domingo, 23 de julho de 2017

O cinema

Virginia Woolf


            Dizem que o selvagem não mais existe em nós, que somos uma sociedade esgotada, que tudo já foi dito, e que é muito tarde para ser ambicioso. Mas presumo que estes filósofos esqueceram-se dos filmes. Nunca viram os selvagens do século XX assistindo aos filmes. Nunca se sentaram em frente a uma tela e pensaram em como toda a roupa em seus corpos e carpetes a seus pés, não os separam a grande distância daqueles homens nus de olhos brilhantes que batem duas barras de ferro juntas e escutam em repique a antecipação da música de Mozart.

            As barras neste caso, claro, são tão trabalhadas e tão cobertas com acréscimos de materiais alienígenas que é extremamente difícil escutar qualquer coisa distintivamente. É tudo vai e vem, multidão, caos. Estamos observando, à beira de um caldeirão, fragmentos de todas as formas e sabores fervilhando; agora e novamente alguma vasta forma se eleva e parece prestes a se arrastar para fora do caos. À primeira vista, a arte do cinema parece simples, até estúpida. Há o rei balançando as mãos para um time de futebol; há o iate de Sir Thomas Lipton; há Jach Horner vencendo o Grand National. O olho passa por tudo isso instantaneamente, e o cérebro, igualmente excitado, se acalma para assistir os acontecimentos sem se agitar para pensar. Para o olho ordinário, para o olho do inglês a-estético, é um simples mecanismo que garante que o corpo não caia em buracos de carvão, providenciando ao cérebro brinquedos e doces para mantê-lo quieto, garantindo que ele continue se comportando como uma enfermeira atenciosa até que o cérebro venha à conclusão de que é tempo para acordar. Qual é seu propósito, então, para ser despertado de repente no meio de sua agradável sonolência e clamado por socorro? O olho está com dificuldades. O olho quer ajuda. O olho fala ao cérebro, “Algo está acontecendo que não consigo compreender. Você é necessário.” Juntos eles olham para o rei, o barco, o cavalo, e o cérebro vê de uma vez que eles ganharam uma qualidade que não pertence à simples fotografia da vida real.

            Não se tornaram mais bonitos no sentido em que imagens são bonitas, mas devemos chamar (nosso vocabulário é miseravelmente insuficiente) mais reais, ou reais com uma realidade diferente daquela em que percebemos a vida cotidiana? Nós as contemplamos como elas são quando não estamos lá. Vemos a vida como ela é quando não temos parte nela. Enquanto observamos, parecemos ser removidos da mesquinhez da existência. O cavalo não nos derrubará. O rei não apertará nossas mãos. A onda não molhará nossos pés. Deste ponto de vantagem, enquanto vemos as antiguidades de nosso tipo [kind – referência ao humano], temos tempo de sentir pena e divertimento, de generalizar, de dotar um homem com os atributos de uma raça. Assistindo o barco velejando e a onda quebrando, tempos tempo de abrir nossas mentes para a ampla beleza e registrar no todo disto a estranha sensação – esta beleza irá continuar, e esta beleza irá florescer quer contemplemos, quer não.  Além do mais, tudo isso aconteceu dez anos atrás, nos dizem. Estamos vendo um mundo que foi para debaixo das ondas. Noivas estão surgindo na abadia – agora são mães; mestres são ardentes – agora estão silenciosos; mães estão chorosas; convidados estão alegres; isto foi ganho e aquilo foi perdido, e está acabado e encerrado. A guerra surgiu do abismo aos pés de toda inocência e ignorância, portanto, dançamos e piruetamos, labutamos e desejamos, e por isso o sol brilhou e as nuvens escorreram, até o fim.

