sábado, 1 de fevereiro de 2014

Brinquedo Proibido de René Clément (jeux interdits, 1952)


direção: René Clément;
roteiro: Jean Aurenche, Pierre Bost, François Boyer (baseado em seu livro, e roteirista), René Clément;
edição: Roger Dwyre;
estrelando: Brigitte Fossey, Georges Poujouly.

Durante a década de 1950 o cinema francês vivia um momento de sucesso. Seus filmes eram tão bem sucedidos frente ao público (e também à crítica) que conseguiam competir com grandes produções vindas de Hollywood. E deste momento de grande êxito da produção cinematográfica francesa que surgiram grandes nomes, tais como René Clemente, Henri-Georges Clouzot, Marcel Carné, Robert Bresson, cada um deles com filmes que se destacavam nas salas de cinema a ponto de obter lucro. Mas boa parte destes nomes não era bem vista pela nova escola da crítica de cinema que se formava nos cineclubes que surgiam no país. Este grupo de críticos tomou a frente do mundo cinematográfico francês, delimitando o que era ou não bom, o que deveria ser ou não visto. Essa nova escola também invadiu o mundo da produção cinematográfica, transformando o padrão de qualidade dos filmes e dando ao mundo do cinema uma nova forma de encarar os filmes que eram feitos. Esta nova escola nunca conseguiu atingir os mesmo êxitos que a antiga escola que era chamada depreciativamente por eles de "padrão francês de qualidade". 

Devido a esta mudança da forma com que o cinema francês era encarado, boa parte desta geração diminuiu o número de filmes que fazia, e muitos de seus membros foi gradualmente caindo no esquecimento. Exemplo disto é o diretor do filme a ser comentado aqui, René Clement. Clement era o grande nome do cinema francês pré-nouvelle vague, seus filmes eram nomeados ao Oscar, tinham maior apelo frente ao público (constantemente aparecendo nas listas de maior bilheteria), e também era aquele que recebia mais críticas negativas dos jovens críticos. "Brinquedo Proibido" foi indicado ao Oscar de melhor roteiro adaptado em 1953. É um filme que poderia ser pensado como possuindo um caráter enormemente literário, mas que não o apresenta. 


Uma bela cena é construída, talvez a melhor do filme. Clement se vale somente da montagem para mostrar a bomba explodindo, as pessoas morrendo e as que estão vivas com temor da morte que lhes ronda. Temos a imagem de um avião sobrevoando a estrada, todos se desesperam, começam a correr, o avião solta as bombas, o close-up de uma mulher gritando, a explosão, outra explosão ao lado da ponte, as pessoas se abaixando. Passado este momento, todos retornam para a estrada correndo para passar pela ponte. Com a montagem Clement mostra ao espectador do que aquelas pessoas estão fugindo, do que elas tem medo, e logo em seguida o motivo - elas não fogem de um avião simplesmente porque é um avião, mas porque ele pode matar (e assim ele faz um filme para que aqueles que não tem conhecimento acerca da II guerra mundial também possam compreender - crianças, por exemplo).

Quando retornam para a estrada, a família de Paulette (Brigitte Fossey) se depara com o carro deles sem ligar. Numa fuga, em que o perigo está rondando eles não se podem dar ao luxo de ficarem parados. É novamente por meio da montagem que Clement nos mostra o problema que representa aquele carro quebrado no meio da estrada. Todos os carros que estão atrás dele não podem passar, são mais pessoas servindo de alvo fácil, mais pessoas que não podem fugir do perigo que ronda. É um filme muito bonito e muito bem construído. Ainda nesta primeira sequência os pais de Paulette são mortos por um destes aviões e a menina fica orfã. Mas vive em um mundo a parte, não compreendendo muito bem o que seja a guerra, mesmo tendo estado no meio dela. Ela vai parar numa casa da zona rural protegida dos bombardeios e faz amizade com o garoto que mora numa fazenda, Michel (Georges Poujouly). A partir desta amizade os dois vão passar a pensar na morte em tempos em que ela está sempre a rodar, mas sem a mesma preocupação dos adultos. 

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Ela de Spike Jonze (her, 2013)


direção: Spike Jonze;
roteiro: Spike Jonze;
fotografia: Hoyte van Hoytema;
estrelando: Joaquin Phoenix, Amy Adams, Scarlett Johansson, Rooney Mara.

