no currículo de Olney pelos anos seguintes. Carregava o rolo do filme junto para exibir aos potenciais produtores e investidores de outras produções. Foi assim que conheceu um adolescente Glauber Rocha, que havia proposto a criação de uma produtora de cinema na Bahia, assim como o mítico produtor Rex Schindler. Em suas colunas Cineópolis e Causerie, Olney faz breves menções sobre os encaminhamentos do filme.

Nesse meio tempo, fundou uma companhia de teatro amador em Feira de Santana, assim como um programa de rádio onde fazia comentário sobre cinema. Infelizmente, quanto a este último, não temos informações.

As aproximações com Rex Schindler dão a Olney esperanças de filmar a história de Lucas da Feira, ex-escravizado bandoleiro que libertava senzalas na região de Feira de Santana. Dado o alto custo de uma produção de época e o não retorno das produções de Schindler, o projeto foi engavetado. A respeito de Lucas da Feira, Olney publicou "ABC do enforcado", conto que compõe o livro "A antevéspera e o canto do sol", de 1969.

Suas relações com cineastas estavam cada vez mais próximas. No começo dos anos 1960, Olney se envolve com diferentes produções de longas-metragens de ficção. Faz assistência de direção do filme "Mandacaru vermelho", de Nelson Pereira dos Santos, abrigando a equipe do pai do Cinema Novo quando ela veio à Bahia durante a primeira tentativa de filmar "Vidas Secas". Em seguida, compõe a equipe de "O Caipora", filme de Oscar Santana.

A experiência com produções de longa-metragem levam Olney a dar um salto radical em suas tentativas. Em 1963, inicia as tratativas para uma produção. Convence o romancista Ciro de Carvalho Leite a produzir um de seus romances para o cinema. O influente escritor consegue as verbas junto a empresários locais para a realização de um longa-metragem de ficção.

Algumas particularidades envolvem este relacionamento. O livro de Ciro de Carvalho Leite a ser adaptado ainda não havia sido publicado, então seu título original é modificado para abrigar o nome do filme, "Grito da terra". Um raro caso em que a obra cinematográfica influencia também a obra de origem.

Olney toma claras liberdades na escrita do roteiro do filme, ampliando algumas personagens, criando novas, e incluindo um debate acerca da reforma agrária, que já podia ser encontrado em alguns de seus contos publicados em jornais e revistas.


para saber mais sobre Olney São Paulo e sua trajetória, adquira "Olney São Paulo por ele mesmo"


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quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Lançamento: Fotodrama: um estudo psicológico


 Pela primeira vez, chega ao público brasileiro a versão integral de um clássico da teoria de cinema.

Fotodrama, um estudo psicológico foi escrito por Hugo Munsterberg em 1916, sendo considerado o primeiro tratado dedicado à arte do cinema.


SOBRE O AUTOR

Hugo Munsterberg nasceu na Polônia, estudando psicologia na Alemanha com Wilhem Wundt. O neo-kantismo que marca a segunda parte de Fotodrama nasce de suas interações acadêmicas ainda na Europa. Recebe um convite de William James para lecionar em Harvard, nos EUA. A nova influência sobre seu pensamento o aproxima do pragmatismo, que por sua vez marca a primeira parte do livro. Em meados de 1914, é convidado pelos estúdios Paramount a coordenar a criação de revistas fílmicas. Deste contato, passa a assistir muitos filmes e a se interessar pelo assunto. Desta experiência nasce o presente livro, Fotodrama, um estudo psicológico, publicado em 1916. O autor, infelizmente, falece pouco depois do lançamento deste livro, no decorrer do mesmo ano.


TRAJETÓRIA DO LIVRO

Inicialmente, a obra não recebeu grande repercussão. Seu lançamento se deu em meio a um período de Guerra Mundial, quando seu autor se interpunha contrário a uma luta do país que o acolheu, contra sua terra natal (o Império Austro-Húngaro). Devido à posição política de Munsterberg, muitas de suas obras caíram no limbo. Nos anos 1960-1970, o livro é recuperado pelos estudos acadêmicos dos nascentes cursos de cinema. Observa-se grande semelhança entre as proposições de Munsterberg sobre a psicologia do filme e as vanguardas estéticas em voga no período - especialmente filme que se arvoravam a explorar a consciência humana, como os experimentos de Alain Resnais. A partir deste momento, Fotodrama, um estudo psicológico, se torna obra incontornável aos estudos de teoria de cinema.


