por Leonardo Araújo Oliveira
professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
As publicações em torno da relação entre filosofia e cinema, no Brasil, têm se concentrado em dois tipos de abordagem: por um lado, temos as leituras filosóficas de filmes, que buscam pensar, pedagogicamente, como o cinema propicia a discussão de questões filosóficas; por outro lado, temos a análise da obra de algum filósofo contemporâneo que abordou o cinema, e, nesse caso, a maioria dos trabalhos se debruçam sobre A imagem-movimento e A imagem-tempo, os dois livros sobre cinema escritos por Gilles Deleuze. O livro de Yves São Paulo dá um passo além. Não está exatamente interessado em elencar filmes como pretexto para tratar de temas diversos da história da filosofia, mesmo em relação a Bergson, filósofo central de seu livro. O autor faz, assim, um salto cronológico a um ponto anterior a Deleuze, indo diretamente no autor que inspira a ontologia deleuziana do cinema, para arrancar dele não aquilo que retirou o autor francês, mas uma outra ontologia, voltada para o espectador, um elemento certamente esquecido em tais discussões.
Apesar de seu caráter autoral, o livro não dispensa a conversa com os clássicos. Pelo contrário, explora bem a retomada de teóricos importantes do cinema, como Hugo Munstenberg, Béla Balázs, André Bazin, Jean-Claude Carrière, Jacques Aumont, entre outros. Em uma pesquisa interdisciplinar, São Paulo lança mão de fontes diversas para desenvolver suas ideias, não apenas da filosofia e do cinema, mas também da história, por exemplo, quando contextualiza historicamente a padronização do tempo social, inserindo Bergson, nesse contexto, como um contraponto com sua teoria do tempo.
A obra dá atenção especial aos primórdios do cinema. Passa pelo pré-cinema, com os experimentos fotográficos de Eadweard Muybridge e Étienne-Jules Marey, refletindo sobre o cinema de atração e o cinema de ação que se desenvolve a partir da distinção entre tempo real e tempo diegético, com a sofisticação da eliminação do tempo morto e, com isso, a aceleração progressiva da narrativa.
A pesquisa vai até a história da filosofia, partindo do início da metafísica, com a valorização da razão em detrimento da sensibilidade, a partir do pensamento de Parmênides e de Platão sobre os fundamentos do real, e, por conseguinte, sobre a transformação e a temporalidade. O objetivo é chegar numa metafísica do movimento e do tempo, precisamente os elementos da filosofia de Bergson que foram mobilizados para se pensar o cinema, sobretudo por Deleuze.
Mas o livro tem a originalidade de ir a Bergson, sem necessitar da mediação de Deleuze, embora dialogando com ele. Concorda com o autor de A Imagem-Tempo (ano de primeira publicação), por exemplo, em demarcar a injustiça de Bergson em dar um nome moderno a algo muito antigo, pertencente ao humano, quando discute a ideia do mecanismo cinematográfico do pensamento. O autor de O Pensamento e o Movente (ano de primeira publicação) é criticado por identificar o cinema à ilusão, mas também por defender uma perspectiva que, se não é incorreta – pois faz sentido dentro do sistema filosófico bergsoniano, se o cinematógrafo for pensado apenas como tecnologia – é limitada, na medida em que não considera o potencial artístico do cinematógrafo, considerando que o próprio Bergson não tinha intenção de estudar “o cinema a partir de um ponto de vista estético” (SÃO PAULO, 2020, p. 87).
O autor se vale da descrição bergsoniana do método analítico para falar da cinefilia. Assim, expõe a noção bergosniana de análise como “meio de traduzir o móvel através do imóvel” (SÃO PAULO, 2020, p. 94), para então pensar como o espectador incorpora uma abordagem analítica em sua recepção dos filmes. Com isso, São Paulo (2020, p. 95) traça um perfil do espectador analítico, aquele que “recorta dos filmes os dados que lhe parecem mais importantes, os detalhes que lhe garantem sentido”, desenvolvendo em sua “memória uma duração para o filme” (SÃO PAULO, 2020, p. 97). Esta memória permanece em ação durante a contemplação fílmica, recortando o tempo analiticamente, ao passo que fornece as bases de compreensão do que se apresenta em tela. Embora tal atividade se aproxime do que Bergson nomeia de inteligência, não significa que a emoção não se faça presente, na medida em que, “no caso do espectador analítico, a emoção se desenrola internamente ao sujeito enquanto começa a compreender o que se desenrola no exterior (o filme)” (SÃO PAULO, 2020, p. 98).
No entanto, por uma via analítica, estamos limitados a uma visão parcial da duração, que é a visão subjetiva. Somente por uma via metafísica (daí o título do livro) será possível alcançar o ponto em que “a duração do espectador não está isolada no mundo” (SÃO PAULO, 2020, p. 98). O encontro entre durações será chamado de simpatia, e a própria intuição seria “a simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com o que ele tem de único” (BERGSON, 1974, p. 20). A simpatia promove um contato entre duas durações, diluindo a divisão entre sujeito e objeto, na medida em que a simpatia torna possível a simultaneidade de durações.