Spike Jonze se apresenta no cenário atual do cinema estadunidense como um dos mais criativos cineastas de sua geração. Este é o seu quarto longa-metragem em uma carreira de quinze anos, desde sua estréia com o elogiadíssimo Quero ser John Malkovich. Mesmo sendo uma curta filmografia (ao menos em longas-metragens, já que ele possui uma longa lista de curtas) é possível notar algumas características presentes em seus filmes. A principal delas é a vontade do cineasta de mostrar o que se passa na mente de seus personagens. E esta vontade vai desde o absurdo de uma porta que transporta as pessoas para dentro da mente de John Malkovich no citado filme, até uma forma mais sutil, quando o cineasta entra no mundo fantasioso de uma criança em Onde vivem os monstros. É algo que constantemente encontramos na filmografia moderna, este desejo de despir o subjetivo do personagem com o auxílio de uma câmera e que em Jonze se encontra com uma vontade de levar este desejo a situações absurdas pelas quais os personagens passariam e por meio delas seus sentimentos seriam desnudados, não somente com o auxílio das expressões faciais do ator, mas com a construção do mundo que cerca o personagem.


Em Ela, temos a história de Theodore Twombly (Joaquin Phoenix) um escritor de cartas para outras pessoas. É o seu emprego que caracteriza o mundo em que vive, as pessoas que evitam o contato com as outras preferindo as facilidades da vida confortável que a tecnologia oferece, sem a necessidade de criar vínculos com pessoas e depois se desapontar. Theodore está em depressão devido a sua separação com sua esposa. Ele se esconde do resto do mundo para não voltar a sofrer novas decepções. Seu único escape é a amiga Amy (Amy Adams) que acabara de romper seu relacionamento com o marido.

Para poder fugir desta atmosfera pesada em que se encontra, Theodore encontra um consolo, um sistema operacional que é o sonho de Isaac Asimov, uma máquina com inteligência própria. Samantha (voz de Scarlett Johansson), nome que o sistema operacional do celular de Theodore se dera, torna-se sua grande companhia. Eles conversam a todo momento. Ela faz Theo rir e logo eles passam a viver uma paixão. O que é interessante nesta trama é a forma como ninguém acha estranho a relação amorosa entre o protagonista e seu computador, com exceção de sua ex-mulher que parece ser a única a enxergar nesta relação o escape do qual seu ex-marido necessitava do mundo real - viver com uma imitação de vida para não ter que enfrentar os problemas que se encontram nas relações com as outras pessoas.


Dentro deste mundo impessoal Spike Jonze procura os pedaços de vida que ainda existem nas pessoas. É assim que ele retrata Theodore, sempre buscando suas memórias afetivas e constantemente voltando no tempo para mostrar em cenas rápidas os momentos felizes com Catherine (Rooney Mara) sua ex-mulher. São nestes momentos em que o cineasta consegue encontrar os sentimentos de seu protagonista e apresentá-los na tela criando o lado emotivo de seu personagem. É a construção do personagem que aos poucos se apresenta em nossa frente. Theodore não está completamente formado logo na primeira cena de Ela, o que significa que ele irá se construir em frente aos nossos olhos à medida em que ele próprio se conhece. 

A cena de seu encontro com Catherine é muito simbólica neste sentido: ele teme reencontrá-la devido a todo o passado que viveram juntos, dos tempos em que foram felizes, mas a sua verdadeira temeridade está na verdade que sua ex-mulher representa. Ela o conhece bem e saberá melhor do que qualquer pessoa (e talvez até mesmo do que a câmera) mostrar os medos de Theodore. Ela é a única pessoa que acha absurda a relação dele com um computador e mostra isso para ele: ele foge das relações com outras pessoas. O emocional de Theodore fica devastado depois desta revelação trazida por Catherine porque ela expõe toda a verdade que ele vinha temendo enxergar. Daí a cena mais interessante do filme em que nos é mostrado Theodore sentado de costas para uma tela gigante onde aparece uma coruja voando em sua direção como se fosse caçá-lo para comê-lo.


