domingo, 29 de abril de 2018

O Medo, de Roberto Rossellini

Autor: Jean Domarchi
Tradutor: Yves São Paulo
Cahiers du cinéma, n° 62
Setembro, 1956


            Eis aqui um filme feito para deliciar os conhecedores. É, se se quiser, a “obra-prima” do cinema intimista, resultado de uma experiência que se poderia discernir em Viagem à Itália que prolonga e acentua certas intenções. Também é preciso prestar atenção sem reserva na gravidade do tom, recusa deliberada que desbota toda produção italiana e que Fellini infelizmente está longe de estar isento. Rossellini se recusa por todos os “efeitos” se beneficiar da construção da novela sobre a qual o filme é baseado onde toda indecisão, todo “repente” estão excluídos. Atrevo-me a remeter uma vez o sentido agudo da “composição”, da organização inexorável do reino das coisas, o agenciamento destes planos. Que se fale sobre sua preferência no plano abordado, estejamos certos de que ele é guiado pela preocupação constante de se ater ao passo a passo dos protagonistas, de surpreender seus mais secretos movimentos. O tema que ele trata quereria uma recontagem, algo de extraordinário que reina ao longo do filme como que uma vontade de abstração visível no cenário, a utilização e repartição de branco e preto? Esta infalível adequação do fundo com a forma é tão rara que sublinhamos aqui.
            Rossellini declarou que o que o interessou em O Medo foi mostrar “a importância da admissão, da confissão”.
            Sem dúvida no filme há mais que isso. Se pararmos para ler o livro no qual o filme é baseado veremos que ali o interesse vai além da admissão, como o problema da intransigência moral que vem temperado com alguma caridade. Rossellini procede com algum rigor ao aproximar de boa consciência como objeto a proibição da comunicação com outros sob o nome de imperativos morais inflexíveis, ao nome, se quiser, de um a priori moral intangível exclusivo de toda compreensão, de toda simpatia efetiva. É suficiente para se livrar da comparação entre filme e livro. Ao que se encontra o aforismo de Jean Renoir sobre o qual é sempre preferível adaptar uma obra literária medíocre que uma obra-prima! O que conta efetivamente Zweig? Eis: marido enganado, advogado, temeroso de perder Irene, sua esposa frívola e ociosa. Ele não encontra nada melhor para reconquistá-la que subornar uma mulher que chantageará ignóbil se fazendo passar por velha namorada do amante de Irene. Irene caçada ao ponto de pensar em suicídio quando o marido lhe revela toda maquinação de que ela é vítima. A esposa então reconquista a paz e quietude que o medo a fez perder. Pode-se medir o caráter arbitrário de uma situação mais inadmissível que Zweig revela artisticamente incapaz de justificar. Estranha maneira de trazer uma esposa de volta ao lar por meio de terrorismo!
            Rossellini modificou sua abordagem nos pontos essenciais. O marido não é mais advogado, mas industrial e químico. Irene não é mais mulher ociosa, mas capaz de gerir os negócios na ausência do marido. A perspectiva sobre o casal muda. O marido trata a mulher como se estivesse a conduzir uma experiência científica. Rossellini nos mostra com insistência o procedimento das experiências com cobaias. E a mulher é tratada de modo semelhante. Desejoso de obter a confissão de sua culpa, se livra do que o psicólogo Claude Bernard chamou de “experimentar para ver”. Experiência atroz que é realizada com serenidade de alma porque se acredita obter exigências morais altas. Não dizemos que seja cruel (o perdão que busca não é suficiente para que os filhos o procurem e nele confiem), nele o rigor do pesquisador se degrada num rigor moral que termina no mau reconhecimento radical dos direitos mais sagrados das pessoas e portanto a negação da moral.