COMPOSIÇÃO DO LIVRO

O livro é dividido em duas partes, a Psicologia do fotodrama e a Estética do fotodrama. Mas há ainda uma terceira parte que antecede as duas. A introdução do livro é composta por dois capítulos que percorrem a história da arte do filme. Num destes capítulos, Munsterberg reflete sobre as experiências realizadas que deram possibilidade tecnológica e epistemológica para o surgimento do cinema. No outro, seu estudo se volta aos avanços e possibilidades dentro da própria arte, e o que fariam dela uma novidade frente às demais.

Eis aqui a grande importância de um intelectual como Hugo Munsterberg a defender o cinema neste estágio da história: em 1915-1916, o cinema ainda era considerado como entretenimento barato para as massas. Um pensador de renome de uma das maiores universidades dos EUA defender que se trata de uma arte é um passo importante para que o público letrado-intelectual-acadêmico reconheça o cinema como uma nova arte.


PSICOLOGIA DO FOTODRAMA

A primeira parte do livro é a mais conhecida do público brasileiro, tendo sido parcialmente traduzida para a coletânea A experiência do cinema, organizada por Ismail Xavier. Contudo, falta a esta coletânea o primeiro capítulo que compõe esta parte, Profundidade e movimento, onde Munsterberg defende uma participação mais ativa do cérebro na recepção do movimento e da ilusão de profundidade dada pelo filme. Em todos capítulos que compõem a Psicologia do fotodrama, o autor defenderá que o filme trabalha algo análogo à mente humana, extraindo recursos mentais para suas formas expressivas - o recurso da atenção é semelhante ao close-up, a memória é semelhante à montagem de flashback.


ESTÉTICA DO FOTODRAMA

Hugo Munsterberg escreve sobre cinema ainda durante o período silencioso, encerrado apenas após o falecimento do autor, em 1927. Assim, sua argumentação demonstrará como não há nada faltante ao cinema, que a busca de alguns exibidores e realizadores por adicionar som ao filme é fútil. O cinema se faz completo em sua falta de som, na incapacidade de suas personagens vociferar palavras. Define fotodrama como este filme silencioso que conta histórias de ficção. Os capítulos da Estética do fotodrama testemunham a aproximação com a estética neo-kantiana, sua proposta sobre o que é arte e o que faz o fotodrama ser arte. Mais que isso, Munsterberg envereda, ainda, em alguns questionamentos sobre a ética da produção cinematográfica e de sua contação de histórias.


Este é um livro singular. Hugo Munsterberg escreve sobre uma arte com data de nascimento bem delimitada, e escreve um livro sem qualquer referência precedente. Faz deste, um verdadeiro exercício de imersão no cinema de seu tempo, buscando em sua trajetória acadêmica algumas soluções para pensar o que é o filme e o que é o cinema.


Fotodrama, um estudo psicológico, de Hugo Munsterberg pode ser adquirido no link abaixo:

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quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Lançamento: Olney São Paulo por ele mesmo


 O livro Olney São Paulo por ele mesmo, organizado por Yves São Paulo, foi publicado neste mês de agosto pela Editora Fi e já se encontra disponível para compra nas livrarias. Basta acessar o link abaixo para encontrar a obra em sua versão física.


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Olney São Paulo nasceu em 1936, em Riachão do Jacuípe, e logo cedo se mudou para Feira de Santana. Realizou 14 filmes, dentre curtas e longas-metragens. Seus filmes circularam por festivais ao redor do mundo, a exemplo da Quinzena dos Realizadores, em Cannes, França, o Festival de Oberhausen, na Alemanha, e o Festival Internacional de Cinema de Viña del Mar.

Seus documentários acompanham figuras e localidades marginais da cultura brasileira, a exemplo do sertanejo, (Sob ditame de rude almajesto, sinais de chuva), o cigano (Ciganos do nordeste) e as religiões de matriz africana (Dia de erê). Graças a sua atuação neste campo, foi criado o Dia Nacional do Documentarista, em 7 de agosto, dia de seu aniversário, em sua homenagem.