É um filme interessante desenvolvido por um diretor criativo que utiliza toda a inventividade da tradição do cinema estadunidense para desenvolver um filme com uma assinatura própria, sem a necessidade de criar um espetáculo de explosões e montagem acelerada para criar ritmo. Trata-se de um filme intimista que busca falar sobre o homem e suas relações cada vez mais impessoais neste mundo onde as tecnologias facilmente descartam quem pode criá-las. 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Charles Chaplin (sobre posicionamento de câmera)


"A mecânica da direção de filmes era muito simples nessa época [1914]. Eu precisava apenas distinguir a minha esquerda da minha direita, para as entradas e saída de cena. Se alguém saía de uma cena pela direita devia entrar pela esquerda na cena seguinte. Se alguém saía de cena caminhando para a câmera cinematográfica, devia entrar de costas para a câmera na próxima cena. Essas eram, é claro, as regras primárias. Com mais experiência, descobri que a colocação da câmera não apenas tinha uma significação psicológica, como ainda articulava uma cena. Na verdade, era essa a base do estilo cinematográfico. Como a economia do movimento é importante, ninguém deseja fazer um artista caminhar uma distância desnecessária a menos que haja uma razão especial para isso. Porque caminhar não tem expressão dramática. Portanto, a colocação da câmera deve produzir o efeito de uma composição e proporcionar uma entrada graciosa ao artista. A colocação da câmera tem assim uma inflexão cinemática. Não há regra fixa sustentando que um primeiro plano dê mais ênfase a uma cena do que um long-shot (tomada à distância). Um close-up (primeiro plano) é uma questão de sentimento, mas algumas vezes um long-shot pode dar ainda maior ênfase."

(Charles Chaplin em "Minha Vida")

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A Morte (La Commare Secca) de Bernardo Bertolucci (1962)


direção: Bernardo Bertolucci;
roteiro: Pier Paolo Pasolini, Bernardo Bertolucci, Sergio Citti;
direção de fotografia: Giovanni Narzisi;
estrelando: Francesco Ruiu, Giancarlo De Rosa, Vincenzo Ciccora.

"A Morte" abre com uma ponte vista de baixo. Não vemos toda a extensão da ponte, nem os carros que passam sobre ela. De repente diversos pedaços de papel são lançados para o ar, descendo em direção à parte de baixo da ponte. Alguns destes papeis, picotados de revistas, ficam presos no concreto, outros no mato alto que se apresenta às margens do rio. Aqueles que conseguem manter sua caminhada nos revelam o corpo de uma mulher. Ela está deitada, virada para o chão, morta.


Assim como são necessários os pedaços de papel para fazer-nos enxergar o corpo da mulher morta debaixo da ponte, Bernardo Bertolucci necessita de alguns personagens para nos contarem o que aconteceu na noite anterior e assim chegar ao assassino da mulher. O diretor nos apresenta uma investigação, portanto. Em outros grandes filmes em que seguimos um personagem que nos conta a história, nada além daquilo que ele percebeu durante a ação nos é mostrado. Talvez possa ser neste ponto em que possamos enxergar uma falha, talvez proveniente da inexperiência do estreante (que antes deste filme não havia atuado como diretor nem mesmo em curta-metragem). Se a narrativa nos é guiada por alguém que dela participou, como podemos ter acesso à algo que ele não notou, que ele não viu? Será que a câmera de Bertolucci seria uma câmera que não teria qualquer participação nas ações, faria o simples trabalho de documentação dos fatos? Não parece ser este o ponto trabalhado pelo diretor, uma vez que a câmera está sempre a segui-los frente aos seus depoimentos ao investigador da polícia. 

Mas não podemos dizer que o trabalho é de todo ruim. Bertolucci sabe apresentar a história e sabe como filmá-la, por mais inadequada que possa parecer a forma como ele apresenta seus personagens. Aqui nós temos um cineasta que no auge de sua juventude e imaturidade frente ao seu estilo estético, se deixa levar pelas construções ideais de terceiros de como deveria ser feito um filme para que seja considerado um "filme de arte". A influência do cinema neorrealista é inegável, uma vez que o cineasta vai à periferia filmar estes personagens marginais (no sentido de serem personagens à margem da sociedade), em cenários reais, exibindo as mazelas que afligem seu povo. E para completar esta influência neorrealista temos os não-atores contratados para interpretarem os suspeitos.


