segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Nosferatu de F. W. Murnau (1922)



Amigo Arthur: se tivesse se rendido àquele beijo, antes da morte de Lucy, ou se tivesse se entregado ao abraço dela, ontem à noite, também se tornaria uma vítima; e, no devido tempo, morreria e se transformaria em um nosferatu - o nome que recebem essas criaturas no Leste Europeu. E então você andaria pela noite, amigo Arthur, criando novos mortos-vivos e espalhando o horror para sempre.
passagem de Drácula, de Bram Stoker 

Nosferatu é um daqueles clássicos absolutos do cinema em que se falar alguma coisa contrária à afirmação de que é uma obra estupenda já soa feio ou muito pedante da parte de quem escreve. Infelizmente, um de meus maiores defeitos é o pedantismo - luto contra ele, mas aqui no blog ele aparece. E assim, para escrever sobre o mais famoso filmes de Murnau vou dividir este comentário em duas partes: o equívoco e o fascínio.

Drácula não foi um sucesso assim que lançado. Bram Stoker não viveu da fortuna que ganhou com a venda de seu livro. Na verdade, nas notas sobre o falecimento do autor, os jornais nem mesmo citaram esta que é uma de suas poucas obras conhecidas atualmente. Ainda assim, sua família foi resistente em vender os direitos da obra aos produtores alemães que queriam filmar a história. O resultado foi exatamente este Nosferatu, um filme livremente baseado no livro, mas que na verdade muda muito pouco - somente alguns dados bem pontuais.


O que se torna um dos equívocos do filme. A transformação da obra literária em cinematográfica deixa na narrativa contada em tela alguns buracos ou momentos e personagens aparentemente desnecessários. O personagem de Van Helsing, transformado em Professor Bulwer, é mantido no filme, mas sua aparição é quase desnecessária. Assim como os amigos de Ellen, a mocinha do filme por quem o vampiro se encanta. Outro destes personagens desencontrados é Knock, que inicia o filme sendo o patrão de Hutter, e que sem muita explicação vai parar internado num asilo.

Mas é o fascínio que transforma este filme tão especial. Isto porque estes personagens desencontrados, cujas histórias pouco importam para a narrativa que transcorre, são eclipsados pelo trio protagonista. Conde Orlok, o vampiro da Transilvânia, Hutter que vende ao conde a casa em frente à sua, e Ellen, esposa de Hutter. Se em Drácula, Bram Stoker constrói uma narrativa contada a partir da perspectiva de quatro diferentes personagens que se relacionam entre si de alguma forma, Murnau cria em seu filme um núcleo que por vezes é abandonado para mostrar o impacto daquele sujeito - o vampiro - nos ambientes em que aparece.


Um primeiro personagem que podemos enfatizar é Hutter. Corretor imobiliário, o jovem parece viver uma carreira profissional meteórica. É mandado por seu chefe para o exterior vender uma mansão a um conde. Murnau faz desta narrativa o processo de maturação deste personagem, que inicia como um garoto - e assim se distanciando a obra literária. Está sempre a rir, não enxerga que existe o mal ao redor, e que este mal pode afetá-lo. Aceita a viagem de bom grado imaginando o bem que fará para sua carreira e para seu casamento com Ellen. Chegando ao vilarejo da Transilvânia, Hutter já tem seu primeiro contato com um mundo bem diferente que o tira de seu conforto. Comenta que tem que ir ao castelo do conde num bar enquanto pede a comida. O bar imediatamente se silencia e todos os olhares são direcionados ao pobre coitado - a primeira menção de que algo de errado há naquele lugar.

Hutter sobe numa carruagem que não o leva por todo o caminho. O cocheiro lhe diz que Hutter poderia pagar o que quisesse, mas ele não dará mais nem um passo a frente. O jovem continua sua caminhada por aquele terreno inóspito até que aparece uma carruagem estranha, comandada por um sujeito que cobre o rosto com muitos panos. Hutter sobe e depois de uma rápida cavalgada, chegam ao castelo, onde é abandonado pelo cocheiro e recebido pelo conde - que parecem ser a mesma pessoa. As negociações se iniciam logo. Hutter e o conde permanecem toda a noite conversando. Quando Hutter acorda no dia seguinte tem, em seu pescoço, duas picadas.


Na estadia no castelo do conde Orlok, Hutter deixará para trás seu lado juvenil para poder, finalmente, amadurecer, deixar sua infância para trás. O sujeito sorridente que aparecera no filme até então será substituído por um que esboça um sorriso preocupado. A foto de Ellen cai de sua bolsa em meio a uma negociação com Orlok, que rapidamente pega a fotografia e diz: "ela tem um lindo pescoço" - um dos raros momentos cômicos dos filmes de Murnau. Tendo encontrado um livro sobre vampiros em sua hospedaria no vilarejo, Hutter percebe que seu hospedeiro não é uma pessoa comum. O tormento perante a morte não permite que o jovem permaneça com sua postura juvenil. Hutter cresce exatamente porque o meio lhe obriga a crescer - a morte espreita e ele tem que crescer para poder enfrentá-la, e proteger os seus amados - Orlok partiu para a casa em frente à sua.

A segunda protagonista deste filme é Ellen. Também uma jovem pouco crescida - enfatizada por Murnau na famosa cena em que ela brinca com um gato na janela de casa - mostra-se logo um pouco mais perspicaz que Hutter. Fica preocupada com a viagem de seu parceiro tão logo o escuta, mas não tem espaço para poder dizer-lhe o que quer que seja. Hutter parte e Ellen permanece somente com a saudade de seu amado. Senta em um banco de um cemitério a beira da praia e observa o mar, a espera do retorno de seu companheiro. Dele, recebe uma carta que a deixa preocupada: ele relata o aparecimento de duas picadas de mosquito no pescoço, para ela um sinal de que ele poderia não estar bem.