Sendo assim, a análise não é o melhor método para lidar com a duração, na medida em ela usa propriedades externas ao tempo para falar dele, ou seja, não faz a distinção de natureza entre tempo e espaço. O procedimento próprio para a duração é o ato intuitivo. Por isso a intuição é o método próprio para a metafísica, mas também se aproxima da arte, e Bergson sempre esteve de posse dessa percepção, “tanto no momento de criação, quanto no momento de apreciação” (SÃO PAULO, 2020, p. 108). Para Bergson, a arte é a atividade em que o humano mais se aproxima de intuir a duração. A obra de arte é um objeto que se abre para o acesso do sujeito via intuição, por isso a “emoção estética [...] pode substituir os fatos psicológicos de nossa consciência, apoderando-se de todo nosso ser” (SÃO PAULO, 2020, p. 113). A filosofia de Bergson já foi taxada de irracionalismo por sua ligação com a intuição. Mas, em Bergson, a intuição não se opõe à inteligência, servindo, na verdade, como meio para “enxergar com maior clareza a inteligência e a consciência” (SÃO PAULO, 2020, p. 159).
A memória não apenas acumula, mas sobretudo cria. É desenvolvendo essa ideia que a obra de São Paulo (2020) evidencia o esforço de pensar o espectador como ativo, e para isso salienta que, mesmo quando Bergson associa a contemplação artística à passividade, utiliza o termo “sugestão”, o que fornece margem para uma ambiguidade: “a obra de arte não impõe emoções e ideias ao espectador, ela sugere” (SÃO PAULO, 2020, p. 161). O argumento é o de que a sugestão não pode configurar somente passividade do espectador, pois ele pode escolher aceitar ou não tal experiência, ao mesmo tempo em que pode “criar a partir do que lhe é sugerido (SÃO PAULO, 2020, p. 161). O próprio Bergson se afasta progressivamente da ideia de passividade, na medida em que, ao longo de sua obra, irá defender o caráter ativo do sujeito.
A concepção de sujeito ativo também está no Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência (ano de primeira publicação), obra que trabalha com o conceito de simpatia. Contudo, tal atividade não significa idealismo, no sentido de que o sujeito consegue impor sua duração interna à realidade. Na verdade, o indivíduo forma sua duração a partir da observação da duração externa, em contato com as durações do mundo, não apenas as humanas. A partir daí, poder-se-ia afirmar que o sujeito, e por corolário o espectador, seria passivo. Mas o uso de Bergson aqui funciona, na verdade, como inversão dessa ideia, com a defesa de que a recepção da exterioridade pelo sujeito não anula sua subjetividade ativa, pois ele cria a partir do que recebe, até porque nenhum espectador apreende um filme como tábula rasa, na medida em que ele possui memória. A duração do espectador traz consigo suas experiências vividas, que o tornam um ser singular, por isso a relação com um mesmo filme pode variar muito de espectador para espectador.
Uma investigação importante na obra é a que consiste em se debruçar sobre os paralelos entre filme e mente, uma vez que a preocupação não é apenas com uma ontologia da obra de arte, mas também com a busca de uma relação intrínseca entre o cinema e aquele que o experimenta, a ponto de conceber o espectador como um criador. Na exploração filme/mente, é lembrado que essa analogia feita por Bergson é pensada também por importantes nomes do cinema que se animaram com ela, como Munstenberg, que concebeu o cinema como extensão do mental, e Epstein, que atribuiu um pensamento próprio à mecânica cinematográfica.
Assim, a relação entre ontologia e a experiência do espectador não se restringe a pressupostos bergsonianos. Ela é aprofundada a partir do diálogo com outros teóricos, em especial aqueles diretamente ligados ao cinema. Após comentar o realismo de Bazin, São Paulo (2020) aborda outro pensamento cinematográfico que, se não chega a ser realista–- pois concebe o cinema como recriação da realidade – não adere à ideia do cinema como produtor de ilusão. Trata-se de Jean Epstein, que segundo o autor realiza uma metafísica (SÃO PAULO, 2020, p. 129), em que postula que o cinematógrafo, em relação à metafisica, teria função análoga ao microscópio para ciências naturais, com a ideia de que o mecanismo cinematográfico acena para “o absoluto movimento vital” (SÃO PAULO, 2020, p. 130). Epstein evidenciaria o poder do cinema de oferecer o acesso a diferentes temporalidades, e com isso a conexão entre diferentes durações. Mas a multiplicidade de tempos não pode se confundir com a multiplicidade de perspectivas, pois esta tem a ver com a análise, enquanto a primeira tem a ver com a intuição. Daí a diferença fundamental entre a cinefilia analítica e a intuitiva: “Enquanto na abordagem analítica nos colocamos externamente ao filme e assim o experimentamos em fragmentos, na abordagem intuitiva simpatizamos com o filme e o experimentamos como um absoluto” (SÃO PAULO, 2020, p. 177) – e é a “simpatia do espectador que faz com que o filme passe a viver nele para além da projeção” (SÃO PAULO, 2020, p. 180).