Vale deixar aqui também o belo trabalho que Giovanni Narzisi, o fotógrafo do filme, faz ao lado de Bertolucci. São diversos os planos sequência que formam o filme, e todos eles acontecem debaixo de iluminação natural. A película é filmada com a câmera na mão que segue os personagens como se estes vivessem em uma guerra. A guerra do cotidiano. A guerra dos miseráveis em um país que lutava para sair de sua miséria causada por uma grande guerra. A guerra travada pelos mais pobres para poder sobreviver. E, como em toda guerra, alguém tem que morrer. Mas desta vez, o assassino terá que ser punido. É em busca desta punição que a câmera de Bertolucci e Narzisi corre atrás. E como a câmera consegue desnudar a verdade quando filma as pessoas, logo no interrogatório, antes que um dos interrogados nos conte sua história, já sabemos que é o culpado.

Trata-se de um ensaio de um grande artista em formação, de um artista em busca de uma visão própria acerca de seu veículo representativo.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Azul é a Cor Mais Quente de Abdellatif Kechiche (La Vie d'Adèle, 2013)



direção: Abdellatif Kechiche;
roteiro: Abdellatif Kechiche, Ghalia Lacroix, (adaptado da obra de) Julia Maroh;
direção de fotografia: Sofian El Fani;
estrelando: Adèle Exarchopoulos, Léa Seydoux.

Há algum tempo não via uma Palma de Ouro tão controversa quanto esta. "Azul é a cor mais quente" chegou em Cannes como um filme desconhecido e saiu como o acontecimento do festival - tanto que quando de sua estréia no festival nem mesmo título em países estrangeiros ele tinha ainda, e naquele momento o grande ganhador de uma dos maiores festivais de cinema do mundo atendia pelo nome de "La Vie d'Adèle". Depois da premiação e de todos os comentários que cercaram o filme, surge a enorme campanha publicitária que o fez ser um dos filmes mais comentados do ano, tanto quanto os filmes comerciais estadunidenses (e neste meio estavam as entrevistas das duas atrizes principais do filme, em grande parte com tom acusatório, contrárias aos métodos "diferentes" do diretor).


E os boatos se confirmam, "Azul é a cor mais quente" sabe se afirmar como um dos grandes filmes de 2013. O filme começa com Adèle (Adèle Exarchopoulos) saindo de casa e indo para a escola. Na aula, o professor discute o amor a primeira vista e o que sentiam seus estudantes quando acometidos por tal sentimento. Certo dia, atravessando a rua, ela se depara com uma jovem, de cabelos curtos tingidos de azul. Esta garota não sai de sua cabeça. Pouco depois encontra a tal garota, Emma (Léa Seydoux), e com ela inicia uma relação amorosa.

Neste ponto, com a relação amorosa entre as garotas, o diretor Abdellatif Kechiche coloca algumas sutilezas para demonstrar como aquela jovem de cabelos azuis está sempre presente no pensamento de Adèle, mesmo que não seja dito. Ela está na fumaça azul que surge em frente à protagonista quando ela está em uma manifestação, nas roupas que a jovem veste, nos olhos de Emma, e até mesmo em um letreiro que se apresenta ao fundo quando ela está sentada em um parque. O azul, tão bem captado no título nacional do filme (originalmente criado nos EUA), é o que representa a paixão de Adèle por Emma, é o detalhe que as une.

Esta sutileza é mais fácil de ser notada no segundo momento do filme, quando o azul desaparece dos cabelos de Emma. A relação entre elas perde o calor inicial, e o distanciamento aumenta. O azul não some somente dos cabelos da amante de Adèle, ele desaparece de todo resto do filme (e até mesmo do quadro em que Adèle é retratada, sobrando alguns pontos que poderiam significar a vontade da retratada de reatar a relação). O azul está apenas nas roupas de Adèle, que é quem deseja retomar a relação para como ela era antes.

São as sutilezas que Kechiche coloca no filme que o transformam em uma obra tão falada. O diretor, em algumas de suas entrevistas, disse que queria banalizar o amor entre pessoas do mesmo sexo, por isso desenvolver um filme cheio de sutilezas, que aborda um tópico tão debatido nos dias atuais - o que poderia facilmente transformar este em um filme militante - em algo natural, comum.