Nesta coletânea, encontramos as colunas Causerie e Cineópolis, escritas por Olney ainda nos anos 1950, além de artigos diversos e entrevistas concedidas ao longo da carreira. Por meio deles, podemos preencher um quadro mais amplo de pensamento, dos anseios e dos planos deste realizador que nos deixou tão cedo, com apenas 41 anos, em 1978.

Aos fãs da obra de Olney, a coletânea apresenta um conto não incluso em A antevéspera e o canto do sol, publicada em 1969. Trata-se do conto Vingança, uma história de conflitos sertanejos na fronteira norte da Bahia, beirando os estados de Sergipe e Pernambuco, onde coronéis criam suas próprias leis, exercendo poder sobre a população.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Resenha: Do espectador simpático: sobre A Metafísica da Cinefilia, de Yves São Paulo

 por Leonardo Araújo Oliveira

professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia


As publicações em torno da relação entre filosofia e cinema, no Brasil, têm se concentrado em dois tipos de abordagem: por um lado, temos as leituras filosóficas de filmes, que buscam pensar, pedagogicamente, como o cinema propicia a discussão de questões filosóficas; por outro lado, temos a análise da obra de algum filósofo contemporâneo que abordou o cinema, e, nesse caso, a maioria dos trabalhos se debruçam sobre A imagem-movimento e A imagem-tempo1, os dois livros sobre cinema escritos por Gilles Deleuze. O livro de Yves São Paulo dá um passo além. Não está exatamente interessado em elencar filmes como pretexto para tratar de temas diversos da história da filosofia, mesmo em relação a Bergson, filósofo central de seu livro. O autor faz, assim, um salto cronológico a um ponto anterior a Deleuze, indo diretamente no autor que inspira a ontologia deleuziana do cinema, para arrancar dele não aquilo que retirou o autor francês, mas uma outra ontologia, voltada para o espectador, um elemento certamente esquecido em tais discussões.

Apesar de seu caráter autoral, o livro não dispensa a conversa com os clássicos. Pelo contrário, explora bem a retomada de teóricos importantes do cinema, como Hugo Munstenberg, Béla Balázs, André Bazin, Jean-Claude Carrière, Jacques Aumont, entre outros. Em uma pesquisa interdisciplinar, São Paulo lança mão de fontes diversas para desenvolver suas ideias, não apenas da filosofia e do cinema, mas também da história, por exemplo, quando contextualiza historicamente a padronização do tempo social, inserindo Bergson, nesse contexto, como um contraponto com sua teoria do tempo.

A obra dá atenção especial aos primórdios do cinema. Passa pelo pré-cinema, com os experimentos fotográficos de Eadweard Muybridge e Étienne-Jules Marey, refletindo sobre o cinema de atração e o cinema de ação que se desenvolve a partir da distinção entre tempo real e tempo diegético, com a sofisticação da eliminação do tempo morto e, com isso, a aceleração progressiva da narrativa.

A pesquisa vai até a história da filosofia, partindo do início da metafísica, com a valorização da razão em detrimento da sensibilidade, a partir do pensamento de Parmênides e de Platão sobre os fundamentos do real, e, por conseguinte, sobre a transformação e a temporalidade. O objetivo é chegar numa metafísica do movimento e do tempo, precisamente os elementos da filosofia de Bergson que foram mobilizados para se pensar o cinema, sobretudo por Deleuze.

Mas o livro tem a originalidade de ir a Bergson, sem necessitar da mediação de Deleuze, embora dialogando com ele. Concorda com o autor de A Imagem-Tempo (ano de primeira publicação), por exemplo, em demarcar a injustiça de Bergson em dar um nome moderno a algo muito antigo, pertencente ao humano, quando discute a ideia do mecanismo cinematográfico do pensamento. O autor de O Pensamento e o Movente (ano de primeira publicação) é criticado por identificar o cinema à ilusão, mas também por defender uma perspectiva que, se não é incorreta – pois faz sentido dentro do sistema filosófico bergsoniano, se o cinematógrafo for pensado apenas como tecnologia – é limitada, na medida em que não considera o potencial artístico do cinematógrafo, considerando que o próprio Bergson não tinha intenção de estudar “o cinema a partir de um ponto de vista estético” (SÃO PAULO, 2020, p. 87).

