sábado, 16 de abril de 2016

O filho de Saul de Lazlo Nemes (Saul fia, 2015)


Alguns filmes nos provocam mais que outros. Alguns filmes nos provocam de tal modo que necessitamos falar sobre ele com alguém (ou muitos alguém) ou nos movem a escrever sobre ele. Em alguns casos por motivos negativos: um filme que nos despertou algo que não deveria e que sentimos a necessidade de advertir os demais com relação a esta sua característica. Em outros casos, por motivos positivos. Num terceiro caso ainda, o filme nos deixa com mais dúvidas que respostas e precisamos solucioná-las de alguma maneira, e esta maneira é organizar o fluxo de pensamentos, que guerreiam entre si, numa organização lógica num papel (ou numa tela de computador) para que até mesmo quem escreve possa descobrir o significado daquele emaranhado de pensamentos.

O filho de Saul é um caso curioso. Tinha uma impressão quanto ao seu princípio que foi desfeita ao longo da narrativa. Num primeiro momento, me vinha com força o princípio de não estetização do passado, dos campos de concentração. Não fazer como Denis Villeneuve em Politécnica, que gira a câmera, tira cenários de foco, no meio de uma narrativa trágica que busca a reaproximação com um fato real (por meio de efeitos assim não se aproxima o espectador do passado). A primeiro tomada posta por Lazlo Nemes em seu filme está fora de foco. Pessoas aparecem em quadro e ninguém pode ser reconhecido. Até que um desses vultos caminha em direção à câmera, terminando num close: é Saul. Este close permanecerá pelo resto da cena e as demais personagens aparecerão somente ao fundo, desfocadas ou parcialmente desfocadas.


Foi algo de muito arriscado o que fez Nemes neste filme. Mas desde o título ele já deixa clara ser esta a saga de um indivíduo: Saul. Assim, surgem alguns questionamentos: como podemos retornar ao campo de concentração, contar uma história, e dotar aquelas personagens com identidade? Aquelas pessoas todas que eram postas em trens e câmaras para ser exterminadas? Não se faz. As vítimas do nazismo são espectros que compõem o quadro na medida em que fazem parte da vida nova de Saul, um judeu colocado pelos nazistas para desempenhar trabalhos indignos num campo de concentração (existe algum trabalho digno dentro de um?).

Dignidade parece ser uma palavra chave, neste filme. Porque Saul, numa limpeza de uma câmara de gás, descobre junto a seus colegas presos um adolescente ainda vivo. O menino respira com dificuldade e é retirado dali. De longe, Saul toma interesse pelo garoto. Observa o que fazem o médico judeu, obrigado pelos militares a trabalhar no campo, e os líderes do campo que vêm testemunhar o caso. Um dos fardados realiza o trabalho que a câmara de gás deveria ter feito. É dado início à saga de Saul. Toma o menino como sendo seu filho e quer enterrá-lo dentro do campo, tenha ele ajuda de outros ou não.


Falo da dignidade enquanto palavra chave porque Saul é uma personagem deslocada no meio em que se encontra. Enquanto seus companheiros de serviço buscam meios de escapar da prisão e do futuro extermínio, ele tenta pôr em prática algo que soa absurdo. Mas há uma simbologia por trás desta ação que Saul quer tentar. Porque, por mais que ele diga que a criança é seu filho, um homem que parece conhecê-lo de antes daqueles tempos sombrios lhe diz que ele não tem filho. Lembra o "você não viu nada em Hiroshima" de Resnais. Nos dois casos, uma referência ao tempo. Mas enquanto a frase de Hiroshima, meu amor reflete o passado, uma memória implantada na mente da atriz/enfermeira, o "você não tem filho" do filme de Nemes reflete o presente e o futuro.

Explico: uma criança é imagem do futuro, é uma esperança. A criança tem potencialidade de se tornar um cidadão que interfira no caminhar do mundo e mudar o rumo das coisas. Saul é das poucas personagens com consciência de que nada daquilo por que passa pode ser mudada. Saul não tem futuro, e portanto não tem filho. O presente é muito obscuro para que ele possa dizer que o possui. E o enterro de um filho que ele acredita ser seu, e que é dito como não sendo, é um modo de sepultar com dignidade um passado. Tudo isso muito bem refletido quando, próximo ao fim do filme, Saul diz "já estamos mortos" para os companheiros que acreditam na possibilidade de fuga. Saul sabe desta impossibilidade. E a morte pela câmara de gás se constitui como uma indignidade. É uma morte sem identidade, uma morte sem passado. São mortos na câmara não pessoas, mas coisas. Saul sabe que ainda é dono de parte do presente e tenta utilizar esta possibilidade de resquícios de sua liberdade para honrar o passado. A criança morta é a impossibilidade de um futuro. E a criança morta nas mãos de Saul é a imagem símbolo desta inexistência do porvir. É destruído o passado e o seu individualismo. 