E eis que, do outro lado da rua, surge um estranho, habitando a casa em frente. Uma sombra que aparece nas janelas da casa. Ellen fica profundamente perturbada com aquela visão. Os tempos são caóticos. Um barco atracou no porto trazendo uma praga que infecta os homens trazendo a morte. E fora exatamente o sopro da morte que trouxe o tal barco. No continente, um rastro da praga havia sido deixada para trás, com uma fileira de mortos por onde havia passado. E a tal praga finalmente alcança o porto onde está Ellen, onde fica sua residência com Hutter. No barco, os homens da lei somente encontram caixotes com areia infestados com ratos.

Os moradores da região logo encontram em Knock o culpado necessário. O caçam como a um bicho. Ele foge do internato e é perseguido por multidões. Sobe no telhado de uma casa e lhe atiram pedras. Mas ele, servo do conde, aceita este trabalho para ser uma distração frente ao real sopro da morte, o vampiro, o novo morador da cidade. Orlok deseja Ellen desde a primeira vez que viu sua fotografia, e consegue por vezes controlá-la à distância, fazer com que ela abra as janelas, o convide a entrar em sua casa.


Um homem passa na rua desenhando cruzes nas portas das casas onde estão os mortos da praga. Ellen aceita a praga dentro de sua casa imaginando que, assim, poderá contê-lo em sua saga de extermínio. O vampiro, que é este terceiro personagem fascinante da obra de Murnau, perde-se em seus desejos animalescos mais profundos do desejo carnal, e bebe o sangue de Ellen por toda a noite, até que os primeiros raios de sol surgem no horizonte e o queimam, destruindo-o para sempre.

A presença do professor Bulwer se faz presente para ressaltar esta afirmação animalesca - ao invés de sobrenatural, como o livro faz - do vampiro. Orlok é um animal que necessita se alimentar. Que se alimenta de seres humanos, tal como nós de outros animais, ou como no experimento do professor, uma planta carnívora de uma mosca. Tal como a mosca é atraída para boca da planta por seus sucos doces, as pessoas são atraídas ao vampiro de aparência horripilante, para encontrar o seu fim.

***

O tema deste filme parece ser realmente a morte. O vampiro de Murnau é esta criatura natural posta no mundo para sugar a vida dos passantes, de espalhar o medo contido em todos - admita-se ou não - de um dia morrer. E ele é filmado como se buscasse a morte em cada canto do quadro, em cada ponto do mundo, mesmo nos momentos em que a vida sobressai.


A cena da viagem de barco de Orlok até sua nova cidade é bastante característica. O vampiro é o algoz da humanidade. Filmado de baixo para cima, sua figura é ressaltada. Max Schreck, que interpreta o vampiro, é alto e esguio, sua figura parece tão imponente quanto os mastros do navio com relação aos minúsculos homens. Frente àquela potência destruidora da natureza, os pobres navegantes nada podem fazer. Ao comandante, chega o relato do desaparecimento de seus marujos. Um deles, vai até o porão para abrir os caixotes que transportam. Um deles se abre sozinho, e Orlok se levanta. É o erguimento do terror do homem, que desesperado, sem qualquer chance de sobrevivência, foge daquela aparição e se atira ao mar.

As ações do vampiro nunca são mostradas. A morte é silenciosa, e somente se aparece para quem morre. Nós temos acesso somente ao dado fatídico: o corpo sem vida. E este dado surge no já citado homem que bate de porta em porta na cidade contando os mortos. A impotência da humanidade frente a este fenômeno impossível de excluir do ciclo de vida. Nas ruas, as filas de homens carregando no ombro um caixão de mais um morto por aquela praga recém-chegada de terras estrangeiras depois de ter dizimado os componentes da tripulação que a trouxe.


A praga é a sombra do Nosferatu que paira sobre todos os homens. No livro de Stoker, Drácula é evocado por nome, é uma presença constante, apesar de raramente aparecer. No filme de Murnau, Orlok é constante, mas também em suas ações - não necessariamente em figura. A multidão persegue Knock, mas pelos atos promovidos por Orlok. E assim é quando Hutter, hospedado na Transilvânia no castelo do vampiro, tem a criatura em seu quarto, e por sobre ele é posta somente a aterrorizadora sombra das mãos de longos dedos capazes de dominar e envolver sua vítima num processo sem volta, sem que lhe seja dada a chance de se soltar.

O vampiro de Murnau é esta figura que causa repulsa como os ratos que transporta de uma terra para outra, acompanhando-o nesta saga de mortandade. E é também uma figura que consegue viver entre os homens sem que seja percebido pela multidão desatenta. O foco dos homens deixa de ser o vampiro para ser os ratos, para ser o morto na sala de estar ou na casa vizinha. E é assim que se faz a fama de expressionista deste filme: a sombra. Porque a morte é tão somente uma sombra que cobre a luz da vida dos homens, cessando este momento de brilho. Se assim é, o vampiro-sombra somente poderá ser derrotado com a chegada da luz do dia, da reafirmação da vida, da ação de Ellen em se doar ao vampiro, convidando-o para dentro de sua casa.

Um comentário:

Leo Rib disse...

Muito bom.
Também já falei sobre esse filme no meu blog.