O autor se vale da descrição bergsoniana do método analítico para falar da cinefilia. Assim, expõe a noção bergosniana de análise como “meio de traduzir o móvel através do imóvel” (SÃO PAULO, 2020, p. 94), para então pensar como o espectador incorpora uma abordagem analítica em sua recepção dos filmes. Com isso, São Paulo (2020, p. 95) traça um perfil do espectador analítico, aquele que “recorta dos filmes os dados que lhe parecem mais importantes, os detalhes que lhe garantem sentido”, desenvolvendo em sua “memória uma duração para o filme” (SÃO PAULO, 2020, p. 97). Esta memória permanece em ação durante a contemplação fílmica, recortando o tempo analiticamente, ao passo que fornece as bases de compreensão do que se apresenta em tela. Embora tal atividade se aproxime do que Bergson nomeia de inteligência, não significa que a emoção não se faça presente, na medida em que, “no caso do espectador analítico, a emoção se desenrola internamente ao sujeito enquanto começa a compreender o que se desenrola no exterior (o filme)” (SÃO PAULO, 2020, p. 98).

No entanto, por uma via analítica, estamos limitados a uma visão parcial da duração, que é a visão subjetiva. Somente por uma via metafísica (daí o título do livro) será possível alcançar o ponto em que “a duração do espectador não está isolada no mundo” (SÃO PAULO, 2020, p. 98). O encontro entre durações será chamado de simpatia, e a própria intuição seria “a simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com o que ele tem de único” (BERGSON, 1974, p. 20). A simpatia promove um contato entre duas durações, diluindo a divisão entre sujeito e objeto, na medida em que a simpatia torna possível a simultaneidade de durações2.

Sendo assim, a análise não é o melhor método para lidar com a duração, na medida em ela usa propriedades externas ao tempo para falar dele, ou seja, não faz a distinção de natureza entre tempo e espaço. O procedimento próprio para a duração é o ato intuitivo. Por isso a intuição é o método próprio para a metafísica, mas também se aproxima da arte, e Bergson sempre esteve de posse dessa percepção, “tanto no momento de criação, quanto no momento de apreciação” (SÃO PAULO, 2020, p. 108). Para Bergson, a arte é a atividade em que o humano mais se aproxima de intuir a duração. A obra de arte é um objeto que se abre para o acesso do sujeito via intuição, por isso a “emoção estética [...] pode substituir os fatos psicológicos de nossa consciência, apoderando-se de todo nosso ser” (SÃO PAULO, 2020, p. 113). A filosofia de Bergson já foi taxada de irracionalismo por sua ligação com a intuição3. Mas, em Bergson, a intuição não se opõe à inteligência, servindo, na verdade, como meio para “enxergar com maior clareza a inteligência e a consciência” (SÃO PAULO, 2020, p. 159).

A memória não apenas acumula, mas sobretudo cria. É desenvolvendo essa ideia que a obra de São Paulo (2020) evidencia o esforço de pensar o espectador como ativo, e para isso salienta que, mesmo quando Bergson associa a contemplação artística à passividade, utiliza o termo “sugestão”, o que fornece margem para uma ambiguidade: “a obra de arte não impõe emoções e ideias ao espectador, ela sugere” (SÃO PAULO, 2020, p. 161). O argumento é o de que a sugestão não pode configurar somente passividade do espectador, pois ele pode escolher aceitar ou não tal experiência, ao mesmo tempo em que pode “criar a partir do que lhe é sugerido (SÃO PAULO, 2020, p. 161). O próprio Bergson se afasta progressivamente da ideia de passividade, na medida em que, ao longo de sua obra, irá defender o caráter ativo do sujeito.

A concepção de sujeito ativo também está no Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência (ano de primeira publicação), obra que trabalha com o conceito de simpatia. Contudo, tal atividade não significa idealismo, no sentido de que o sujeito consegue impor sua duração interna à realidade. Na verdade, o indivíduo forma sua duração a partir da observação da duração externa, em contato com as durações do mundo, não apenas as humanas. A partir daí, poder-se-ia afirmar que o sujeito, e por corolário o espectador, seria passivo. Mas o uso de Bergson aqui funciona, na verdade, como inversão dessa ideia, com a defesa de que a recepção da exterioridade pelo sujeito não anula sua subjetividade ativa, pois ele cria a partir do que recebe, até porque nenhum espectador apreende um filme como tábula rasa, na medida em que ele possui memória. A duração do espectador traz consigo suas experiências vividas, que o tornam um ser singular, por isso a relação com um mesmo filme pode variar muito de espectador para espectador.