O individualismo, o segundo ponto chave de O filho de Saul. Seguindo sempre em close, sempre próximo a Saul, o filme dá a este protagonista a identidade que não concede a quase mais ninguém, a não ser os companheiros de Saul que planejam uma rebelião dentro do campo. O individualismo implica numa subjetividade, duas coisas retiradas à força dos presos num campo de concentração desde a sua chegada: o preso do campo de concentração perde sua identidade, lhe é dada em troca de seu nome, um número; ele é marcado como gado bovino pronto para o abate. Quando o grupo do sonderkommando retorna de uma tarefa fora do campo (jogar as cinzas dos corpos incinerados num rio próximo), a chamada para saber se estão todos lá é feita por meio da declamação dos números. Saul não mais é Saul, e sim 7005.

O regime totalitário não somente retira a identidade de seus prisioneiros, como de toda sua população. Não mais importa o indivíduo, que é sempre perigoso. Um indivíduo possui o poder rebelatório, é uma mente pensante por conta própria. Os seguidores de um regime totalitário, como o nazismo, são membros de hordas, como dizem Adorno e Horkheimer. É preciso colocar uma individualidade em uma das personagens do filme para que possa conceder-lhe este caráter rebelde: Saul é acompanhado de perto, possui identidade, é chamado pelo nome por seus colegas, tenta criar uma memória para si, da mesma forma que busca criar uma moral.

A individualidade de Saul enquanto prisioneiro de um campo de concentração foi dizimada. Num momento de súbito acordar, ele vê a necessidade de deixar sua impassibilidade frente ao sistema em que vive (em que foi posto) para dar algum significado a quem ele foi, desta vez numa identidade por ele forjada dentro do campo de concentração, e que parece não se assemelhar àquela que ele um dia possuiu. Com esta habilidade, Saul deixa de ser mais um membro da horda, do gado humano, para se tornar indivíduo. Alguém dotado de subjetividade, individualidade, memória. Se não há futuro para um prisioneiro num campo de extermínio, a fuga é para o passado, como faz a personagem de La jetée. Mas não para que possa se alienar do presente em que vive, deste Saul tem plena consciência (como a já dita afirmação "já estamos mortos" atesta), e sim para que o passado não seja desfeito, para que aquilo que seus algozes não podem tocar permaneça com a devida dignidade.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Uma princesa sagrada

por: Jacques Doniol-Valcroze

            A história da pastora que casa com o filho do rei, ou do pastor que casa com a princesa é um velho mito que o écran não se privou de explorar longitudinalmente, amplamente e transversalmente. Em Hollywood, é mais comum um rei se tornar um bilionário e o pastor um serviçal de bar, mas que um “romance” qualquer exploda a costa da cabeça das coronárias autênticas e os roteiristas dizendo que fariam muito errado em se privar de álibis desprovidos de realidade. Assim a abdicação de Édouard VIII inspira alguns filmes, como Food for Scandal com Fernand Gravey e a muito arrependida Carole Lombard. Mas que o monarca do mito fosse ele de carne enlatada, da Molvadia ou da atualidade, a essência do sistema seria o irrealismo, diga-se, a convenção de que os reis se casam com pastoras e que pastores se casam com princesas.

            A originalidade e a habilidade de Roman Holliday é de rejeitar o postulado e de substituir por este: a princesa Anne não pode de modo algum casar com o jornalista americano Joe Bradley. Tal pensamento jamais aflora de uma pessoa durante todo o desenrolar do recital. E poderia se surpreender; depois de tudo, ao ver nossos dias de príncipes e princesas renunciando a todos os direitos para desposar o objeto amado e incluir este incidente num roteiro poderia reclamar precedentes reais, mas a habilidade aqui consiste justamente em ser mais realista que o rei, em forçar a credibilidade na princesa Anna definida não por seu acidente possível, mas pela tradição intangível; e a habilidade é dupla porque, ao fazer da princesa um tabu absoluto, o espectador é invariavelmente atirado a buscar seu modelo, não mais na costa da Moldavia ou mesmo de Luxemburgo, mas na costa da Inglaterra porque é lá onde reside a única realeza, tal qual seja seu poder, que não é de modo algum a de uma opereta, a única que na opinião pública encarna ainda uma forma de majestade, de grandeza e de característica sagrada que não seja relativa a ela mesma. Os autores do filme são dados como álibis contra esta confusão que primeiro começa com a visita da princesa Anne, em viagem pelas capitais europeias, ao palácio de Buckingham; porque ela é recebida pela rainha Elizabeth, a confusão não é oficialmente possível, ela não pode ser a Princesa Margaret; e portanto esta confusão, que é a astúcia n° 1 do roteiro, se impõe. O filme debute das “Atualidades Paramout” e no fundo moradia eterna “destas” atualidades, nenhum plano indica jamais que estas atualidades estejam terminadas, e durante estas atualidades vemos a passagem da princesa Anne por Paris, por Londres, depois por Roma. Cada jovenzinha dirá que a Princesa Margaret fez uma estadia em Paris e na Itália e a visita ao palácio de Buckingham é um modo hábil de anexar os dois nomes. Quaisquer que sejam os álibis, e eles são indiscutíveis, nada o fará: a princesa Anne não pode ser a princesa Margaret.
            Assim posto, o filme torna-se fácil de fazer. Fácil... entendamos: para roteiristas da inteligência e sensibilidade de Ian MacLellan Hunter e John Dighton, e para um realizador da envergadura de William Wyler, para intérpretes com o talento de Audrey Hepburn e de Gregory Peck.