            Mas os cineastas parecem insatisfeitos com tão óbvias fontes de interesse como as passagens de tempo e a sugestão de realidade. Desprezam voos de gaivotas, embarcações no Tâmisa, o Príncipe de Gales, a Mile End Road, o Circo Picadilly. Querem melhorar, alterar, fazer uma arte que lhes seja própria – naturalmente, porque muito parece adentrar em seu escopo. Muitas artes parecem esperar prontas para oferecer sua ajuda. Por exemplo, há a literatura. Todas as famosas novelas do mundo, com suas bem conhecidas personagens e suas famosas cenas, apenas pedindo, parece, para serem colocadas em filme. O que poderia ser mais fácil e simples? O cinema caiu sobre sua presa com imensa rapacidade, e até o momento subsiste sobre o corpo de sua infeliz vítima. Mas os resultados são desastrosos para ambos. A aliança não é natural. Olho e cérebro são cortados em pedaços sem piedade enquanto tentam vaidosamente trabalhar em conjunto. O olho diz “Aqui está Anna Karenina”, uma moça voluptuosa em veludo preto, vestindo pérolas, vindo em nossa direção. Mas o cérebro diz, “Mas esta não é mais Anna Karenina do que é a Rainha Victoria”. Porque o cérebro conhece Anna quase inteiramente pelo interior de sua mente – seu charme, sua paixão, seu desespero. Toda a ênfase é dada pelo cinema sobre seus dentes, suas pérolas, e seu veludo. Então, “Anna se apaixona por Vronsky” – o que quer dizer, a moça em veludo preto cai nos braços de um cavalheiro de uniforme e eles se beijam com enorme suculência, grande deliberação, e infinita gesticulação, no sofá de uma extremamente bem arrumada biblioteca, enquanto o jardineiro incidentalmente corta o gramado. Então assim passeamos por algumas das mais famosas novelas do mundo. As soletramos em palavras de uma sílaba, escritas, também, no rabisco de um iletrado garoto na escola. Um beijo é amor. Um copo quebrado é ciúme. Um riso é felicidade. Morte é um ataúde. Nenhuma destas coisas tem qualquer conexão com a novela que Tolstói escreveu, e é apenas quando desistimos de tentar conectar as imagens com o livro que percebemos de alguma cena acidental – como o jardineiro cortando o gramado – que o que o cinema precisa fazer é lidar com seus próprios dispositivos.

            Mas quais, então, são estes dispositivos? Se deixar de ser um parasita, como fará para caminhar ereto? No momento, é apenas a partir de sugestões que se pode moldar qualquer conjectura. Por exemplo, numa exibição de Dr. Caligari dias atrás, uma sombra em forma de larva de repente apareceu no canto da tela. Inchou-se para um tamanho imenso, estremecida, abatida, e se afogou de volta para sua não entidade. Por um momento parecia incorporar alguma monstruosa imaginação doentia de um cérebro lunático. Por um momento pareceu que um pensamento poderia ser transmitido de forma mais eficaz do que por palavras. A monstruosa agitada larva parecia temer ela própria, e não a frase “Não tenho medo”. De fato, a sombra era acidental e o efeito não intencional. Mas se uma sombra, num certo momento, pode sugerir muito mais do que os próprios gestos e palavras de homens e mulheres em estado de medo, parece evidente que o cinema tem ao seu alcance inúmeros símbolos para emoções que até o momento não conseguiram encontrar expressão. O terror tem, além de suas formas ordinárias, a forma de uma larva; ele germina, cresce, treme, desaparece. A raiva não é só discurso e retórica, rostos vermelhos e punhos cerrados. É talvez uma linha preta torcida sobre uma folha branca. Anna e Vronsky não têm mais que se retorcer. Eles têm algo a seu comando – mas o quê? Há, nos perguntamos, algum segredo de linguagem que sentimos e vemos, mas nunca falamos, e, se é o caso, poderia isto ser feito visível para o olho? Há alguma característica própria do pensamento que possa se tornar visível sem ajuda de palavras? Há rapidez e lentidão; direcionamento de um dardo e vaporosa circunlocução. Mas tem também, especialmente em momentos de emoção, o poder de criação de imagens, a necessidade de levantar seu peso para outro portador; para permitir que uma imagem corra lado a lado junto com o pensamento. A semelhança do pensamento é por alguma razão mais bonita, mais compreensível, mais disponível, do que o próprio pensamento. Como todos sabem, em Shakespeare as mais complexas ideias criam correntes de imagens, as quais montamos, mudamos e torcemos, até chegarmos à luz do dia. Mas, obviamente, as imagens de um poeta não são fundidas em bronze ou traçadas a lápis. São um compacto de milhares de sugestões da qual o visual é apenas o mais óbvio e mais elevado. Mesmo a mais simples imagem, “Meu amor é como uma rosa, uma rosa vermelha, que desabrocha em junho”, nos apresenta impressões de umidade, calor e do brilho do carmim e a suavidade das pétalas inextricavelmente misturadas e amarradas sobre a exaltação de um ritmo que é em si a voz da paixão e hesitação do amante. Tudo isso, que é acessível a palavras e apenas a palavras, o cinema deve evitar.