Uma investigação importante na obra é a que consiste em se debruçar sobre os paralelos entre filme e mente, uma vez que a preocupação não é apenas com uma ontologia da obra de arte, mas também com a busca de uma relação intrínseca entre o cinema e aquele que o experimenta, a ponto de conceber o espectador como um criador. Na exploração filme/mente, é lembrado que essa analogia feita por Bergson é pensada também por importantes nomes do cinema que se animaram com ela, como Munstenberg, que concebeu o cinema como extensão do mental, e Epstein, que atribuiu um pensamento próprio à mecânica cinematográfica.

Assim, a relação entre ontologia e a experiência do espectador não se restringe a pressupostos bergsonianos. Ela é aprofundada a partir do diálogo com outros teóricos, em especial aqueles diretamente ligados ao cinema. Após comentar o realismo de Bazin, São Paulo (2020) aborda outro pensamento cinematográfico que, se não chega a ser realista–- pois concebe o cinema como recriação da realidade – não adere à ideia do cinema como produtor de ilusão. Trata-se de Jean Epstein, que segundo o autor realiza uma metafísica (SÃO PAULO, 2020, p. 129), em que postula que o cinematógrafo, em relação à metafisica, teria função análoga ao microscópio para ciências naturais, com a ideia de que o mecanismo cinematográfico acena para “o absoluto movimento vital” (SÃO PAULO, 2020, p. 130). Epstein evidenciaria o poder do cinema de oferecer o acesso a diferentes temporalidades, e com isso a conexão entre diferentes durações. Mas a multiplicidade de tempos não pode se confundir com a multiplicidade de perspectivas, pois esta tem a ver com a análise, enquanto a primeira tem a ver com a intuição. Daí a diferença fundamental entre a cinefilia analítica e a intuitiva: “Enquanto na abordagem analítica nos colocamos externamente ao filme e assim o experimentamos em fragmentos, na abordagem intuitiva simpatizamos com o filme e o experimentamos como um absoluto” (SÃO PAULO, 2020, p. 177) – e é a “simpatia do espectador que faz com que o filme passe a viver nele para além da projeção” (SÃO PAULO, 2020, p. 180).

Um filme se apresenta como um fluxo, tanto ao espectador como ao realizador. Com essa ideia, a obra se aproxima da perspectiva de Tarkovski, para quem o essencial da criação cinematográfica não é a montagem, o cenário, o elenco, mas sim o ritmo, pois expressa o tempo no fotograma (TARKOVSKI, 1998, p. 134). Com foco na cinefilia, é lembrado que o diretor russo estende a experiência do tempo ao espectador, chegando a afirmar que é o tempo que leva os espectadores ao cinema, pois as pessoas podem, ao assistir a um filme, experimentar a condensação de uma vida, adentrar em uma vivência, por meio, por exemplo, da simpatia do espectador por uma personagem. O compartilhamento de vivências independe de que o realizador foque na subjetividade de seus personagens, tem muito mais a ver com o pensamento do autor sobre o tempo, a duração, o ritmo da obra como um todo.

Epstein e Tarkovski são autores importantes para uma metafísica da cinefilia. A obra faz convergir os dois cineastas, para pensar o filme como um todo vivo e pulsante, a partir do conceito de duração. Nesse sentido, promove um encontro entre esses pensadores do cinema com Bergson, o filósofo central para tal discussão: “O universo dura. Quanto mais aprofundarmos a natureza do tempo, melhor compreenderemos que duração significa invenção, criação de formas, elaboração contínua do absolutamente novo” (BERGSON, 2005, p. 12). Nessa perspectiva, é possível incluir uma dimensão seminal para a estética: a noção de criatividade, no bojo de uma filosofia da natureza.

Na passagem do real para o mental, São Paulo (2020) nunca deixa de lado a ontologia. Enfatiza, por exemplo, que, na arte, no debate realidade vs. ilusão , o ponto fulcral não é a afirmação de que o cinema não é ilusão, e nem mesmo a negação de sua realidade. Trata-se justamente de uma dialética entre o real e o ilusório. Esse duplo já se apresenta na materialidade da película, na medida em que nossos olhos entram em contato com fotogramas (portanto, imagem estáticas) e, no entanto, enxergamos imagens em movimento. A operação da inteligência resulta em uma impossibilidade de apreensão dos detalhes da realidade, captados apenas intuitivamente. Esse é o olhar do artista, que pode se desamarrar dos grilões da vida prática e enxergar o mundo criativamente: “Nas mãos de Chaplin, pães são mais que comida e oferecem um balé para seu espectador” (SÃO PAULO, 2020, p. 188).