            Filmado em Roma, o filme sofreu – certamente voluntariamente – as influências dos métodos dos “neorrealistas”: nada de decoração artificial, nada de “transparência”, nada de um processo estilístico que nos remeta ao mito da pastora. Porque a princesa é “verdadeira”, não seria estrago mergulhas na “verdadeira”. Quando me disseram que este filme é o equivalente de uma comédia de Capra, não acreditei. Não tenho espaço para fazer a demonstração, mas é manifesto que em Capra o recital, mesmo quando ele começa do cotidiano, se eleva progressivamente ao conto de fadas, ao seu modo “moderno”. Aqui é um pouco ao contrário. Não se pode acreditar um só instante no conto de fadas, mais rapidamente o postulado realista de base remonta os heróis à razão. Mesmo o modo de explorar as gags é diferente. Toda a sequência do começo (a viagem da princesa) é em estilo de “atualidades”, e já há algum tempo que “acreditamos” na princesa quando surge o primeiro incidente cômico: aquele do sapato sob o vestido da princesa. Em Capra o incidente teria uma repercussão pública, os convidados na recepção perceberiam o incidente; aqui, tudo retorna à ordem do modo privado: não são mais que a dama de companhia e o embaixador (aliás direi: da Inglaterra) na Itália, as testemunhas. A partir deste momento compreendi que o filme, apesar de certas aparências, não será uma comédia americana, mas simplesmente uma charmosa e nostálgica história que o burguês Wyler entendeu contar deste modo.

            Wyler, que Jezabel, The best years of four lives e The little foxes o estabeleceram como mestre, nos desapontou a partir do décimo terço de Héritière. Esta decepção se confirma com Detective story e Carrie estragados por seus roteiros lamentáveis e pouco fizeram por ele. Com Roman Holliday ele retorna à cena de nossa admiração com uma elegância discreta e sensível. Realizando um filme de aparência fácil, ele demonstra que no gênero dito fácil ainda restam alguns buracos a preencher e que ainda não forma porque a “minoria” do gênero postulado geralmente faz um esforço menor. Ele, fez uma varredura limpa. Sobre este terreno estreito ele trabalhou como fez em The best years: em profundidade. Seu sujeito era o mais movente dos sujeitos do amor: seu nascimento e sua condenação ao instante mesmo onde ele nasce. E será exprimido no filme com grande delicadeza: jamais será a questão do amor. Não lembro de ter já visto um filme de amor ou jamais qualquer pessoa a ter dito a outra: “eu te amo”. Esta reserva insana surge, de modo mudo, à cena final da conferência de imprensa. Mas lá Wyler pode insistir porque o laço foi laçado, e o fosso do novamente alargado e porque esta cena é que é a verdadeira cena de amor do filme, mais que quaisquer beijos furtivos trocados às escondidas, porque são lá que são dadas as “evidências de amor” (a doação das fotos) e as promessas de fidelidade... de qualquer tipo metafísico.
            Frente a Gregory Peck, excelente como de costume, há, portando um nome terrível para o cinema, mas digno de portar, inominável em todos os pontos, Audrey Hepburn. Nem me darei ao ridículo de descobrir. Gigi, muito aplaudido, aclamado em Nova York em Ondine – e Giraudoux era o amado – “Oscar” 1954 – e quando farão eles mérito maior? – honrando as coberturas de Life, Time e Look, Audrey Hepburn é talvez hoje, aos vinte e quatro anos, a mais célebre das jovens iniciantes. Todos os adjetivos que faltam utilizar com precaução à convém: requintada, adorável, comovente, brincalhona como o vento, secreta como a noite, pequena lua, pequeno sol, jovem, princesa...

(publicado originalmente em Cahiers du cinéma, n° 34, em abril de 1954)