            Ainda que muito de nosso pensar e sentir esteja conectado ao ver, algum resíduo da emoção visual que não é usada tanto por pintores ou poetas pode ainda se reservar ao cinema. Que tais objetos venham a não parecer com os objetos reais que vemos perante nós parece altamente provável. Algo abstrato, algo que se mova com a arte controlada e consciente, algo que exija a mínima ajuda das palavras e da música para tornar-se inteligível, ainda que utilizando-as subservientemente – de tais movimentos e abstrações os filmes devem, com o tempo, começar a ser compostos. Então, de fato, quando algum novo símbolo para expressar o pensamento é encontrado, o cineasta tem enormes riquezas em seu comando. A exatidão da realidade e seu surpreendente poder de sugestão devem ser tomados em questão. Annas e Vronskys – lá estão eles em matéria. Se dentro desta realidade ele poderia respirar emoção, poderia animar a perfeita emoção com pensamento, então sua recompensa poderia ser saudada com uma mão sobre a outra. Então, quando a fumaça derrama do Vesúvio, devemos ser capazes de ver o pensamento em sua selvageria, em sua beleza, em sua estranheza, repleta de homens com seus cotovelos sobre a mesa; de mulheres com suas pequenas bolsas escorregando para o chão. Deveríamos ver estas emoções misturando-se juntas e afetando-se mutuamente. Deveríamos ver violentas mudanças de emoção produzidas por sua colisão. Os mais fantásticos contrastes poderiam passar perante nós com a velocidade com que o escritor pode apenas labutar em vão; o sonho arquitetural de arcos e ameias, de cascatas caindo e fontes subindo, que às vezes nos visitam durante o sono ou se esculpem em quartos meio escuros, podendo ser percebidos perante nossos olhos acordados. Nenhuma fantasia poderia ser exagerada ou insubstancial. O passado poderia ser desenrolado, distâncias aniquiladas, e os abismos que deslocam novelas (quando, por exemplo, Tolstói tem que passar de Levin para Anna e ao fazê-lo sacode sua história e move e prende nossas simpatias) poderiam pela semelhança de plano de fundo, pela repetição de alguma cena, ser suavizados.

            Como tudo isto pode ser tentado, ou alcançado, ninguém no momento pode nos dizer. Somente somos intimados no caos das ruas, quando porventura alguma reunião de cores, sons, movimentos, sugerem que há ali uma cena esperando uma nova arte que a penetre. E às vezes, em meio à imensa destreza e enorme proficiência técnica do cinema, a cortina cai e observamos, ao longe, alguma desconhecida e inesperada beleza. Mas é apenas por um momento. Porque uma coisa estranha aconteceu – enquanto todas as outras artes nascem nuas, esta, a mais nova, nasceu completamente vestida. Pode dizer tudo antes que tenha qualquer coisa a dizer. É como se a tribo selvagem, ao invés de encontrar suas barras de ferro para brincar, encontrasse espalhadas pela costa violinos, flautas, saxofones, trompetes, pianos de cauda de Erard e Bechstein, e começasse, com incrível energia, mas não conhecendo sequer uma nota musical, a martelar e bater neles ao mesmo tempo.


Texto original pode ser encontrado aqui:
http://www.woolfonline.com/timepasses/?q=essays/cinema/full
Traduzido por Yves São Paulo.
A tradução deste texto não foi fácil. Agradeço a Maria Cândida Neres pela revisão.

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