Tanto a análise quanto a intuição são inerentes à experiência do espectador. A pergunta central é se ele opera conscientemente a variação da perspectiva analítica para a intuitiva, e vice-versa. E a resposta é “não”, “assim como não o faz quando se vale de inteligência ou intuição em suas relações cotidianas, acontecendo de modo sutil, numa espécie de adequação da consciência para certos eventos” (SÃO PAULO, 2020, p. 188)4.

No que diz respeito à relação filme-espectador, o livro amplia a análise de Noël Carroll, baseada no reconhecimento, para a ideia de ação do espectador, por uma atitude estética, compreendida como “um conjunto de ações que o espectador se vale quando perante uma obra artística” (SÃO PAULO, 2020, p. 198)o reconhecimento seria uma delas, a atenção, outra. A noção de atitude estética é mobilizada para defender a ideia de que o espectador é um criador.

Aqui, é adotada a definição tarkovskiana do cinema como escultura do tempo, não restrita ao cineasta, e sim esticando-a até o espectador, compreendendo que, nesse caso, trata-se de esculpir a duração interna. Essa criação é temporal porque se direciona ao não esquecimento, à duração do acontecimento fílmico na consciência. Por isso Bergson insiste no elogio à capacidade artística de “reconhecer a importância criadora da memória” (SÃO PAULO, 2020, p. 207). A capacidade de evitar o esquecimento pode se estender para diferentes direções, inclusive para uma politização da memória, possibilitada por cinemas concebidos por cineastas como Alain Resnais e Patricio Guzmán – que ganham destaque no livro.

Mesmo que Bergson não tenha apreciado o cinema e que o cinema não dependa de Bergson para existir, Deleuze tentou mostrar, em A imagem-movimento e a imagem-tempo, que Bergson é um pensador cinematográfico e que o cinema é ontologicamente bergsoniano. Yves São Paulo (2020) opera nessa direção, mas a seu modo, prolongando a discussão para a cinefilia, desenvolvendo, assim, a ideia de que, embora Bergson não tenha sido cinéfilo, a experiência do espectador pode ser pensada a partir de seu pensamento, pois de sua filosofia pode se desdobrar fundamentos para uma metafísica da cinefilia.



Referências BIbliográficas

BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BERGSON, Henri. Introdução à metafísica. In: Os pensadores: Henri Bergson, cartas, conferências e outros escritos. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 17-45.

CARLOS, Cássio Starling; PRADO JR., Bento. Bento Prado Jr analisa Deleuze. Folha, São Paulo, 2 de junho de 1996: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/6/02/mais!/7.html. Acesso em 01/02/2022.

NOTAS

1 Em ambos os livros, Deleuze (2018a, 2018b) tem como base filosófica uma grande quantidade de autores, mas, no nível ontológico, Bergson certamente é o principal. Em cada uma das obras, há dois capítulos cujo subtítulos são “comentários a Bergson”, mas em toda a obra o pensamento do autor de Matéria e Memória (1896) se faz presente.

2 O autor salienta que Bergson prefere o termo “duração” ao termo “tempo” para evitar confusões, uma vez que o tempo foi condicionado ao espaço pela tradição. A interpretação deleuziana de Bergson (e do próprio cinema) insiste nesse ponto, mas Deleuze (1997) acredita que com Kant já se inicia uma autonomia do tempo.

3 Para isso, ver entrevista de um pesquisador seminal de Bergson, Bento Prado Jr (1996), falando sobre o problema do uso da ideia de irracionalismo, não somente associada a Bergson, mas em qualquer discussão filosófica, uma vez que não é categoria de análise, mas de ofensa.

4 Essa questão ganha ainda uma importância adicional quando pensamos na crítica de cinema, se a experiência do crítico poderia ser controlada por ele no sentido de, ao assistir a um filme, desligar o botão da intuição e ligar o botão da análise, mas, por extensão ao argumento bergsoniano, a resposta teria que ser, também, negativa.

 

originalmente publicado em Revista Sísifo.



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