            Quanto à mulher, ela não é apenas uma vítima arquejante, presa aos pesadelos (que Rossellini bem fez ao não nos mostrar), cercada, caçada, condenada a aproximar-se de morte inevitável. Transtornada com tudo o que a cerca e que a leva progressivamente aos pensamentos suicidas, ela tem precisamente a revelação da mecânica mental de seu marido para quem o amor não tem mais que um sentido teórico. É toda esta maquinação que faz desta alma sensível e resolvida e que na novela de Zweig é por meio da revelação da chantagem que leva a mulher de volta aos braços do marido, e que no filme de Rossellini esta revelação arrisca separá-los para sempre.
            Vê-se que o salto qualitativo destas mudanças é imensa. Zweig se manteve medrosamente num campo psicológico (o marido advogado explora com sua esposa experiência que ele havia desenvolvido ao longo do contato com seus clientes), Rossellini coloca em questão o respeito cego a uma moral abstrata e uma concepção falsa (“alienada”, diria um marxista) da ciência. Aqui a pessoa humana não é mais para o pesquisador, com suas certezas, que um objeto, um “caso interessante” registrado em espasmos e calculando matematicamente a agonia. Neste sentido as conclusões de O medo se juntam às de Alemanha, ano zero, de Viagem à Itália, e também de Europa 51. Move, como em Alemanha, ano zero a denunciar a “falsa moral”, o abandono da humanidade para culto de um imperativo, não mais que heroico que abstrato. Como em Europa 51, Rossellini mostra a falsa ciência incapaz de compreender os segredos escondidos na alma que qualquer técnica psicanalítica não é capaz de descobrir. E como em Viagem à Itália, Rossellini encontra o drama da comunicação: um casal está prestes a se mudar porque nem o marido nem a esposa sabem como conversar, encontrar as palavras que permitiriam dissipar todo mal-entendido.
            Não estou certo de ter, por meio desta crítica, exposto as riquezas de um filme que como as Afinidades eletivas de Goethe se desenvolve em diversos planos. Sim, se pode falar sem exagero de inspiração goetheana se não por conta do contraponto científico (penso nas sequências do laboratório), que prolonga o drama que assistimos. É preciso retomar Murnau para encontrar um acento também insólito (p. ex. a planta carnívora em Nosferatu). Não nos enganemos: o doutor que se mantém a observar miraculosamente o calvário de sua esposa é a imagem de um alemão que sabe bem conciliar andanças do coração (nosso pesquisador muito apaixonado por sua esposa) e o ultimo grito da técnica mais up to date e mais inumana. A audácia de Rossellini é portanto duplamente recompensada: no plano da arte (jamais a sobriedade vem seca e esquemática) e sobre o plano do conteúdo: quem melhor viu esta dupla face da Alemanha, bucólica e tecnocrática?
            Filme realista? Sem dúvida, mas ao mundo das ideias.