Um filme se apresenta como um fluxo, tanto ao espectador como ao realizador. Com essa ideia, a obra se aproxima da perspectiva de Tarkovski, para quem o essencial da criação cinematográfica não é a montagem, o cenário, o elenco, mas sim o ritmo, pois expressa o tempo no fotograma (TARKOVSKI, 1998, p. 134). Com foco na cinefilia, é lembrado que o diretor russo estende a experiência do tempo ao espectador, chegando a afirmar que é o tempo que leva os espectadores ao cinema, pois as pessoas podem, ao assistir a um filme, experimentar a condensação de uma vida, adentrar em uma vivência, por meio, por exemplo, da simpatia do espectador por uma personagem. O compartilhamento de vivências independe de que o realizador foque na subjetividade de seus personagens, tem muito mais a ver com o pensamento do autor sobre o tempo, a duração, o ritmo da obra como um todo.
Epstein e Tarkovski são autores importantes para uma metafísica da cinefilia. A obra faz convergir os dois cineastas, para pensar o filme como um todo vivo e pulsante, a partir do conceito de duração. Nesse sentido, promove um encontro entre esses pensadores do cinema com Bergson, o filósofo central para tal discussão: “O universo dura. Quanto mais aprofundarmos a natureza do tempo, melhor compreenderemos que duração significa invenção, criação de formas, elaboração contínua do absolutamente novo” (BERGSON, 2005, p. 12). Nessa perspectiva, é possível incluir uma dimensão seminal para a estética: a noção de criatividade, no bojo de uma filosofia da natureza.
Na passagem do real para o mental, São Paulo (2020) nunca deixa de lado a ontologia. Enfatiza, por exemplo, que, na arte, no debate realidade vs. ilusão , o ponto fulcral não é a afirmação de que o cinema não é ilusão, e nem mesmo a negação de sua realidade. Trata-se justamente de uma dialética entre o real e o ilusório. Esse duplo já se apresenta na materialidade da película, na medida em que nossos olhos entram em contato com fotogramas (portanto, imagem estáticas) e, no entanto, enxergamos imagens em movimento. A operação da inteligência resulta em uma impossibilidade de apreensão dos detalhes da realidade, captados apenas intuitivamente. Esse é o olhar do artista, que pode se desamarrar dos grilões da vida prática e enxergar o mundo criativamente: “Nas mãos de Chaplin, pães são mais que comida e oferecem um balé para seu espectador” (SÃO PAULO, 2020, p. 188).
Tanto a análise quanto a intuição são inerentes à experiência do espectador. A pergunta central é se ele opera conscientemente a variação da perspectiva analítica para a intuitiva, e vice-versa. E a resposta é “não”, “assim como não o faz quando se vale de inteligência ou intuição em suas relações cotidianas, acontecendo de modo sutil, numa espécie de adequação da consciência para certos eventos” (SÃO PAULO, 2020, p. 188).
No que diz respeito à relação filme-espectador, o livro amplia a análise de Noël Carroll, baseada no reconhecimento, para a ideia de ação do espectador, por uma atitude estética, compreendida como “um conjunto de ações que o espectador se vale quando perante uma obra artística” (SÃO PAULO, 2020, p. 198): o reconhecimento seria uma delas, a atenção, outra. A noção de atitude estética é mobilizada para defender a ideia de que o espectador é um criador.
Aqui, é adotada a definição tarkovskiana do cinema como escultura do tempo, não restrita ao cineasta, e sim esticando-a até o espectador, compreendendo que, nesse caso, trata-se de esculpir a duração interna. Essa criação é temporal porque se direciona ao não esquecimento, à duração do acontecimento fílmico na consciência. Por isso Bergson insiste no elogio à capacidade artística de “reconhecer a importância criadora da memória” (SÃO PAULO, 2020, p. 207). A capacidade de evitar o esquecimento pode se estender para diferentes direções, inclusive para uma politização da memória, possibilitada por cinemas concebidos por cineastas como Alain Resnais e Patricio Guzmán – que ganham destaque no livro.
Mesmo que Bergson não tenha apreciado o cinema e que o cinema não dependa de Bergson para existir, Deleuze tentou mostrar, em A imagem-movimento e a imagem-tempo, que Bergson é um pensador cinematográfico e que o cinema é ontologicamente bergsoniano. Yves São Paulo (2020) opera nessa direção, mas a seu modo, prolongando a discussão para a cinefilia, desenvolvendo, assim, a ideia de que, embora Bergson não tenha sido cinéfilo, a experiência do espectador pode ser pensada a partir de seu pensamento, pois de sua filosofia pode se desdobrar fundamentos para uma metafísica da cinefilia.
Referências BIbliográficas
BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BERGSON, Henri. Introdução à metafísica. In: Os pensadores: Henri Bergson, cartas, conferências e outros escritos. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 17-45.
CARLOS, Cássio Starling; PRADO JR., Bento. Bento Prado Jr analisa Deleuze. Folha, São Paulo, 2 de junho de 1996: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/6/02/mais!/7.html. Acesso em 01/02/2022.
originalmente publicado em Revista Sísifo.
Clique na imagem para comprar ou