domingo, 15 de abril de 2018

A fantasia e a mágica do espaço em estúdio



            Finalmente tomei coragem de assistir Os Nibelungos, de Fritz Lang. Um filme que me encantou particularmente por seu trabalho em criar um épico. Raras vezes experimentei algo de semelhante. Adaptado de poema clássico de língua alemã de mesmo título, sem autor definido, o filme consegue manter certa aura desta obra literária de onde provém. Enquanto assistia a Os Nibelungos, sentia algo semelhante a quando tomo em mãos épicos clássicos de imensa magnitude para a cultura mundial. Como A divina comédia ou Odisseia.
            O filme se divide em cantos, o que por si só já mantei sua relação com a obra que adapta. E são verdadeiros cânticos, ainda que em filme mudo. Cada um destes cantos tem início por um cartão que apresenta o que acontecerá. Um resumo breve que numa frase toma todas as ações ocorridas nos próximos vinte minutos. Saber de antemão o que acontecerá em nada atrapalha nossa experiência do filme. Porque estamos ali, imersos para saber como se desenrolará a vida daquelas personagens míticas, dentro daquele cenário igualmente mítico.
            Tudo começando dentro de uma caverna. Ou o que parece ser uma caverna. E um homem de belas feições a martelar uma espada em processo de fabricação. Outro está meio escondido apenas observando o homem que monta a espada. Quando o primeiro termina a fabricação, o segundo se aproxima. Pela relação entre os dois compreendemos que um é o mestre e o outro o aprendiz. O mestre segura a espada recém-terminada e solta no ar uma pena que se parte ao meio entrando em contato com a espada. Atenção, é a pena que entra em contato com a espada, não o contrário. Um trabalho magnífico daquele que será o herói desta história: Siegfried.
            A caverna ao pé de uma árvore é um lugar curioso para começar este cântico épico. Como se estivessem a cozinhar o herói, dar-lhe um propósito. Antes disso mostrando que ele tem bastante competência de encarar o que se apresentar a frente. É um princípio que marca também a relação espacial de fantasia deste filme. Os cenários são gigantescos e construídos dentro de estúdios. Para os olhos de espectador do século XXI isso normalmente se apresenta com desconfiança. Estamos demasiadamente acostumados com o naturalismo desenvolvido no cinema. Os épicos que assim se constroem viajando metade do mundo para encontrar os mais espetaculares cenários. Para os cineastas do período mudo, este é um problema que pode ser resolvido no quintal.
            O que acontece com este cenário não é estranhamento. Muito pelo contrário, é maravilhamento. Ficamos maravilhados tão logo imergimos naquela trama. Ficando curiosos em descobrir o que aquelas duas personagens fazem dentro daquela caverna esfumaçada. Porque trabalham com fogo dentro de um local fechado. Este é um princípio para o filme que facilita aos nossos olhos o encontro com o cenário externo construído em estúdio. Nossos olhos agradecem o acalento do espaço aberto, e claro. Onde podemos enxergar os contornos mais claramente e ver o espaço para ação. Até mesmo para que um cavalo possa aparecer e Siegfried partir, desaparecendo atrás das árvores.
            É o espaço ideal para a fantasia. Um estúdio de cinema é o lugar em que a grandiloquência da imaginação pode correr solta. Quando os mundos imaginários podem vir à concretude da percepção ocular. E os filmes deste período do cinema alemão abraçam com facilidade esta grandiloquência. Podemos lembrar também de O Golem, feito alguns anos antes de Os Nibelungos, e que construía toda uma região da cidade para abrigar este conto fantástico a respeito deste ser que dá título ao filme.
            Saído daquele espaço onde se despede de seu mestre, Siegfried encontra e luta contra um dragão. Novamente o que para nossos olhos de espectador contemporâneo parece causar algum estranhamento, é perfeitamente aceitável dentro daquela trama. O dragão não parece ameaçador e Siegfried o confronta por vaidade. No cenário em que ele encontra o dragão e o derrota, há um lago com uma pequena cachoeira onde o dragão bebe água. É fascinante como este cenário é construído. Facilmente pode passar por algo real, quando não o é. E a aceitação da presença fantástica daquele dragão dentro deste espaço do fantástico se faz de modo muito mais fácil. Uma criatura fantástica dentro de um universo fantástico. O campo perfeito para a criação de um poema épico.
            Esta grandiloquência dos épicos do cinema mudo que pode ser retraçada até as grandes produções italianas do início dos anos 1910, rende em Os Nibelungos algo da aura de inacessibilidade daquele universo. Algo plenamente aceito quando pensamos bem no caso. Mas que nos é acessível por meio de um cântico clássico. Algo que poderia vir de outro período. De outros tempos. Algo talvez até mesmo feito por culturas passadas, já não dotadas de todo o conjuntos de assertivas formuladas no intervalo de tempo que nos separa. O cinema mudo frequentemente se vê neste embate de criar ficção arcaica. D. W. Griffith filmava personagens de moral fora de moda até mesmo para seu período. Ainda assim, encontrando a grandiloquência de filmes como Intolerância, algo disto é feito acessível.
            O poema épico já não é mais um formato comum de criação para os autores contemporâneos. Mesmo nos anos 1920, quando Fritz Lang realiza seu Os Nibelungos, o poema épico já não é mais um meio de expressão viável. Nem mesmo no teatro, com autores e atores trabalhando em cima de falas cada vez mais próximas do ritmo de entonação cotidiano. No caso da literatura, o espaço antes ocupado pelo poema épico foi ocupado pelo romance, talvez o mais popular dos meios pelos quais um escritor pode apresentar sua ficção.
            Ainda assim, Fritz Lang consegue com seu filme algo muito próximo do poema épico. Ou melhor, algo de muito próximo do que seria o equivalente cinematográfico do poema épico. Nisso com a construção de um mundo fantástico, habitado por personagens que somente existiriam dentro daquele mundo fantástico. Figuras construídas para aquele mundo. O que se apresenta também na figura de Siegfried. O másculo herói de farta cabeleira loura somente pode ser encontrada naquele espaço de fantasia criado para aquele filme. Em qualquer outro filme, mesmo que se trate de outra adaptação do mesmo cântico, não veremos uma figura semelhante àquele Siegfried. Ele pertence àqueles cenários. Junto com o dragão, o pássaro cujo canto Siegfried compreende como dizendo que ele deve se banhar no sangue do dragão e ser invencível, e a capa de invisibilidade que encontra com um mago na floresta.
            Tudo isto é possível graças a este espaço construído especialmente para o filme.